Abandonar a sustentabilidade
Feira de coletivos socioambientais em Florianópolis, quarta-feira de feriado, aniversário da cidade e, coincidência oportuna, semana de greve global pelo clima. Na roda de conversa, um sujeito afirma, sem rodeios, que devemos fugir da palavra sustentabilidade, fugir das pessoas que entoam o jargão da sustentabilidade, sobretudo nos meios de formação ecológica.
Suspiro, aliviado, e reitero a crítica: minar a fantasia da sustentabilidade, desmascarar seus interesses escusos, é ação que ainda precisa ser fortemente difundida, até tornar-se, quem sabe, consenso entre coletivos e indivíduos que lutam contra a degradação do mundo.
Devemos, no mínimo, suspeitar quando o termo sustentabilidade aparece na embalagem plástica da bolacha recheada (produção de um monopólio extrativista da indústria alimentícia) e no discurso de um ativista ambiental. Suspeitar e, provavelmente, concluir: sintoma explícito de que a expressão foi apropriada, esgarçada, retalhada em seus significados e objetivos. No geral, sustentabilidade tornou-se presa inocente dos tentáculos de sequestro e adulteração do capitalismo. Mais uma vítima, dentre tantas. Nas garras do capital, sustentabilidade, agora, é slogan publicitário, fundo falso, neutralizado e destituído de sentido concreto.
Há tempos que a lógica capitalista entendeu que sua ofensiva mais eficiente não é a guerra explícita ou a política de ruptura e inimizade, mas está no plano da inclusão, ou contemplação. A publicidade é o arsenal que reduz as chances do capitalismo não cometer equívocos: arguto e titânico, nenhum outro sistema fez da propaganda ferramenta tão poderosa e sofisticada. A personificação do capitalismo é a de um homem frio e faminto, viciado em trabalho, que dorme pouco e vive à base de cafeína e outros estimulantes — um publicitário junkie por vocação. Descrição sucinta do atual funcionamento da sociedade de mercado: cultura de apropriação, neutralização e distorção de tendências e insurreições adversárias e potencialmente perigosas à sua hegemonia, esta assentada no lucro e no acúmulo abismais, na devastação do mundo natural e na pasteurização das culturas humanas.
Apropriaram-se, neutralizaram e distorceram o significado de sustentabilidade. Aberração dos nossos tempos, tornou-se palavra de efeito contemplativo das forças que dominam e exploram a Terra. Ceder à estratégia contemplativa, nesse caso, é cair na armadilha. Práticas anticapitalistas, individuais e coletivas, devem se atentar aos engôdos contemplativos, que são a própria prática de absorver, neutralizar e formar fundos falsos onde tudo cabe e todo sentido torna-se abstrato, utópico, intangível. Mas o que, de fato, significa ser sustentável, desenvolver-se sustentavelmente, num planeta em processo de grande extinção em massa? Não seria necessário, portanto, abandonar a ideia de sustentabilidade e rearticular, em velocidade e inteligência semelhantes à estratégia que sequestra, retalha e deforma, outros termos e condutas — termos e condutas, repito, de concretude e precisão?
Três simples expressões surgem no horizonte: mitigação, adaptação e regeneração. Sem exigir argumentação, é fácil perceber como mitigação, adaptação e regeneração produzem menos precedentes à inocuidade: têm pilares mais firmes e, além do mais, são mais inquisitivas, pontuais, portanto menos contemplativas à lógica do capital. Se apropriadas pelos discursos anticapitalistas de maneira imunizada, apurada e consistente, dificilmente encontraremos, daqui a uns anos, a palavra regeneração no rótulo da embalagem de bolacha recheada: pois a própria forma de produção da indústria que produz bolachas recheadas, em infinitas embalagens plásticas, estará em xeque.
Embora soe absurdo, não é improvável encontrar (e talvez exista), hoje, uma indústria petrolífera que já aglutinou, na sua identidade, a sustentabilidade. Algo como: “Distribuindo a força do mundo de forma sustentável”. Mórbido, porém possível. Pois a repetição da distorção de sentido produziu, por fim, a aceitação lógica da contradição e do absurdo. No entanto, as validades de mitigação, adaptação e regeneração ainda fogem da facilidade de absorção publicitária. Essa estratégia ainda não foi gestada pelos oligarcas do mundo. Pois como dizer, de maneira aceitável ao senso comum, que as práticas econômicas de uma petrolífera, que extrai e exporta a matéria-prima responsável pelo aumento da temperatura do planeta, é também regenerativa? Sustentável, sim: pois, em sua abertura interpretativa e pluralidade, pode ser sinônimo do simples sustentar (o atual modelo de sociedade?), imperativo insuficiente ao atual estágio de degradação do planeta.
No jogo de forças da vida coletiva e do futuro do planeta, desviar-se e não ser sugado pela areia movediça da estratégia contemplativa já é, por si só, uma estratégia de resistência. Nas sensibilidades e minúcias da linguagem, nos canais estreitos das práticas, residem a importância de resistir através da explícita diferenciação, da ruptura e da fragmentação, ante a homogeneização e pasteurização que pretendem aglutinar e deformar as próprias resistências. Em palavras mais simples, os oligarcas de lá, nós, de cá. Eles, sequestradores, agora, sustentando e impingindo ainda mais fundo o modelo da devastação. Nós, resilientes, visando, ante o colapso, a mitigação, a adaptação e a regeneração.
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Felipe Moreno