Episódio XII - particularidades e idiossincrasiassias
Daí que eu comecei um curso de alemão B1. Daí que eu precisei fazer esse curso de alemão. E daí que eu fiz. Em três meses.
Não, não estou me gabando. É um lamento, na real.

Desde que eu mudei pra essa terra, eu estudo alemão. Porque, bem, é a Alemanha, as pessoas falam alemão e aprender essa língua é a obrigação civil mais básica de qualquer um que se preste a viver aqui.
O alemão não é uma língua fácil. Bem, nenhuma língua é, na real. Mas essa aqui é especial, um espírito complicado de apaziguar. Já estudei inglês e francês e também já flertei com outras línguas. Essa aqui eu diria que é um pouco fora da curva pra mim.
Eu estou nesse processo longo desde que eu mudei pra cá, em agosto de 2022 (pois é, o tempo passa rápido).
Por uma série de particularidades e idiossincrasias da vida, viemos parar aqui só com o inglês, que é uma língua franca mas não é a língua daqui, especialmente para as coisas mais críticas, como resolver contrato, falar com atendente e lidar com autoridades. Então, aprender alemão é preciso.
Se eu tivesse como mandar uma mensagem pro meu Eu do passado avisando que talvez fosse um bom negócio gastar dinheiro em curso de alemão, eu com certeza o teria feito. Teria facilitado muito a vida.
(Ou talvez isso tivesse desencadeado uma série de eventos que poderia criar uma outra realidade completamente diferente, vai saber…)
O ponto é que que a vida tem dessas coisas, dessas particularidades e idiossincrasias que te jogam em situações inesperadas nas quais que você não tem as habilidades e as ferramentas pra resolver e precisa se virar.
Sabe quando tu tá jogando joguinho e lá pelas tantas tu vai parar numa prisão sem o seu equipamento, nem habilidades, nem magias e você precisa dar um jeito?
É por aí.

Apesar de ter chegado em agosto de 2022, eu demorei uns bons seis meses pra começar formalmente o primeiro curso (particularidades, idiossincrasias da vida etc.). Comecei em fevereiro de 2023, na VHS (Volkshochschule, uma escola daqui que oferece cursos a preços acessíveis).
E lá fui eu todo pimpão pra minha primeira aula com o livro do curso, caderno e material escolar num horário horrível e num lugar muito esquisito da cidade, que tinha cara de shopping misturado com aqueles prédios vazios tipo stranger things. Acho que a tentativa foi de fazer um grande projeto urbanístico com centro comercial e de escritórios, mas que nunca vingou porque não tinha nada por lá, nem um café mequetrefe. O lugar era vazio e ninguém ia lá por nada… exceto os alunos da VHS e um box de Crossfit escondido em um canto.
Lá eu conheci minha primeira professora, a Ursula. Ou Uchi, como ela gostava de ser chamada. Uma senhorinha muito fofa que falava super bem.
Mas meu deus, que porrada que foi o primeiro curso.

