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§ Pela primeira vez na vida num aeroporto. Não há bons haicais ou haibuns para escrever sobre aeroportos. Senão alguns impropérios, praguejos. Aqui, a vida é excessivamente normal, confortável. O excesso de conforto me espanta, produz um alerta interno difícil de decifrar. Mas é como um sinal de que não é biologicamente correto. O excesso de conforto e praticidade, no fundo, castiga, nada nos comunica e, por fim, nos prostra, ofusca a vitalidade dos corpos que o esforço, a concentração, a repetição e o foco mantêm acesa. Aqui, tudo é artificial e reluz. Ambientes esterilizados e perfumados. Arquitetura imponente, trabalhadores simpáticos e mecânicos. Gente bem vestida, não muito simpática. O ser humano e suas indumentárias e malas de rodinhas. Ainda somos um primata?
luzes de Led
ambiente climatizado
malas e selfies
§ A caixa do supermercado aperta as têmporas com os dedos. Pergunto se está com dor de cabeça e ela confirma: acordou cedo, fez muita coisa pela manhã e, depois, o dia inteiro de trabalho. São 20h18, o ambiente é tomado por luzes brancas de Led. O mercado fecha às 21h. Quarenta e dois minutos em que os corpos exaustos pressionam o cronômetro. Nunca passa rápido. Ela apenas para de apalpar as têmporas para me entregar o cupom fiscal. Me agradece. Digo obrigado e lhe desejo bom descanso.
último impulso:
tomar um ônibus
chegar em casa
§ Sábado à noite, clima de verão, bar lotado: atmosfera que, de tão agradável, transmite o sentimento de que a civilização não apenas prosperou, mas segue firme e confiante na empreitada que vai lhe proporcionar ainda mais prosperidade, conforto, bonança, lazer, bem-estar, prazer. Quanto mais o ecocídio se acirra, mais considero uma afronta e um descaso (em último nível, um negacionismo) a existência de um bar lotado. Quando o ambiente é opulento e frívolo, cheio de gente rica, cafona e esnobe, considero uma aberração. Que sentimento é esse? Não titubeio em taxá-lo, em expor suas vísceras: juízo brutalmente moralista e puritano, sentença ascética — no fundo, meu ganido de desespero a espera do espanto coletivo.
Sábado à noite: o bar lotado e, em frente, a praia, lindíssima, porém imunda.
alojados na areia
a gaivota soturna
e uma garrafa de cerveja
§ Pouca coisa na cabeça. Nunca é fácil chegar neste estado. O mundo exige que queiramos tudo, é um mar revolto. Manejá-lo, até reduzir a fúria da maré, é questão de treino. Meditar é treino; flanar é um paradoxo, pois é passatempo e treino. Tenho fome. Paro na padaria, compro três pães. Ando enquanto como pão puro. Rasgando as ruas com as pernas magras que a natureza me fez. Rasgando os pães com os dentes grandes que a mesma natureza desenhou. Satisfação por tudo. E cristalizo na consciência um pensar taxativo: manter o querer nos pés, não nos olhos.
levar o querer
na altura do chão
pouco: ar puro, pão
Atrair inscritos em niusleter é trabalho de garimpo, manual e orgânico. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique. Embora inicial, a experiência desses envios por e-mail tem sido uma das atividades de criação e interação mais empolgantes e alegres que já tive na internet.
Abraços e até a farfalhada #6,
Felipe Moreno
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