A fé, o ceticismo e o real
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§ Inflamado pela fé no patriarca superior, um séquito de homens trucida outro séquito de homens que igualmente se inflama pela fé — ligeiramente diferente — no patriarca superior. Em tempos de bombardeiros e carnificinas, o monoteísmo é a máscara medonha que esconde o politeísmo beligerante que impera no mundo. É preciso violar a verdade do outro para provar que está do lado certo da única e verdadeira criação.
Todos os presidentes norte-americanos, em funções de guerra, pediram ajuda de deus nos momentos difíceis, ou agradeceram e atribuíram a deus pela vitória. Da guerra pela independência, na segunda metade do século 18, à invasão do Iraque, em 2003, não deve ter havido um único combatente estadunidense, jovem ou velho, que não disparou contra outros homens guiado pela ideia da missão que deus lhe incumbiu. O incumbido pela providência mata não o ateu, mas outro incumbido da sua própria providência. Diante dessa realidade, duas opções: há mais de um deus, e todos esses adoram entrar em combate; ou, num caso de perversão, a fim de assistir a discórdia, o único deus que existe espalha diferentes histórias para seus filhos. Vence quem tem mais força material, claro; e sorte; mas também vence quem tem mais fé. Fé e febre, aqui, têm estreita relação, formam um mesmo caldo venenoso. Pois, no campo de batalha, o que dispara o fuzil ou lança as bombas não são as mãos dos homens, mas suas crenças.
§ O ideal fixo, fervoroso, levado no peito a ferro e fogo, produz uma grossa camada de resiliência física. Fora da zona da ideia maior, a ideia que rege a própria vida, a consciência trepida nos momentos de profunda dor: resta o extinto de sobrevivência, quando muito. Uma estreita relação entre fé e imunidade. Nesse sentido, temos que enaltecer cada comunista que foi torturado: resistir a inúmeras violências excruciantes, aparentemente insuportáveis a um corpo, beira o fenômeno místico — um misticismo flagelado. O ideal inabalável — o desejo de revolução, no caso dos comunistas — fortificava as estruturas internas e, assim, a função da própria vida pendia entre vitória e sacrifício. No momento do sacrifício, da carne dilacerada, vinha à tona, então, a alma da causa, valente, titânica. Sob essa ótica, os comunistas, mais uma vez, se aproximam dos mártires cristãos: a brutalidade contra o corpo vivifica o grito de fé. Não se renuncia à fé, jamais: se renuncia à própria dor, não importa a intensidade, em nome da fé.
§ Por que questiona a tudo e sempre, o ceticismo é o gesto intelectual mais insubordinado de todos. A suposta pessoa revolucionária, sem ceticismo, é apenas uma subordinada da rebeldia, uma dogmática da insurgência — subserviente de outra ideia intocável, por fim.
§ O que me impede de sonhar não é o mundo, mas a natureza do sonho: natureza de salto, que se distancia do mundo.
§ Sob as infinitas e viscosas camadas das nossas complexas imaginações, nossas crenças de linguagem, nossos delírios impalpáveis, a imperturbável e inexorável ordem do real, aqui e sempre.
§ Para a mente afundada no reino da ignorância, o real é o horror a ser velado a todo custo. Para a mente desperta, o real, não importa se manifesto como tragédia ou alegria, escassez ou abundância, é o bálsamo que deve sempre ser mantido em estado cristalino.
§ Alguém discursa sobre a mesa. O discurso não é o real. O real é a mesa e o som que a voz projeta no ambiente.
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Felipe Moreno