Episódio 6 - A esfera de Vênus (espuma do mar, brisa, água de coco e venenos)
Daí que estávamos de férias.
Daí que um belo dia a gente estava passeando em família e lá pelas tantas agradecemos felizes aos céus de não ter que ficar pensando todo santo dia no que comprar para fazer o jantar ou em descer a roupa do varal no último andar do prédio que só tem escada ou em qualquer outra preocupação do dia a dia que aos poucos vão somando e sorrateiramente ocupam toda a sua mente até dar oito da noite e você se ligar que precisa colocar a criança pra dormir logo para depois ir deitar e repetir o ciclo do Samsara Capitalismo no dia seguinte.
Lá pelas tantas minha esposa disse:
“ - É a primeira vez que a gente sai de férias desde antes da pandemia.”
De fato. Faz uns bons anos que eu não dou uma desopilada boa real oficial valendo. Com filho inclusive, pois embora ter filho seja muito legal, envolve um trabalho, uma logística e uma responsabilidade gigantesca que tá ali o tempo todo. Cansa e toma tempo.
Tivemos um combo de filho nascendo, muito trabalho, mudança, outra mudança, filho indo pra escola nova e agora conseguimos parar um pouco, inclusive pra ver amigos e familiares1. Tudo isso em quatro anos e meio, sem férias de família valendo.
Tem certas clarezas de pensamento que só vem quando você tá olhando a vida no horizonte à sua frente ao som do vento e do mar quebrando segurando um coco aberto na mão.
E isso é importante. Talvez a mais fundamental de todas as importâncias - recai naquele problema do peixe que não é capaz de olhar o oceano enquanto está imerso nele. E nesse mundo do capitalismo tardio, as rotinas de trabalho viram fácil esse oceano.
Primeiro, o sentido das coisas. Por que caralhos a gente faz o que faz, escolhe o que escolhe e sofre por conta das escolhas que fazemos, conscientes ou não.
Por exemplo, por que a gente sofre trabalhando pra caralho?2
A minha resposta: pra isso, curtir a família, os amigos, o tempo livre e as coisas boas que o contato com o mundo material no oferece antes da gente partir dessa vida pra outra.3
Tem outras? Tem. Cada um sabe de si. Convém saber.
Houve um tempo em que as redes eram lugar de encontro e troca com pessoas conhecidas.
Por exemplo, teve uma época em que tinha uma rede chamada 4Square, onde as pessoas podiam marcar encontros em lugares, conversar sobre, dar notas e tudo mais. Quem é velho vai lembrar. Era uma época em que o Facebook não era o Leviatã que é hoje, sem algoritmos e Cambridge Analyticas da vida e sem a internet ser um enorme experimento de manipulação e controle social por parte de grandes empresas.
As redes sociais meio que eram tudo mato. E esse mato metafórico foi devastado (certeza que tá contribuindo com a crise climática de alguma forma)
Era legal usar aquilo. Era divertido. Tinha um tipo de interação social e contato entre pessoas genuíno, mediado por uma tecnologia. Era comum ver jornalista em caderno de cultura olhar aquilo tudo com bons olhos. E foi esse tipo de coisa, esse tipo de uso que alavancou o uso das redes, como extensão da vida em sociedade. Claro, tinha os percalços inerentes à qualquer interação social (“puxa vida minha ex-namorada marcou presença naquele lugar que eu vou hoje, agora quero ir em outro lugar etc.”). Mas não é como é hoje, em que qualquer tweet com notícia ou comentário político relevante é inundado de bots de extrema direita pregando ódio e desinformação.4
Me pergunto se é esse tipo de coisa que eu ainda busco ao puxar o telefone do bolso e abrir um Instagram da vida pra postar uma foto de viagem com o meu filho pros meus amigos e minha família em outra cidade verem.
Porém, eu sei que a maior parte do tempo, é compulsão pra matar o tédio entre uma tarefa e outra. Nesse aspecto, a sobrecarga do capitalismo te joga pra dar aquela desopilada nas redes, enquanto o algoritmo tá ali prontinho pra dar o bote.
Por hora, sigo sem as travas e bloqueios de app. Vejamos como as coisas se desenrolam.
Até então, a gente conseguia tirar férias de forma alternada. Enquanto um trabalhava, o outro precisava ficar em casa cuidando de filho pequeno e/ou resolvendo coisas. Capitalismo at its finest.
Capitalismo e mais valia primeiramente, mas infelizmente é o que tem pra hoje eu não vejo muito como mitigar isso, visto que o mundo do capitalismo tardio e da crise climática resolveu emburacar pelos caminhos da direita. Tomo isso como um certo atavismo coletivo, que vendo o mundo mudar, resolve se apegar ao que supostamente funcionou até agora mas que já não tá funcionando bem tem umas boas décadas.
E isso é anterior à invenção do capitalismo.
Quase sempre uma conta que tem umas dezenas de seguidores e seguidos, uma arroba do tipo fulanodetal234124123 e posts que variam entre o liberalzão e o fascista. Variam as notas - pode ser racismo, pode ser uma misoginia de leve, etc.