A metafísica do futebol
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1. Abaixo de todos os aspectos objetivos do futebol, paira sua metafísica, que se manifesta como egrégora, mito, símbolo, pulsão. A objetividade óbvia é escrachada, toma conta dos noticiários. Temos inúmeros especialistas para tratar da objetividade óbvia de dentro dos gramados. No entanto, a subjetividade, também óbvia, é, quase sempre, ignorada, desmerecida, desacreditada. Mas a ordem sensível e invisível do futebol, sua própria matriz criadora, é eternamente prevalente. Em suma, o futebol, em superfície, é um evento físico e técnico. Sob essa ligeira camada, porém, reina outro imperativo: o futebol é uma entidade metafísica.
2. É objetivamente óbvio que, a quatro minutos do fim do segundo tempo da prorrogação, o Brasil não podia avançar nove ou dez jogadores no setor de defesa dos croatas e, assim, sofrer o risco de um gol de contra-ataque. É objetivamente óbvio que os croatas ganharam pela tática do jogo em cozimento: segurar a bola, o ritmo, amainar o confronto até que pintasse uma brecha. É importante ressaltar e repetir os acontecimentos objetivamente óbvios, por consideração e inclusão daquelas pessoas que, em futebol, desconhecem o objetivo e o óbvio. À parte isso, o futebol, hoje, carece da análise subjetiva, não técnica, não economicista, e, em última instância, até mesmo não especializada.
3. Milly Lacombe, colunista da UOL, é uma das poucas a dedicar suas impressões sob a ótica do subjetivo, do mítico, do apoteótico que, em essência, trata-se o futebol. Foi profética ao listar, dias antes do início da Copa, as razões pelas quais, segundo ela, o Brasil não seria hexa. Dentre elas: a liderança imatura, infantojuvenil, de Neymar; o fato de Tite ter se tornado um técnico com cacoete de coach motivacional; a arrogância dos jogadores. Agudos e sensíveis, seus sinais premonitórios me parecem absolutamente condizentes com a realidade.
4. Nelson Rodrigues: “A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num corner mal ou bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural”.
5. Desde o penta, a seleção brasileira escalou, de forma fulminante e convicta, as paredes de um ideal nefasto às pulsões míticas do futebol. Criou e bebeu a fórmula de um desastre, cujos principais ingredientes são: teologia da prosperidade, discurso de coach e o recrudescimento da opulência e celebrização dos atletas. Enquanto a fórmula teologia da prosperidade, discurso de coach, mais luxo e estrelato estiverem no centro da formação dos melhores jogadores de futebol do Brasil, o hexa não virá.
6. A relação com o sagrado, por via dos mitos judaico-cristãos, sempre estiveram atados ao futebol, tal qual uma caneleira à canela. Em época de Copa, Deus é convocado tanto quanto no momento da maior tragédia pessoal. Mas arrisco dizer que nunca a relação do futebol brasileiro com o sagrado nunca foi tão grosseira, degenerada. Meninos de 20 anos, alçados a um estrelado fulminante, estão convencidos de que tal feito extraordinário estava nos desígnios de deus. O sinal da bênção já não é mais qualquer sinal de juízo ou complacência, mas o fato de se tornar um astro multimilionário enquanto os pelos, no buço e no queixo, ainda crescem ralos.
7. Já sabemos que a CBF dispensou a presença de um psicólogo na delegação. Afinal, não há necessidade de um psicólogo quando o próprio treinador faz papel de coach empresarial. As paredes do centro de treinamento estão cobertas por frases de autoajuda. À noite, no hotel, o técnico desliza, por baixo da porta dos quartos, mais mensagens de autoajuda customizadas para cada atleta. Do roupeiro ao camisa 10, temos toda uma delegação filiada ao credo do coach motivacional, cuja gramática orbita entre “confiança”, “positividade”, “superação”, “sucesso que só depende de si mesmo”. Uma seleção embebida no mito do empreendedor, convertida à ideologia neoliberal. Uma seleção byung-chul haniana da positividade: “A sociedade do desempenho, cada vez mais, está no processo de descartar a negatividade. […] O ilimitado “poder” é o verbo positivo modal da sociedade da conquista. […] Proibições, comandos e leis são substituídos por projetos, iniciativas e motivação”.
8. A atual seleção brasileira, em todo o seu projeto, parecer ter atingido a façanha de espelhar os aspectos mais nefastos da nossa cultura neoliberal. Até os aspectos mais subjetivos foram intoxicados pela gramática neoliberal. “Paixão”, “raça”, “coração”, “doação” foram eclipsados por “estratégia”, “planejamento”, “desempenho”, “produtividade”. A supremacia da técnica a arruinar o futebol como evento apoteótico, uma poiesis.
