Educandário Esotérico Dr. J.S.

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September 17, 2024

Episódio 9 - a Terra (os quatro elementos)

Daí que compramos este livro. Foi direto para a biblioteca da cozinha, que fica em cima do microondas, perto da bancada, longe do fogão e do exaustor porém perto da comida.

Salt, Fat, Acid, Heat: Mastering the Elements of Good Cooking

Eu conheci o trabalho dela graças ao reality que ela fez em 2018 pela Netflix. Não lembro se assisti ainda em 2018 ou 2019. O que eu sei é que o livro me deu uns lampejos de memórias felizes pré-pandemia.

Se pensarmos em termos históricos, o primeiro lockdown aconteceu tem alguns poucos minutos. A sensação de tempo passado, entretanto, e as memórias da época - incluindo aí os anos imediatamente anteriores - ficaram um pouco embaralhadas e turvas na mente de muita gente1. Consigo lembrar das sequencias de eventos até mais ou menos nessa época. Depois vira tudo um novelo.

Por exemplo, tenho lembranças do meu primeiro ano trabalhando na escola como se tivesse acontecido depois do meu filho nascer. Mas ele nasceu em 2020, pouco antes do primeiro lockdown e eu fui contratado no final de 2018. Ele nasceu quando eu já tinha um ano de casa, mas eu não lembro disso naturalmente. O que eu lembro é de dias iguais, com tudo deserto, sem barulho de carro nem nada.

Eu precisava consultar o telefone pra lembrar o dia da semana. O tempo parecia um enorme kairós cagado, um tempo fora do tempo, como um desses sonhos esquisitos onde tudo é uma espécie de presente onírico bizarro e que você não lembra direito a ordem em que as coisas aconteceram.

Mas lembro que ele me trouxe muita felicidade na época. Eu amo comer, gosto de cozinhar e a chef Samin Nosrat fala de comida e cozinha de um jeito muito contagiante.2 Na época eu ainda tava hypado pela série Chef’s Table, que é ótima mas me deixou órfão muito rapidamente. E foi uma surpresa ver o trabalho da chef, que é uma das pessoas mais fofas do mundo (uma raridade de encontrar entre chefs de cozinha).


O livro parece um desses grimórios caros que ocultista adora, tanto pela qualidade do papel, e da impressão (sério, olha essa capa) tanto pela forma como a autora estrutura os pilares da boa cozinha, em quatro elementos (sal, ácido, gordura e calor) - ou cinco se você considerar que o ato de provar a comida é aquele pilar oculto, o éter quintessencial que transforma a cruz/quadrado num pentagrama. Se tem uma lição que ela faz questão que todo aluno aprenda, é essa: provar, provar e provar de novo.

É legal relembrar essas coisas e sentir a continuidade se reconstruindo com memórias afetuosas e antigas. É como se aquela lente nublada e suja estivesse finalmente se descolado das memórias, e agora eu consigo triangular as coisas e juntar lé com cré, passado, presente e futuro. Consigo lembrar por exemplo do episódio que ela foi pra Itália visitar as fazendas de azeitona e uma criação de porcos, mostrando como que os diversos tipos de gordura eram usados na cozinha. O que está fora é como o que está dentro, e as lembranças felizes que me remetem às coisas que valem a pena nessa vida refletem a tinta impressa no papel.

Na época eu não tinha filho, e cozinhava com uma vida e uma cabeça diferente da de hoje. Hoje o garoto tem quatro anos e está começando a desenvolver o próprio paladar, apesar de estar naquela fase “picky eater” chata da infância. Cozinho bastante pra ele, mas até um tempo atrás não tinha uma cozinha legal e equipada pra fazer as coisas como eu gosto. É tá sendo bem legal reestabelecer esse contínuo.

A série, claro, tinha aquela pegada de entretenimento chique e culto. O livro tem mais cara de manual, e se atém um pouco mais à manipulação dos elementos, suas técnicas, premissas e implicações. Coisa que não dá pra esmiuçar no formato de minissérie.3 Não é exatamente um livro de receitas como os que tem por aí - e a autora deixa isso bem claro na primeira página - mas vale muito a pena ter em casa.

