§ Apocalipse no miolo do calçadão. A paisagem é pacífica, os acontecimentos, corriqueiros. Mas o homem solitário, pobre, porém com traje formal, calhamaço sagrado na mão, prenuncia o fim. O juízo final está por vir há mais de dois mil anos. Não veio ontem, deve vir amanhã. Se não amanhã, depois, em breve.
na praça, o pastor
vocifera: espuma branca
no canto do lábio
§ Há quem pense que deus está em todos os lugares, sobretudo nos templos. Há quem diga que deus está em todos os lugares, menos nos templos. Há quem sentencie não haver deus em lugar algum. A igreja, numa das ruas mais nobres do Centro, apinhada de fiéis, pobres ou ricos, todos aprumados, limpos, entusiasmados. Fim do culto. A cem metros dali, na mesma calçada, um corpo descansa sobre uma única coberta fina e encardida. Os calçados sociais, lustrosos, impecáveis, dos homens de deus, passam rente, tão rente que escolhem desviar: tilintam e não veem a vida ali, deitada no duro e no sujo. O corpo da mulher, abandonado na multidão, sozinho, pecaminoso, no centro da horda dos justos e impecáveis. Abandonada entre os homens, fora do templo, mas agarrada nas palavras de deus, assim, mesmo na miséria, ela crê.
mulher sem-teto
dorme agarrada
à Bíblia Sagrada
§ Sobre os paralelepípedos centenários, o mesmo hare krishna, cabeça raspada, manto laranja, pilha de Bhagavad Gita nos braços, crocs nos pés. Olhos baixos, serenos, ele vaga, rodopia, aborda, ninguém para. A maioria sabe o que o rapaz tem a contar. São cantos de outra aurora, mística de outro tom: a mulher, quase senhora, católica, cruz de bijuteria sob o casaquinho (única a corresponder ao chamado), logo torce o rosto, dá risada esquisita, entre o deboche e o nervosismo, e escapa. Ainda assim, o hare krishna do Centro mantém compromisso, parece nunca desanimar. O hare krishna do Centro — que já foi motoboy, depois cantor de rap, depois hippie — tem todo o tempo do mundo.
entre a luz de Krishna
e a paz de Cristo
a loja de utensílios
§ Noite de céu nulo, estrelas apagadas pelas luzes da cidade. Acima dos prédios, nada a contemplar; abaixo e no horizonte, tudo invoca e seduz, invade e persuade: carros e comércios, placas e publicidades. Na metrópole, o sonho germina em concreto e ar-condicionado, em pneus e sofás confortáveis. O firmamento noturno é apenas cortina inútil, no máximo indicador de tempo firme ou chuva. Duas da manhã, muitos apartamentos com luzes acesas. Populações munidas de dispositivos e televisões gigantescas presas nas paredes, sempre ligadas, interagindo, tagarelando. Populações sem sono, sem sonhos. A varanda envidraçada, décimo quinto andar do prédio de classe média, três da manhã, transmite a mulher insone, meia-idade, banhada por luzes azuis, brancas e vermelhas da televisão de 65 polegadas, enquanto, na avenida à frente, um carro freia e o motor de uma moto estala em doze disparos agudos.
o som sobe
janela a janela
o sono some
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Abraços e até a farfalhada #35,
Felipe Moreno
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