A escrita fragmentária em cinco fragmentos
1. Fiel ao fragmento, a todo e qualquer gênero com natureza de fragmento, que se pretende ser fragmentário. É uma forma esquisita, aparentemente chula, preguiçosa, rudimentar, bruta. A sabedoria sensível do fragmento, no entanto, é pouco destacada e contextualizada. No meu caso, a escrita fragmentária — expressão concreta, em um ou poucos parágrafos — foi, por mais estranho que pareça, a descoberta do espaço amplo e livre, a maneira mais refinada e generosa que pude, enfim, dar vazão às minhas análises, argumentações, críticas, esboços, passagens, histórias minúsculas, aforismos, descrições quaisquer, divagações filosóficas e, principalmente, tecituras poéticas que, com exceção do haicai, já não me agradavam como versos.
Descobri, recentemente, que Novalis e Schlegel, ambos escritores alemães associados ao romantismo, entalharam a percepção de que o fragmento é a perfeita forma que permite a fusão da filosofia e da poesia. Dias antes dessa descoberta, fruto de uma pesquisa quase aleatória na internet, eu havia escrito: “Como prosador, ser poeta. Como escritor, ser filósofo”. Tem que ser poesia, mas em prosa. Impossível escapar da filosofia, mas necessário fugir da sistematização. Tem que ser pouco e muito, micro e macro, minúsculo e maiúsculo, trivial e sério, cômico. Tem que ser hibrido, miscelânea que não cabe num único gênero. Quem acolhe? O fragmento. Acolhe e satisfaz, ensina e liberta. Gêneros literários fechados têm cacoete por fórmulas e efeitos. Sistematizações filosóficas não apenas preveem uma análise fechada, linear, lógica, como abrem precedente à artificialização e, em casos exagerados, a falsificação do pensamento — porque demanda a geometrização do pensar, o encaixe lógico das ideias, a aglutinação matemática das percepções. Assim, esteriliza a organicidade, a pulsão, a crueza.
O fragmento prescinde de todos esses pilares duros, pretensiosos: flutua, divaga, irrompe. Está lá sem precisar explicar de onde veio; ficará lá sem obrigação de justificar para onde vai. Aliás, parece existir uma relação graciosa entre o fragmento e a flanância: divagação, despretensão, poesia tecida ao sabor da espontaneidade. Não à toa, a flanância instiga a escrita fragmentária, a anotação curta, brusca, espécie de lampejo intempestivo. Depois de um tempo, a flanância exige um caderninho e um lápis. E ambos, fragmento e flanância, tornam-se um único fio condutor a lugar nenhum, mas que caminha e expressa algo; que, livre da necessidade do efeito e do destino fixo, comprometem-se apenas com o presente transitar: expressão cristalina e pungente do aqui e agora.
2. Zuihitsu: gênero literário japonês, que existe há mais de mil anos. Gênero das pequenas miscelâneas: ensaios breves, notas, registros, fragmentos, relatos, e cuja principal intenção é a despretensão. Zuihitsu significa, literalmente, “ao correr do pincel”. No Ocidente, o gênero que mais se aproxima do zuihitsu é o ensaio. Mas zuihitsu é ensaio e mais: fragmentário por excelência, mesmo sendo gênero (sinônimo de gaiola), é desengaiolado por natureza.
3. Um concurso literário para romances: envio uma coleção de textos quaisquer. Uma chamada para publicação de um livro de contos: mando um original de miscelâneas. Um prêmio para obras de ficção (romance, conto e crônica): submeto uma leva de fragmentos autobiográficos. Um concurso de poesia: participo com uma seleção de prosas curtas. Um concurso, chamada, prêmio para textos sem classificação de gênero: ainda hei de inventar. Enquanto isso, participo dos que já existem: e posso pensar que nunca sou escolhido não pela falta de qualidade das coisas que escrevo, mas por nunca cumprir as normas.
4. Escrever fragmentos (não como esboço, rascunho para o que virá, mas, ao contrário, como obra acabada, ideal em sua forma destacada, flutuante); escrever fragmentos a lápis, neste caderno pautado, folhas cremes, substitui a dança que nunca aprendi a dançar, a música que nunca soube cantar, a imagem que sou incapaz de desenhar, os versos que já não quero tecer, a alegria e a liberdade que antes eram só pensamentos, teorias — pois a própria escrita de fragmentos é a concretização de certa alegria e liberdade.
5. Quem sabe eu possa explodir em um milhão de fragmentos escritos e, depois de tanto, silêncio.
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Felipe Moreno
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