Episódio 8 - A esfera Lunar (o Buda apontando para a Lua no meio do Samsara)
Se não fosse uns dias bem ruins seguidos de umas férias bem boas, talvez eu continuasse no mesmo ciclo compulsivo de abrir rede social no tédio ou na descompressão. Talvez nem tivesse descoberto isso aqui e… começado outro ciclo (no caso, ir postando a cada semana alguma coisa e ver no que dá.
Os ciclos naturais, quando imaginados pela mente divina1 e incorruptos pelo ser humano (oi crise climática), são considerados marcos estruturadores da vida e da natureza - as quatro estações, o ciclo do dia e da noite, as marés, etc. O mundo existe porque se regula (ou regulava) desta forma.
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O problema é a recursividade da mente humana, essa enorme ouroboros retroalimentada que perdura aparentemente pra sempre. Não é à toa que o ciclo do Samsara (que em Sanscrito significa vagar por aí sem rumo) tá aí tem bastante tempo mandando a real sobre a experiencia humana mais rasteira. E pelo jeito vai continuar por um bom tempo.
Seria a mente humana um espelhamento da natureza?2 Boto fé que sim no caso do que seria um “software mais básico” da nossa cabeça. Mas é no mínimo curioso (e de certa forma auspicioso) que os aspectos mais problemáticos da nossa psique envolvam algum tipo de ciclo que permita ao comportamento se perpetuar. Assim como os ciclos naturais permitem que a natureza siga seu curso de alguma forma mais ou menos estável, assim é a nossa mente cheia de perturbações.
A gente não escapa fácil da nossa própria recorrência, de fazer o que a gente fazia porque era o que a gente fazia, mas ao menos podemos tentar colar em ciclos virtuosos ao invés de viciosos3
Não é fácil, pois esses ciclos de compulsão, repetição e recursividade operam de dentro da nossa mente. A gente abre o app da rede porque de alguma forma subliminar nossa mente entende que ali tem alguma promessa de coisa boa que dá uma coceirinha em alguma memória mais feliz e gostosa.
Ninguém abriria app algum se não fosse por essa promessa.4
Ao menos pra mim, a é como ir ver o que os amigos estão fazendo e dar um alô. Só que eles não entram mais lá tem tempo, os que entram eu não vejo porque o algoritmo não deixa e tudo que tem agora é bot, propaganda de aposta, tigrinho, ascensão da extrema direita ou crise climática. Um resquício do Rafael de 2002 que se senta ao computador e abre o ICQ ver se tem alguém pra conversar e é transportado em primeira pessoa pra um cenário distópico de ficção científica que na real é documentário.
É quase um atavismo. Eu mudei, meus amigos mudaram, minha vida mudou, o mundo mudou e lá estamos nós fazendo girar um negócio que também tá mudando na mão das big techs pra algo possivelmente assustador que só a mente divina sabe. Algo muito diferente daquela primeira experiência que pode até ter sido muito legal, mas que já passou e não volta mais. A gente quer rodar o app mas a essa altura é só o app que roda a gente.
Da lama nasce o lótus, e talvez se não fosse o sofrimento inerente a esse inferno que virou a internet, eu jamais teria botado a tal da trava nas redes. Jamais teria cogitado abrir isso aqui e pensar alguns pensamentos. Uma coisa é desdobramento da outra.
Segundo a suposta lógica dos algoritmos (lembrando, eles são uma caixa preta), o que aparece pra mim de certa forma é um espelhamento dos meus gostos, escolhas e personalidades. O que está dentro é como o que está fora, e o que está fora está sendo entregue porque é isso que importa para o que está dentro. Aí fica a dúvida se uma pessoa muito diferente de mim (um fã real do Pablo Marçal, por exemplo) está tendo uma experiência ótima vendo essas coisas todas.5
Daí que ontem apareceu um monte de perfis e matérias sobre o fenômeno que o Meta chamou de Feed Zero. Nele, pessoas da Geração Z estão usando somente as funcionalidades das redes que não geram postagens permanentes. Basicamente, nada de fotos ou reels (daí o termo, feed zero, sem nada) e eles interagem por DM ou stories, que ficam online por algum tempo e depois somem do feed.
Me parece uma espécie de ressaca de rede social de uma geração que cresceu com uma tela e uma câmera apontada desde sempre e que quer se preservar. Pro usuário, é um detalhe do uso. Mas pra empresa de rede social, faz muita diferença.
Seria o comecinho do fim? Uma nova mudança drástica nas redes? A ver.
Da minha parte, talvez valha a pena botar as travas de app de novo. Tenho um curso pra terminar e muita coisa pra ler.
Segundo textos herméticos clássicos e alguns textos gnósticos, o mundo é a manifestação final e grosseira de uma mente divina (que nesses textos é chamada de Nous). Essa de que uma mente superior, divina, transcendente, imanente e maior do que a vida é capaz de manifestar um universo que funcione com as coisas todas no lugar é bem antiga, e não é exclusiva das religiões abraâmicas. Enquanto mito ou teosofia é muito legal, mas não serve para explicar a realidade e suas complexidades.
Tem uma discussão filosófica infinita aí, começando com o que é Mente, o que é Natureza e o que é uma coisa espelhar outra. Mas estou levantando uns paralelos à moda caralha como quem filosofa em mesa de bar - pode não ser nada demais e é provável que tenha algum conceito errado a ser corrigido por mestres budistas, mas é uma dúvida sincera e honesta que serve como ponto de partida igualmente sincero e honesto.
Basicamente este é o resumo de qualquer caminho espiritual.
Inclusive é o que pode fazer um app morrer. E é por isso que se investe tanto em pesquisa de comportamento pra manter o usuário logado pra sempre - vide os Tigrinho e sites de aposta da vida.
Novamente, tem toda uma discussão filosófica aí do que é ótimo. O fã do Pablo Marçal pode realmente se inspirar numa figura como ele (que dentre outras coisas tem uma condenação judicial por crime de fraude) como modelo a ser seguido, e tomar o tipo de coisa que ele faz como virtude e sua conduta como modelo. Por um tempo a pessoa pode até se iludir trocando certo por errado e o errado por certo e obter algum tipo de (suposta) vantagem, mas uma hora as consequências chegam. E sabemos como opera o dildo das consequências.