Episódio 22 - Dukkha (a insatisfatoriedade sobre tudo que é e o que poderia ter sido, para o bem e para o mal)
Eu não toco guitarra desde que a gente voltou do Brasil.
Tem horas que eu me pergunto como isso foi acontecer. Assim, é parte uma parte importante de mim. É algo que eu faço desde que eu me entendo por gente e que ajuda a dar sentido à minha vida. Também já foi inclusive o meu ganha-pão algumas vezes - menos do que eu gostaria, ganhando menos do que o meu trabalho valia, mas que ao menos me proporcionou momentos memoráveis.
Em retrospecto, só consigo pensar em sobrecarga e esse oceano de coisas a resolver que é a vida adulta, especialmente de expatriado. Da lista de coisas que eu fiz em 2024 e de tantos itens dessa mesma lista que eu fui deixando pra depois até 2025. Entre urgências, é difícil parar e fazer o ritual do estudo. O mundo segue o seu rumo, e se a gente não dá uma pisada pra valer no freio, simplesmente não começa nunca.
É mais ou menos como treino de academia: tem dias que você tá na preguiça e sem ânimo nenhum pra levantar uma almofada que seja, mas precisa se arrumar e se deslocar até lá na força do ódio e começar o ritual pra coisa engrenar e o treino sair. Pode não ser o melhor treino do mundo, mas a rotina é isso: um oceano de sessões medianas que ao longo do tempo acumulam resultados.1 Serve pras aulas de alemão, pros estudos místicos e astrológicos, pras práticas diárias, etc.
Num desses dias de estresse e desespero a minha esposa mandou uma pequena pérola de sabedoria num momento de conversa: de vez em quando a gente precisa deixar uns pratinhos cairem no chão, ao invés de tentar se desdobrar em mil pra dar conta de algo humanamente impossível.
Alguns pratos eu consegui equilibrar numa boa (academia, por exemplo), outros não tão numa boa assim (curso de alemão) e teve esse que eu larguei de mão tem… sete meses?
Mas tem o outro lado.
Desde que a gente mudou eu não tinha sequer um cantinho adequado pra mim.
A prioridade era o trabalho da esposa, e a gente conseguiu montar um home office ok pra ela na primeira casa e um melhorzinho nessa de agora. Mas pra mim? Ficou faltando o meu canto.
Claro, podia abrir meu computador em qualquer lugar pra trabalhar. 2Podia tocar violão ou guitarra no sofá da sala. Também podia abrir o tarô em qualquer superfície disponível - a cama, a bancada da cozinha, a cômoda, o que fosse. Vai no improviso, meio de qualquer jeito.
Foi assim durante um tempo. O problema é que não dá pra levar a vida toda meio no improviso, de qualquer jeito. A minha versatilidade me traiu, e eu custei pra me ligar.
Isso ficou nítido na academia: nos dias que eu vou lá, é um horário separado do dia num lugar específico e todo adequado para a prática do exercício, onde eu não vou ser solicitado ou interrompido.
Eu também não senti falta da rotina diária, o que me preocupa um pouco. Idealmente, músico estuda sempre, e sinaliza isso com mais frequencia ainda. Pra todo mundo.
Isso gera um sentimento de inadequação que beira uma questão moral (e que tem uma dose cavalar de insegurança envolvida). É a mesma coisa com as práticas espirituais que você vai fazendo do jeito que dá pra caber na vida atribulada que a gente leva.
Talvez fosse mesmo pra eu ficar esse tempo off? Talvez. Será que o problema maior é eu ficar me cobrando um rendimento que não vem, num momento inoportuno, ao invés de descansar e ir cuidar de outras coisas mais urgentes? Talvez.
Acho que ter ficado em paz com esse hiato é uma boa coisa, no geral. Tem umas verdades aí nessa pausa.
Só que semana passada chegou o meu amp novo. E hoje eu fiz o primeiro teste. E é claro, a mão sentiu.
Os reflexos não estavam tão afiados e nem a memória muscular. Mas estavam lá. Por outro lado, uma das minhas músicas favoritas simplesmente veio. Meio torta, suja, um pouco fora do tempo e com os voicings meio embolados, mas veio. Resolveria a vida em um show num bar ou numa festa, mas não funcionaria numa gravação.
Mas puta merda, que som o bichinho tem. Puta que pariu.
Eu fiquei emocionado pensando no Rafael adolescente estudando com uma guitarra ruim em amp ainda pior no quarto, para o desespero da minha família, sonhando com o dia que ia finalmente tocar num Marshall valvulado. Sou eternamente grato por todas as bênção e méritos, pois esse dia chegou.3
E é bizarro como que o negócio responde. É tipo andar a vida inteira de carro popular usado com muitos anos de uso e do nada andar num esportivo desses de milhões de dinheiros que responde até a intenção mais leve do motorista.
Sério, tem muito botão pra girar e muita configuração pra testar.
Talvez uma marca da maturidade musical é conviver com o fato de que o som nunca vai estar bom. Ou melhor, nunca vai estar perfeitinho, exatamente do jeito que você gostaria. 4
Sempre tem uma peça pra estudar e um ajuste pra fazer. Sempre tem umas idiossincrasias pra resolver. E quando a música parace que está devidamente polida, a vida real fora da cadeira de estudo nos chama.
Quando não é o equipamento ruim que você precisa lidar com as limitações, é o equipamento bom que você ainda não sabe como que faz pra tirar tudo que ele pode oferecer.
Nada nunca está bom pelas condições que tem, nem nunca vai estar. Só que eu preciso me lembrar disso, e ficar em paz com isso.
Eles são valiosos. Não pense que por ser mediano é ruim. Porque não é. Porque é algo que existe, que acontece, ao contrário do perfeito hipotético.
Logo eu descobri que ficar muitas horas na cadeira desconfortável da mesa de jantar não só era péssimo pra minha coluna como estava entortando a cadeira, que não aguentava aquela carga toda por tanto tempo. O improviso também me custou um pouco do meu corpo.
O rolê agora é dedicar ao benefício de todos os seres sencientes.
Pode acontecer, e tem gente que encontra seu Santo Graal na música e fica com aquele som pro resto da vida. Mas aí eu acho que é mais sorte do que qualquer outra coisa.