A miséria do mundo é obra do homem branco
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A miséria do mundo é obra do homem branco […] Discuto muito na Europa, com o europeu, coisas básicas. Uma das coisas básicas é o seguinte: o mundo é responsabilidade de vocês. Vocês fizeram este mundo faminto e horrível que está aí. Vocês têm a tendência de considerar que os pobres são culpados da sua pobreza. Não. Vocês é que são culpados. — Darcy Ribeiro
A origem de cada grande colapso da nossa era é europeia. Não há contribuição de qualquer outro povo aos grandes dramas coletivos. Se somos modernos, ou se não somos modernos, a fábrica de criação da fábula sobre a modernidade, e a régua que mede se somos modernos ou não, vêm da Europa. Questão simples e lógica: a régua que mede o mundo surgiu na Europa. O mundo está em colapso. É a Europa, portanto, quem fabricou o colapso.
A história da Europa moderna é, em linhas gerais, a do paroxismo, da psicose. Psicose, aqui, como pulsão hedionda que recusa e ataca toda diferença — a partir de um ponto de vista torpe, sumariamente ilusório, de autoidentificação como povo superior, escolhido, único, soberano. Psicose também significa “o estado de espírito, individual ou coletivo, marcado por ideias obsessivas”. A obsessão por si mesmo como povo, marcada por uma cosmovisão perversa, com elevado grau de narcisismo, logo enferma. Uma psicose de cosmovisão.
A genealogia dessa psicose de cosmovisão, o gatilho primeiro, talvez seja a noção — ao mesmo tempo ramificada e condensada ao longo dos séculos — de que há algo de errado no mundo. Há algo de errado no mundo e o mundo precisa ser corrigido — apenas um povo pode fazê-lo. Toda diferença encontrada no caminho será considerada um entrave à correção do mundo, por isso será dominada, escravizada — e, ao menor gesto de resistência, dizimada. Talvez isso explique a sede de genocídio dos europeus, mais do que qualquer outro povo.
É insano constatar que, há meio milênio, ao menos, nenhum outro povo prevaleceu sobre o europeu. Sua incursão fanática em busca de domínio e ocupação obteve êxito onde quer que ele tenha chegado. Desde então, a Europa perde apenas quando entra em conflito consigo mesma, a exemplo das duas grandes guerras do século passado. São episódios que se assemelham a um ataque autoimune — o paroxismo da sua psicose.
Da barbárie colonialista à perturbação da biosfera, a origem de cada grande colapso da nossa era é europeia; e é necessário que o europeu de hoje entenda isso. Até mesmo o sentimento de culpa, que o capital, a despeito da nossa tradição cristã, repeliu por considerar nefasto (afinal, ninguém consome com culpa de qualquer coisa que seja), seria útil, neste momento, aos europeus: sentirem-se culpados pelo que fizeram ao mundo — uma culpa dostoievskiana — poderia incitar maturidade e responsabilidade. Em hipótese utópica, produziria um milagroso desejo coletivo por redenção. Para isso, contudo, a Europa precisaria dar curso à grande revolução espiritual pela qual nunca atravessou — apenas fingiu atravessar, ao sequestrar a espiritualidade para forjar o império da religião. A Europa precisaria se tornar aquilo que nunca foi: cristã.
Talvez seja essa mesmo a fonte da sua psicose cósmica: a visão de que há algo de errado no mundo que precisa ser corrigido — transcendido — e que só a Europa é capaz de empreender. Essa grande causa parece apontar para os mesmos efeitos, episódios espalhados pelos últimos séculos: da invasão e colonização de outros continentes, que deflagraram a dizimação da diferença fora do território europeu, à doença autoimune da eugenia nazista, que deflagrou a dizimação da diferença dentro da própria Europa.
Um amalgama de concepções religiosas que recrudesceram o narcisismo desse povo. A ideia de povo escolhido herdada do judaísmo. A ideia de salvação associada ao cristianismo. A ideia de superioridade fomentada pelo humanismo moderno. Eis um povo forjado na explosão de cosmovisões que, em comum, sustentam a crença de que o ser humano deve ser soberano inabalável deste mundo repleto de erros. Com o agravante de que tal ser humano triunfante não é qualquer sapiens, mas o próprio europeu.
Por ser incapaz de incluir o convívio pacífico e harmonioso com qualquer forma de diferença, e por só conseguir conceber o mundo natural como equívoco, e por achar que tal equívoco da natureza bem pode ser consertado por eles mesmos, a cosmovisão europeia é o ataque e a ruína de toda (bio)diversidade.
Subverter tal lógica parece urgente. O mundo não precisa ser corrigido; o europeu, sim. O europeu precisa ser corrigido, sanado da sua loucura. Porque o europeu dominou a maior parte do mundo, praticamente todas as sociedades precisam ser sanadas da psicose cósmica herdada dos europeus. Isso, obviamente, não pode ser feito através dos mesmos meios de coerção que o europeu usa aos demais — em suma, a dominação e o extermínio.
O europeu, ou o mundo, precisa aprender através daquilo que sua cosmovisão o impede de ser e fazer: a simples aceitação da diferença, que também significa a aceitação do mundo tal como ele é. Pois o que há neste mundo de mais evidente senão a diferença, a diversidade e, por fim, a categórica e perene expressão de que nenhuma espécie, fruto do seu próprio jogo existencial, jamais o dominará por completo?
A farfalhada niusleter é o meio mais livre e satisfatório por onde espalho, na internet, meus escritos fragmentários de muitos temas e tons: dos arranhões filosóficos e políticos baseados, quase sempre, no debate sobre civilização e ecologia, aos meus haicais, haibuns e zuihitsus da vida cotidiana. Alguns dos textos que compartilho aqui estão presentes no meu último livro, um miscelânea fragmentária chamada Retalhos. Atrair inscritos é sempre uma alegria, mas dá trabalho. Se você acompanha e aprecia esta niusleter, e conhece gente que também faria o mesmo, compartilhe, indique.
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Felipe Moreno