A vila de velhos, velhas e vira-latas
1. Agora sou um morador de vila, quero dizer: vim morar num bairro tradicional e popular de Florianópolis. O Saco dos Limões (nome esquisito ao primeiro contato, gracioso depois que se acostuma) está localizado entre o centro da cidade e os bairros que circundam a Universidade Federal de Santa Catarina. A despeito da localização acessível, ainda está enraizado, no chão rústico do Saco dos Limões, uma miríade de casinhas de madeira, galos cantando, a pracinha e seus clássicos personagens brasileiros: o louco, o bêbado, o velho, o vagabundo, o vira-lata, a dona de casa de passagem, a fofoqueira de portão, a manicure fumante inveterada.
2. Às onze da manhã, às três ou seis da tarde, por onde quer que se ande nessas ruas estreitas, de casas geminadas, há uma senhora — ou uma sequência delas — espiando pela janela. Ora escancarada, com o vento no rosto miúdo, os antebraços apoiados no batente, ou afastada, na sombra do cômodo, meio soturna, espectral. Há uma constelação de velhas espectrais de janela; ou um panóptico de donas de casa, com tempo de ócio, neste bairro que se mantém vila desde seu surgimento.
3. Dona Adelaide, uma velha espectral de janela, ouve o canto de Nelson Rodrigo e Neide Raquel, nossas calopsitas, e logo adverte: “Cuida da gaiola, porque nossa gatinha é danada. Ela pula na gaiola e ó [gesto de abre e fecha com a mão enrugada, figurando uma boca que come]. Dona Adelaide alterna, dia e noite, a contemplação de muitas cenas repetidas vindas de dois enquadramentos diferentes: as da TV, com suas novelas reprisadas, requentadas; e as da janela com vista para nossa rua, João Florentino de Jesus, com sua movimentação apaziguada e mundana.
4. João Florentino de Jesus foi o pai do seu Manoel, velhinho de pele avermelhada, 1,60 de altura, chinelo de dedos. Seu Manoel logo se apresenta para nós e brada, com agudo sotaque manezinho, o orgulho da ascendência: “João Florentino de Jesus era meu pai. Me cresci nesta rua”. Anfitrião e hospitaleiro, nos dá as boas-vindas: “Aqui é muito tranquilo, muito bom”. Dedo grosso em riste: “Você nunca vão ter problema nenhum”. Ênfase no ‘nunca’ e ‘nenhum’.
5. O número de velhas espectrais de janela é equivalente ao de vira-latas de portão. É um bairro com predominância de velhas, velhos e vira-latas. E, claro, gente trabalhadora. Imagino que, nos anos 70, o Saco dos Limões viveu o auge da habitação operária. Falar em Saco dos Limões era falar do bairro dos operários, da Vila dos Operários. Muitos deles, jovens há quarenta anos, hoje, com 70, 80, aposentados, ainda vivem nos mesmos lares.
6. Os netos das velhinhas e velhinhos do Saco dos Limões ocupam as vielas com seus carreteis e linhas de pipa. Andam de chinelos, shorts sem bolsos, logo sem celulares, camisas de time, cabelos coloridos. As pipas dançam, gingam e rodopiam no céu azul do Saco dos Limões, nas férias de janeiro. No dia da mudança, cansado, a casa um mundaréu de caixas, me joguei na cama, de frente para a janelinha do quarto. Era um quadro de tons do verão brasileiro. Ali assisti à transmissão do azul do fim da tarde e do festival de pipas.
7. Há os bichos dóceis, simpáticos, familiares (cachorros e gatos, basicamente), mas também há os incomuns e assustadores que, de praxe, a urbanização se encarregou de eliminar. Não aqui. Dez da manhã, sobre o muro de pedras do quintal, um marimbondo sinistro, qual um drone, leva pelas patas fortes uma aranha de tamanho médio. Grilos, opiliões e armadeiras também se fazem presentes.
8.
sobre a velha laje
e no focinho do cão
arde o sol-das-três
9. Desde que nos mudamos, recebemos inúmeras boas-vindas dos vizinhos. Passam pela calçada, percebem movimento e gente nova na casa, que estava parada há dois anos, e se achegam, querem saber, se apresentar. Amam o bairro como amam a si mesmos. Ajudam e colaboram uns aos outros como fariam com um irmão. Ou até mais que um irmão, como diz Bahia, a senhora da casa de frente à nossa: “Tenho doze irmãos, mas moram tudo longe, quase não vejo. Vizinho a gente vê todo dia. Vizinho é mais irmão do que nossos irmãos”. Bahia é o misterioso apelido de Dona Maria, 82 anos, manezinha, viúva que nunca tirou a aliança do anelar. Na sua horta nascem couve, mamão, maracujá, cebolinha. É ela mesma quem ainda maneja a terra. Sua cadelinha se chama Lili, uma vira-lata baixinha, caramelo, cujo semblante é semelhante ao de Pepe Mujica. Lili, para nós, também é Mujiquinha. Sorriso enorme, Bahia nos diz que está lá para o que precisarmos.
10. Preciso ser vizinho das pessoas suburbanas do Brasil, nascidas na primeira metade do século 20. Pessoas simples, guiadas por uma única filosofia, um único dogma, precioso, inquebrantável, espiritual. Princípios que algumas velhinhas me segredam às onze da manhã de uma segunda-feira de janeiro, o sol implacável: “Pedir o básico, porque pedir muito é abusar; trabalhar e cuidar das próprias coisas, jamais crescer o olho naquilo que é dos outros; ter o nome limpo e o coração puro; e, assim, deus vai ajudando”. Ser simples, fazer o certo e ter fé. Ponto.
11. Não posso ser um milionário, não posso ser rico pelo meu próprio mérito. Isso me custaria um tempo inestimável, anos a fio inserido na roda de hamster do capital, adoecendo, apodrecendo. Não posso ser milionário de uma hora para outra. Isso significaria ganhar na loteria — o que nunca acontece — ou cometer algum grande crime. Devo ser simples.
12. Estou no banco do passageiro do carro que desliza pela avenida, o vidro abaixado e o vento acariciando o rosto. No caminhão à frente, leio uma palavra em alemão. Não faço ideia do que significa, mal posso pronunciá-la. Concluo que, muito provavelmente, jamais aprenderei alemão. E essa constatação não me aflige, não me provoca, não me incita nada. É apenas uma apaziguada constatação: é provável que eu passe toda a vida sem saber quase nada de alemão e, com a minha ignorância sobre essa língua estrangeira, serei feliz. Por que não querer menos? No banco do passageiro do carro, manhã nublada, desejei nada, ou desejei pouco. Sem querer abusar, gostaria apenas que o vento bom mantivesse o sopro no meu rosto. E que, ao chegar em casa, eu pudesse cumprimentar, mais uma vez, como todos os dias, meus vizinhos suburbanos.
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Abraços e até a farfalhada #40,
Felipe Moreno