Episódio 2 - A esfera de Saturno (métricas de tempo)
Daí que eu decidi botar um limite diário de horas de rede social.
Um timer para cada rede de uma hora, a contar da meia noite. Sessenta minutos para o Instagram, outros sessenta para o Twitter, que contabilizam duas horas ao todo1. Deixei de fora o acesso de desktop porque não tinha como - se tem eu não sei, e por hora não quero me dar ao trabalho.
Aí vira uma questão de força de vontade ou de coerência.
Força de vontade porque se eu quisesse limitar ainda mais, teria que fazer de outra forma ou na força bruta. E eu já tenho coisa pra caralho pra fazer (deve ser uma das supostas vantagens da meia idade2.
Coerência porque na real eu não acho que uso de rede social por desktop seja um problema. O problema é o retângulo preto que vai no bolso e que tu puxa em toda a hora e lugar.
Convém dar limite ao limite.
De cara eu descobri que uma hora é pouco tempo para a compulsão. Quando se somam os minutos todos de acesso às redes - dois minutinhos aqui enquanto a comida esquenta, mais uns cinco ali na rua enquanto espero o Tram chegar, mais três na fila do mercado - o tempo se esgota muito rápido.
Quando o tempo acaba aparece um aviso dizendo que o aplicativo será bloqueado e reiniciado à meia noite. Objetivamente, uma hora é uma hora, mas a sensação que fica é que você não viu quase nada e interagiu muito pouco.
Reparem que eu não estou avaliando o teor das possíveis interações. Independente do que eu veja nessa horinha de uso - se é conteúdo bom ou ruim, se é desgraça ou meme engraçado - sobra no fim aquela sensação de “ok, o que eu faço agora?”3
Pelo resto do dia eu fiquei tentando abrir um aplicativo que não abre, tipo quando acaba a luz e você aperta o interruptor várias vezes pra ver se a luz volta sendo que o problema não é o botão e essa ação não vai fazer diferença alguma.
No primeiro momento vem aquela sensação de trouxa de segurar um supercomputador que não serve pra quase nada, porque a principal função dele foi desativada. O telefone vai pro bolso e três minutos depois ele volta pras minhas mãos pra repetir o ciclo. E de novo, e de novo, enquanto olha pro ícone em preto e branco que informa que o seu tempo de aplicativo terminou pelo resto do dia.
E assim o ciclo vai se repetindo, até aparecer outra vontade ou coisa pra me ocupar. Guardadas as devidas proporções, é a mesma lógica do fumante tentando parar de fumar mas que ainda retém todos os automatismos de sacar um cigarro, o isqueiro, etc.
Lá pelas tantas eu resolvi brincar um pouco mais com o app de controle
Descobri que, por algum motivo, ele armazenou dados de alguns dias de antes de começar a contagem. Como ele fez essa contagem retroativa eu não sei, mas eu suponho que o telefone de alguma forma de registro interno dos dados de uso que fique salvo por algum tempo.
Eis o tempo de tela. Não sei se ele contabiliza aplicativos em segundo plano - por exemplo, ele marcou vinte e um minutos de Tidal. Seria o tempo que ele fica aberto no primeiro plano ou todo o tempo do app naquele dia? Isso não fica claro.
Mas o que fica claro é que é muito tempo de tela.
Eu não fazia ideia do quão fudido é esse ralo de tempo - e olha que eu já fiz uso de outros ralos de tempo, desses famosos por serem bastante nocivos.
Foi uma constatação amarga, o preço pago por subestimar rede social.
É muito tempo mas não parece. Justamente pela praticiade de abrir rede social em qualquer hora e lugar. Todos esses minutinhos de tempo (supostamente) perdido viram produtividade ou entretenimento para aplacar o tédio.4
Só no Twitter são cinco horas. É quase um dia inteiro de trabalho que não está me pagando absolutamente nada - na real está me cobrando, embora não seja em dinheiro.
De cara pensei nas minhas dificuldades em me organizar pra estudar as coisas que eu preciso estudar sempre (música, alemão e macumba) e o quanto que eu sofro pra conseguir fazer caber tudo na rotina de casa.
Uma ou duas horinhas que fosse desse tempo gasto em outra coisa já teria um impacto benéfico na minha vida. Uma hora a mais de estudo de guitarra, ou uma hora sentado na almofada, ou uma hora brincando com o meu filho.
O negócio é muito insidioso, porque você não percebe. Quando se dá conta, tá vendo mais um meme de madrugada sendo que às sete você tem que estar de pé. Ou tá rifando a qualidade do sono vendo uma notícia ruim de política à uma da manhã que naquele momento só serve para causar preocupação, porque não há absolutamente nada que se possa fazer de imediato.
Confesso que gostaria de colocar um timer genérico de X horas para usar do jeito que quisesse entre um determinado número de aplicativos. Seria um outro experimento interessante para ver quanto tempo gasto naturalmente entre cada um.
Deve ser uma das supostas vantagens da meia idade. Boto fé que isso é ainda mais insidioso quanto mais jovem for a pessoa e mais, digamos, flexível e ociosa for a sua agenda. É muito mais fácil preencher o tempo com esse ralo de atenção, justamente numa época da vida onde nosso caráter, personalidade e cérebro ainda estão em formação.
Louça pra lavar, algum cômodo pra arrumar, algo pra jogar fora, etc. Sempre tem alguma obrigação pendente. Mas também tem coisas legais de fazer, que não são obrigações mas são uma urgência de certa forma, justamente pelo pouco tempo que eu tenho pra passar com elas. E cá estamos de novo rolando tela.
Não aplaca, mas isso é assunto pra outro dia.