Aforismos na fronteira com as coisas sem nome

§ Fixado na escrita, menosprezo, não raro, a escrita. Mais vale a frase que o texto; mais vale a fala que a frase; o suspiro que a fala; o silêncio que o suspiro.
§ Ainda sou a cópia dos meus escritores preferidos. Preciso escrever mais cinco mil textos — para me tornar uma cópia menos evidente ou cair na ilusão de que encontrei, enfim, a originalidade.
§ Em literatura, o vestígio último de toda escrita é a vaidade. Por trás de toda genialidade literária resta o desejo de se provar gênio — mesmo quando, como na maioria dos casos, não se é um.
§ O atual retrato do artista é o retrato do artista enquanto perfil numa rede social.
§ Antes de apertar o gatilho, o matador de aluguel faz sinal da cruz. O ator pornô agradece a deus a cada término de filmagem. O matador mata, o ator é estrela. Um único deus — e, ao mesmo tempo, um deus para cada um. Um deus facilitador de homicídios. Um deus apologista da pornografia. E nossa incomensurável, absurda necessidade em crer, em querer crer.
§ O céu lotado dos católicos, paganismo disfarçado: um deus e seus arcanjos, mais a infinidade de santas e santos. Ou, ao contrário, o silêncio e a liberdade de um céu vazio, habitado por ninguém, senão nuvens, aves, aviões: sem mando, céu visível dos ateus, budistas. Mas quem cresce é o despovoado céu dos evangélicos: céu triste, habitado apenas por um patriarca misantropo e tirano. Céu aversivo à diversidade, reflexo do que se tornou nosso mundo: um monomundo.
§ É natural que a quase totalidade da população viva alheia à poesia; assim como vivem distante de uma experiência religiosa. Ter acesso à poesia, como à experiência religiosa, exige uma disciplina de ferro. Até atingirmos seu tutano, seu tesouro discreto, o que resta, para ambas, é a aparência insípida, inútil, exageradamente sutil.
§ Só ama o outono quem tem um gosto pelas coisas que decaem, quem vê na luz opaca uma beleza maior que a irradiante, quem admira a velhice.
§ Pedalo e raciocínio grande, longe: é possível destruir o fascismo sem violência? É preciso incrementar formas estratégicas, sofisticadas de ataque e agressão no seio da vida poética. O velho jargão de manter a bravura sem perder a ternura. Sincronicidade: súbito, uma borboleta lilás colide no meu peito.
§ Mais do que quando e do que, me interessa saber se, na hora da morte, vou usufruir de um específico privilégio fisiológico e paisagístico: peito aberto e olhos grudados num céu com nuvens. Falecer deitado, de barriga para cima, na calçada morna de uma vila de casas antigas, tarde de outono, velho, depois de uma lenta caminhada.
§ Em zazen, depois de longos minutos imóvel, tudo se sutiliza — das sensações do corpo às interações do ambiente. Assim, me sinto frágil, fragilíssimo, como que prestes a me desfazer. Tudo se renova e toda manifestação é um toque inédito, cristalino: percebo algo de novo, de gracioso, até no estalar da abertura da latinha de cerveja do meu vizinho.
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada O clarão das frestas. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.

Abraços e até a farfalhada #98,
Felipe Moreno
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