Resumindo a obra: tem quatro elementos básicos que garantem que qualquer prato preparado funcione, independente da cultura ou dos ingredientes: o sal (o tipo, a quantidade e como é aplicado), as gorduras (seus tipos, quantidades e a forma como são usadas), os ácidos (mesma coisa) e o calor (que pode ser fogo, brasa, indução, refogado, sous-vide, etc.). Quem entender esses quatro elementos e sua alquimia se liberta da prisão das receitas rígidas e entende o cosmos que é a cozinha e a transmutação de ingredientes vis em uma comida dourada e saborosa.

Seria uma teoria de tudo? Tenho lá minhas dúvidas quanto a teorias de tudo, mas de tudo que eu já li sobre cozinha é o que mais chega perto.


Sinto uma pontinha de saudade, de lembrar supostos “tempos mais simples”4, quando a gente tinha mais tempo pra assistir reality show bom depois do jantar e antes de dormir pra acordar e ir pra escola trabalhar no dia seguinte, assim bem pequeno-burguês.5

Depois veio emprego, filho, pandemia, mudança de país por conta do emprego novo da esposa, adaptação, curso de alemão, procura por uma casa nova, mudança, adaptação à escola nova da criança, mais curso de alemão e finalmente férias pra depois começar o segundo ano da criança na escola. Foi um caminhão de coisa, uma atrás da outra.

Recentemente que as coisas começaram a se assentar pra gente. Talvez seja só a família se ajustando e se familiarizando ao que antes parecia o girar da roda da fortuna. Mas talvez fosse só uma paz mequetrefe. Com todos os problemas, não troco a vida que eu tenho hoje pela que eu tinha na época. A história não se repete, mas rima, e cá estamos nós com o dicionário de rimas aberto.

É legal aos poucos ir retomando certas coisas que a gente para de fazer em algum momento. Não é mais o que era, mas pode ser outra coisa impensável e impossível antes, e que agora é factível. E o que parece uma distorção ou um buraco negro de memórias difusas começa a ganhar forma e nitidez e fazer parte do contínuo da mente.6

Porque é o que tem pra hoje e o que tem pela frente. É o chão que eu estou pisando. A mesa está posta, e o mise en place dos elementos está pronto para ser trabalhado.

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Ilustração do arcano I do Women of Science tarot. Foi publicado pela MIT Press e vende na Amazon.
1

Na minha eu sei que ficou, e muitos amigos e amigas relatam a mesmíssima experiência.

2

Agora por exemplo estou lembrando do quanto ela falava da importância do terroir, de como a comida nada mais é do que um epifenômeno da terra que a produz. Isso era por volta de 2018. Estamos em 2024 da crise climática, com seca recorde na região norte do Brasil, uns cinco meses mais ou menos da maior tragédia climática do Rio Grande do Sul e o pais engolido em fumaça de queimadas e chuva preta. Com o perdão do trocadilho, é como se tivesse jogado sal na minha angústia.

3

Dize que a série foi feita pra vender o livro é uma tremenda injustiça, ainda que este papel tenha lhe caído perfeitamente bem. Mas, o livro é bom, a série é boa, então tá tudo bem.

4

Eu sou contra saudosismo e nostalgia porque eu tendo a achar que é uma visão turva e distorcida da realidade de uma época com os vieses todos de uma época futura. Acertar a percepção da realidade é um exercício do impossível.

5

A série era de 2018. O máximo que eu tinha de preocupação leve na época era o Alckmin ganhar a eleição do Haddad, enquanto o Bolsonaro era só um azarão correndo por fora. Bom, deu no que deu. Os algoritmos já estavam bombando naquela época.

6

O mundo externo pode não estar tão íntegro quanto o interno, mas ainda é melhor do que os dois zoados. Se pá é pre-requisito.

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