É difícil falar uma lingua quando você não sabe falar uma língua. Entender é difícil. Sacar o contexto das coisas é difícil. Entrelinhas são impossíveis porque nem a literalidade é possível aínda. E eu ficava lá meio mudo sendo atropelado pela ausência de sentido das palavras.
E no começo é meio que isso mesmo: silêncio e só ouvir.
Meus colegas todos falavam alguma coisa já, então eles meio que puxavam o ritmo da aula pra frente. Muito árabe e muito Turco. Puxavam papo comigo e eu tinha que dar aquele sorriso amarelo e tentar responder de alguma forma.
Se a primeira coisa é ouvir, a segunda é não ter vergonha. Essa situação toda me ajudou a criar um verniz de cara de pau, porque era tudo muito awkward, ali bem no limiar do engraçadinho e do triste quase condescendente.
Uma hora ou outra a gente conversava em inglês, mas era algo que a Uchi não curtia, porque dava uma desvirtuada na aula. E eu entendo o ponto dela. Era o botão de emergência, quando a gente precisava que as coisas ficassem entendidas, mas que sempre dava uma sensação de ser derrotado por uma língua e ter que apelar pra outra.
Foi um curso longo. Comecei em fevereiro num inverno gelado desses que não neva mas venta pra caralho, num descampado longe da cidade e com um céu que ficava preto às 17 horas. Durou até o meu primeiro verão aqui, quente pacas, com o céu azul às nove da noite e muito calor.
As aulas acontecuam duas vezes por semana, toda terça e quinta. Eu saía antes da minha esposa acabar o expediente e chegava por volta das nove. Quando eu não deixava comida pronta, ela tinha que fazer e depois eu ainda dava um jeito na louça.
Foi difícil, mas foi. E eu considerei uma vitória ter terminado o curso, porque mesmo falando muito pouco eu saí de lá sabendo mais do que quando eu entrei. Essa vitória, apesar de modesta, era minha.
E era apenas o módulo A1.1.

Vieram as férias de verão, e eu me matriculei no módulo seguinte, o A1.2., no finalzinho de setembro. Deu pra descansar um pouco. Mas, diferente do primeiro módulo, neste eu dei o azar de pegar uma professora péssima.
Não foi uma professora péssima qualquer: ela conseguiu levar o título de pior professora que eu já tive na vida. De tudo que eu já estudei e fiz aula, de curso livre à faculdade, presencial e online. Ela ganhou de todo mundo. E olha que o que não me falta na vida é experiência de ter aula com professor babaca.
Assim, ela nem era má pessoa. Pelo contrário, era gente boa até, chegava na hora e era bem amistosa.
Só que ela não era professora e nem sabia dar aula.
Cada aula dela consistia em:
1 - Pedir para a gente abrir o livro na lição da vez;
2 - Mandar a gente fazer o exercício em pares seguindo o livro;
3 - Pedir pros pares de alunos corrigirem os exercícios uns dos outros;
4 - Repetir o processo.
Sério, era deprimente.
Cada aula que passava cada vez menos alunos vinham. Eu lembro da turma começando cheia, com umas vinte pessoas de várias nacionalidades, e acabando com meia dúzia de gatos pingados que conseguiam ir a todas as aulas. Quem faltasse, nesse esquema torto de aula, ficava muito pra trás.
Tinha gente que vinha de países que não usam o alfabeto romano, ou que não tinham os mesmos fonemas. O processo todo era ainda mais cruel com eles, num curso que supostamente deveria ser inclusivo.
Eu levei aquela porra até o final por uma questão de honra e porque eu gastei uma boa grana na taxa do curso e no material.

Acabei o curso no final de 2023 pouco antes do natal, sem entender quase nada do A1.2 mesmo depois de muito custo e sacrifício.
Foi péssimo, horrível, muito ruim. E nessa caíram muitas fichas. Já que o aprendizado do idioma não rolou, o jeito é se apegar no “silver lining”, não é mesmo?
A primeira conclusão foi a de que o meu tempo é precisoso. Eu não posso perder tempo com bobagem, porque vai faltar pra outra coisa importante;
A segunda foi a de que eu nunca mais na minha vida gastaria o meu precioso tempo da minha breve existência nesse mundo em aula ruim.
A terceira: se eu sozinho consigo fazer melhor que professor ruim, então ele não se justifica. Melhor teria sido se eu tivesse comprado um livro pra aprender em casa por conta própria logo de antemão, economizando dinheiro e tempo.
Quarto: estamos em 2025 e é incrível como que o ensino consegue ser excludente de tantas formas.
E foi com esse espírito que eu comecei o ano de 2024.

