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§ Meio-dia no centro. Sol seco, vermelhidão. Secura de paisagem. Secura de palavras. Mau cheiro.
entre a insolação
e a sombra urinada
minha coluna dói
§ Entro na loja Tudo Dez (como o nome indica, infinitas quinquilharias a dez reais) para comprar um pote de paçoca para um morador de rua revender. Na fila labiríntica, o assédio das prateleiras: quatro barrinhas de chocolate, em vendas casada, guarda-chuva chinfrim, sutiãs, coqueteleiras, fones de ouvido, salgadinhos. A cambaleante indústria brasileira em simbiose com a estratosférica indústria chinesa. Cheiro de todos os plásticos do mundo, Taylor Swift nas caixas de som. Meu eu social quase se alegre e reconforta com a miríade de opções, tudo a dez reais, e quer ficar ali por mais tempo, batendo perna. Meu eu político, crivado pela mais funda percepção da matéria, da centralidade ecológica, quase se desespera e quer sair correndo. Chega minha vez. A moça do caixa, simpática, diz que aquela é sua paçoca favorita. Saio do estabelecimento dantesco, onde tudo é luz de led e derivado de petróleo, e entrego a sacola ao morador de rua, franzino e úmido de chuva.
ele agradece
dentes rotos, bafo etílico
e sai cambaleando
§ Uma pomba, com ambas as patas atrofiadas, perambula sobre seus tocos e cisca as frestas do piso cinza da plataforma C do terminal de ônibus do centro de Florianópolis. Quem está mais próximo da pomba é um motorista, em cinco minutos de pausa, casaco moletom e óculos aviador. Anda em linha, vai e volta, lento, sem mancar, enquanto escuta longos áudios de WhatsApp.
entre as pombas
e as coisas do homem
bruta indiferença
§ A estranha sensação de caminhar na chuva, entre o desconforto e a atenção plena, o frio e os subterfúgios físicos para tentar se aquecer, e se sentir herói de si. O vento e a fragrância que as pessoas, apressadas, deixam ao cortar seu caminho — cigarro, perfume barato. Sentir que a vida é dura e gostar.
sob a garoa fina
uma mulher sem dente
fala sozinha
§ Laguna, melancolia. Cidade boa para caminhar sozinho, lento, em paz. Cidade de vento inimigo, botos irmãos, poetas tristes, homens etílicos.
paralelepípedos —
o som do meu palmilhar
e do vento gelado
um pescador bêbado
pragueja, troncho, à beira
do mar azul cobalto
§ O tempo do bicho humano e o tempo dos bichos alados. Os bem-te-vis selvagens, mesmo no epicentro do urbano, na sua talidade, são o Tao. São, sem esforço, o que um bicho humano deve levar cinco mil anos para aprender a ser.
quatro bem-te-vis
fora do tempo dos homens
se aninham no fio
§ Passar minha vida a limpo, como sempre, mais uma vez, do chão, do zero, radicalmente só, no limiar, mochila nas costas, All Star nos pés, trinta anos, sem filhos, tocado por lampejos, exilado nesta pedra. E me refazer.
na rodoviária
de novo só neste mundo
sob o pó imundo
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
Abraços e até a farfalhada #57
Felipe Moreno
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