A quem serve a história?

Reconheço e agradeço pelas muitas coisas que as mentes da era industrial desenvolveram. As mais básicas, inclusive. Uma escova e uma pasta de dente são resultado de muita ciência, rigor metodológico, teste, exploração. Também uma esponja de louça e um detergente são tão eficientes, práticos e acessíveis, a ponto de, praticamente, inviabilizar alternativas, porque especialistas, de diferentes áreas do conhecimento ocidental, coletaram e entalharam, de maneira complexa e meticulosa, centenas de substâncias da terra até chegarem ao resultado ideal.
Em relação à interação e ao manejo, todo objeto industrial, através de seu arsenal de combinações, misturas, experimentos, é uma espécie de alquimia bruta, massiva e, sobretudo, utilitarista da matéria. Difere-se das alquimias tradicionais num ponto crucial, que é o próprio fim, a busca última: o objeto industrial jamais visa o absoluto, mas meramente a segurança e o conforto terrenos.
Reconheço, agradeço, admiro e usufruo dos saberes e das ciências que desenvolveram as escovas e pastas de dente, as esponjas e detergentes, geladeiras e máquinas de lavar roupa, automóveis e computadores. Expresso tais sentimentos pela razão óbvia de ser um sujeito bem inserido no próprio tempo, ser humano médio, relativamente abastado.
No entanto, pássaros e peixes desta mesma época não têm nada a agradecer ou usufruir; ao contrário, vivem, cada vez mais, atormentados e desesperados, numa crescente sina por sobrevivência, num ambiente em massivo processo de degradação. Em 2050, haverá mais plástico nos oceanos do que vida marinha. Trata-se de um feito colossal: um primata, designado sapiens, em tempo curto (desde que acionamos as máquinas, mais especificamente), comprometer toda a vida marinha, num planeta que é quase todo oceano e pulsação de vida subaquática.
Ainda assim, posso ir agora mesmo, com meu carro, no supermercado mais próximo e comprar todo o estoque de esponjas de louça (compostos de polietileno, plástico puro) e me sentir confortável e feliz por isso. Para além do meu contexto de cidadão de classe média, num país do sul global, as indústrias das nações hiperdesenvolvidas seguem em ritmo acelerado, as emissões de gases que aquecem a atmosfera aumentam. Chegamos aos oito bilhões de sapiens espalhados pelos continentes. Em quantidade muito maior que nós, porém, existem as vacas, bois, porcos, aves e peixes que, amanhã ou depois, terão o mesmo fim: a morte técnica, o extermínio planejado.
É comum a visão de que, apesar de todos os imensos desafios contemporâneos, a vida nunca foi tão segura e próspera. Há cem anos, época de nossos bisavós, morria-se mais cedo e mais fácil, havia milhões de analfabetos, o fantasma da fome à espreita para muitas populações etc. São dados irrefutáveis. Perguntemos, contudo, a vacas, bois, porcos e galinhas, animais que, cada um à sua maneira, são dotados de extrema inteligência e complexidade afetiva, se, ao longo dos milênios, a história, para eles, melhoraram ou pioraram. Assim, outra questão se impõe sobre nós: a história quer contar a história de quem, afinal?
Nossa visão da história sequer é enviesada ou unilateral; ela é, sumariamente, a bitola que direciona, sem desvios, nossos olhos aos nossos umbigos, nossos desejos mais egoístas à capacidade de realizá-los. Uma história que não contempla a vida do mundo, a versão que pássaros e peixes têm a contar, mas apenas a vida dos humanos — e, mais drástico, apenas a história de uma classe de humanos — não é história, mas boletim aristocrático, painel de interesses estritos, apostila com conteúdo dos carrascos.
Qual a história da vida do mundo, hoje? Em síntese, a história do pseudotriunfo do sapiens às custas da miséria e da ruína de praticamente todas as outras formas de vida. De alguns milênios para cá, ultrapassamos a contingência bruta da natureza, crivada de períodos de escassez, para totalizar a escassez ao entorno. Nesse arranjo, a paz é sentida apenas por parte da nossa espécie, enquanto quase todo o resto da vida resseca e definha. A vida jamais testemunhou tamanha desigualdade e desequilíbrio: a população reduzida de uma única espécie numa ascendente bonança enquanto continua a anunciar guerra às muitas formas de existência e impõe a aridez que se expande ao longo do globo. A ideia de uma paz universal, na atual situação, é uma utopia de gente ingênua ou mal intencionada, uma visão onírica de perfume de rosas numa terra intoxicada de agrotóxicos.
Numa agenda de décadas, as elites inflam e cristalizam suas riquezas às custas da ruína de uma biodiversidade (que inclui micro-organismos e populações humanas) que foi forjada ao longo incontáveis aeons. De certa forma, os donos do mundo, agora, são como Hitler às vésperas do fim da Segunda Guerra: os aliados já haviam triunfado, o Exército Vermelho já batia à porta — mas a rendição, para a alta cúpula nazista, era incogitável.
A tormenta ecológica bate à porta de nossas casas (em casos extremos, varre, na forma de enchentes, ciclones, furacões), porém a rendição imediata do modelo de pensamento e modos de vida (nosso antropocentrismo, afinal) parece inegociável. Os nazistas confiaram, até à loucura, na sua sofisticada e potente tecnologia bélica. Os plutocratas e tecnocratas de hoje se afundam na crença de que suas tecnologias salvarão o planeta — enquanto continuam a perpetrar o extermínio em massa a milhares de outras espécies. Eles parecem agir de acordo com o discurso de J. Robert Oppenheimer, um dos físicos da bomba atômica que, ao assistir a explosão de um teste, lembrou de um trecho do Bhagavad Gita: “Agora eu me tornei a morte, a destruidora de mundos”.
Atrair inscritos em niusleter é trabalho de garimpo, manual e orgânico. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique, e me ajude a continuar na experiência de escrever por e-mail.
Abraços e até a farfalhada #37,
Felipe Moreno