Na época a minha esposa também estava procurando um curso pra ela, e ela decobriu uma modalidade de cursos de self learning do Goethe Institut que eram (na promoção, claro) mais ou menos na mesma faixa de preço do que a gente tava pagando pra VHS.
Você se inscreve, paga a taxa e eles eles liberam o acesso à plataforma com os materiais e os exercícios. Aí você loga e vai fazendo tudo até acabar, bem gamificado.
É melhor que curso com professor bom? De maneira nenhuma. Mas é melhor que curso com professor ruim e me custou a mesma coisa.
O que pega: você tem três meses pra terminar tudo antes que o acesso à plataforma seja bloqueado. Para liberar, só se matriculando (e pagando) de novo.
E não parece, mas três meses é muito pouco tempo. E é nessa que muito aluno se fode, porque se quiser começar (ou recomeçar o curso), tem que pagar a mesma taxa novamente.
O inconveniente de estudar em casa é que você fica visível aos habitantes do lar. Antes eu saia para estudar num lugar onde não precisava me preocupar com criança ou lidar com contratempos. Em casa, eu já não tinha mais esse resguardo, e precisava exercer meu papel de adulto responsável, e isso deixa o processo digamos um pouco mais turbulento.
Outra particularidade é o ritmo da coisa toda: pro curso andar você precisa logar regularmente e fazer os exercícios, mas se fizer coisa demais o seu cérebro frita. O jeito é fazer noo ritmo correto, naquele sweet spot de uma aula por dia, religiosamente. Só que é difícil manter esse ritmo intocado.
Tem as particularidades e idiossincrasias da vida que acabam atrapalhando: filho que ficou doente, esposa que precisou ir num treinamento, faxina pendente, máquina de lavar cheia de roupa, jantar por fazer, mercado ou a pura e simples exaustão física e mental que me faziam capotar de sono. Eu prometia a mim mesmo que no dia seguinte eu iria compensar mas não compensava, por pura exaustão.
Todo final de trimestre, quando faltavam poucas semanas pra acabar o acesso, eu precisava correr com os cursos. E isso implicava em fazer as coisas meio nas coxas, sem o devido tempo pra fazer o negócio direito.
Se o curso tivesse um acesso de quatro a seis meses seria ótimo pra mim, mas eu duvido que eles façam isso na plataforma porque implica em perder dinheiro. Eles devem faturar uma baba com aluno que abandona o curso - e nesse aspecto, me pergunto se a arquitetura do curso também não é moldada pra fazer o aluno desistir.

E assim eu fui até o B1. Foi quase um ano inteiro.
O B1 não é exatamente difícil, mas é bem cansativo. São textos e áudios longos, com cara de texto real e sem aquela pegada “the book is on the table”. Tudo demora mais pra ser digerido, e o tempo contado e a vida acontecendo não ajudam.
Chegava uma hora que eu tava meio que fazendo malabares entre hora de curso e tarefas domésticas, desopilando aqui e ali pra conseguir dar conta. Acho que se não fossem os treinos da academia, o estresse seria ainda maior.
Mas eu acabei, e agora muita coisa tá bem clara pra mim no alemão. Muita coisa que eu não pegava eu já pego só de bater o olho, sem ter que pensar muito. E é nesse patamar que eu quero chegar.
Também percebi umas coisas sobre os meus processos de trabalho e aprendizado. Essa coisa de, apartir de um determinado ponto, meter o modo embrulha e manda porque é o que dá.
Larguei leituras, meditações e tudo mais pra conseguir fechar o curso no prazo. A vida segue, mas paradoxalmente é ela que é sacrificada para que ela possa seguir. E enquanto faz tudo aos trancos e barrancos, fica se perguntando porque diabos fez as escolhas que fez - se poderia mesmo ter feito de outro jeito, se não foi falta de escolha na real.
E eu gosto de estudar mas é difícil dar conta de tudo quando o tempo é curto e você tá submetido a uma carga intensa de exercícios, porque você precisa aprender pra ontem.
Por hora, quero me divertir e sair um pouco desse paradoxo. E acho que pelos próximos meses vou estudar só lendo os textos das revistas de guitarra que eu compro.