9. O futebol é um reflexo da cultura e, por isso, tornou-se esse apelativo espetáculo do capital. As desigualdades entre os clubes são cada dia mais abissais e cada vez maiores são os acúmulos das elites financeiras do mercado da bola. Um jovem jogador, que deveria ser apenas um atleta em formação, é quase uma commodity. Em volta de um único atleta há meia dúzia de empresários. Assim, o futebol, arte mítica em sua essência, deformar-se num degenerada economia de alto valor. O dinheiro, ao degradar e tiranizar o futebol, também mancha sua aura. Os sintomas são sentidos em grande e pequena escala.
10. No mundo tiranizado pelo capital, a síndrome do economista solapa até os maiores especialistas do esporte. Para argumentar que Tite pode ser um profissional qualificado para clubes, mas não para a seleção brasileira numa Copa do Mundo, o respeitado comentarista esportivo Mauro Cezar usou a expressão “consumo interno”. “[Tite] se mostrou um bom técnico para consumo interno, mas para nível de Copa do mundo, não”. Sintomático. Problemático.
11. O luxo faz mal à alma do futebol. O bife folheado a ouro custa nove mil reais ao craque multimilionário que o come e custa a derrota e a tristeza de uma nação de mais de 200 milhões de pessoas e de tantos outros países deste sul global que vê, na seleção brasileira, sua própria seleção.
12. A seleção brasileira padece dos seus próprios astros. Há um longo, intenso e radical trabalho pela frente. Consiste em extirpar muitos males pela raiz. Sem dúvida, a própria CBF, celeiro de corruptos e mafiosos, é a que deve sofrer a transformação mais sistêmica. No âmbito dos atletas, o trabalho também passa por desgarrar-se das muitas camadas de astro, que vitimaram nossos craques, até que cada um reencontre, lá no fundo, sua forte personalidade futebolística: aquela que é apaixonada, dedicada, perseverante.
13. Zlatko Dalic, técnico da Croácia, após a classificação do seu time às semifinais: “Acredito que apenas as seleções com grande personalidade e caráter podem dar a volta por cima, e isso se tornou comum para nós. Nos pênaltis, somos muito bons, sempre favoritos, mas é preciso chegar lá. Não é tão simples assim. Mostramos força e essa é uma característica da nossa seleção”.
14. A atual alegria do futebol da seleção brasileira confunde-se — ou melhor, falsifica — a genuína alegria de outrora. A atual alegria do futebol da seleção brasileira não é alegria de fato, mas farra com nuances de desdém, deboche, petulância. Pagodeiros de ônibus de delegação, meninos zoeiros, moleques farristas, causadores de camarote de balada, não percebem que a alegria, afeto de abertura e desposse, é muito mais natural e espontânea que seus sorrisos ultraclareados e seus passinhos de dança coreografados.
15. A geração Vini Jr. e companhia precisa resistir à degeneração do estrelato e da opulência que assola toda a elite do futebol global, mas especialmente a dos craques brasileiros. Há uma diferença de tom, postura e presença de espírito entre Modrić, camisa 10 da Croácia, e Neymar, nosso camisa 10. Modrić, 37 anos, é estranhamente discreto e sóbrio. Com uma entrega, dentro de campo, no limite da exaustão, de um esforço sobre-humano, o craque croata, além do mais, conta com a virtude maior do senso coletivista.
16. Gostaria que fosse unânime o seguinte sentimento: quando se trata de um confronto direto, Brasil e Argentina podem, devem, exercer rivalidade. Do nosso território para fora, contra adversários europeus, um país deve torcer para o outro. Como duas crianças irmãs que, dentro de casa, vivem brigando; mas, na rua, uma defende a outra com unhas e dentes.
17. No futebol, por fim, a metafísica prevalece à física; o espírito à técnica; a seriedade ao deboche; a humildade à petulância; o coletivo à individualidade. Disseram que o futebol é para os que têm alma. Alma significa deixar no gramado, através da carne, o suor e o sangue. Paixão. Coração. Essa Copa, controversa, problemática em muitos âmbitos, prova que o espírito ainda prevalece à técnica. Japão, aguerrido, classifica-se para as oitavas vencendo duas campeãs do mundo, Alemanha e Espanha. Argentina, aguerrida, chega a mais uma semifinal. Marrocos, aguerrido, fenomenal, desbanca Espanha, Portugal e, pela primeira vez na história das Copas, temos uma seleção do continente africano entre as quatro últimas. Por mil e uma razões, meu coração, agora, está com Argentina e Marrocos.
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Abraços e até a farfalhada #39,
Felipe Moreno