Episódio 19 - Espaço, tempo, sinal/ruído pt. 1

Uma porta é uma entrada e uma saída. É o começo e também o fim de um lugar. E por ser entrada e saída, nada acaba ou começa num sentido último, pois sempre há uma continuidade. Um fim é um começo, um começo é um fim, coisas morrem para continuar existindo. É um acabar que na real não acaba. O Samsara não tem solução.
É assim, por exemplo, que começa o episódio do Esoterica que serviu de ponto de partida para este texto - episódio que infelizmente eu não lembro mais qual é porque foi num dia treinando na academia e eu esqueci pois cabeça cheia. Mas foi um episódio legal, isso eu lembro, pois justamente falava de fins que são começos, dentre outras coisas (vai ver era um episódio de fim de ano).
De maneira geral, é como jogar um jogo recente do Mario, por exemplo. Vai ser algo bem diferente do Mário 3 que eu jogava quando era criança. Mas, dada a continuidade, o que tem de diferente também tem de igual, de certa forma. Está tudo ali: as plataformas, os blocos, o timing do pulo, os controles (esses sim parecem que não mudam nunca) com trinta anos de diferença. O Mario mais recente só existe da forma que existe porque o primeiro vingou de alguma forma. Same, but different. A mesma ideia macro em pontos diferentes do mesmo contínuo do espaço-tempo.
Eu queria poder parar e contemplar com calma esse fim de ano. Porque também é um começo de ano. É rigorosamente o mesmo ponto no ciclo, que se comunica com esse mesmo ponto em outros anos. Como os aniversários dos anos passados, as páscoas dos anos passados, etc. Dá pra pegar cada ponto específico de cada ano e extrapolar um único kairós, onde no infinitivo essas datas todas são a mesma coisa. E fins de ano me pegam porque é justamente aquele momento de pausa e fechamento para balanço (que não dá pra fazer com tanta frequência em outros momentos pois correria).
E eu fico pensando nos finais de ano que tivemos por aqui, e de como foi o começo do ano logo depois. Da viagem de natal de 2022 pra casa dos amigos pra fugir do apartamento microscópico e do jantar improvisado do natal de 2023, quando o garoto ficou doente às vésperas do Natal e tivemos que cancelar outra viagem, sem tempo de fazer uma ceia mais elaborada e dando graças aos céus por conseguir um médico e ele melhorar.
Dos perrengues envolvendo procurar apartamento em 2022 e das burocracias de visto em 2023, que tiraram o meu sono e me botaram algumas rugas no rosto junto com mais alguns fios brancos de cabelo e barba.
Mas foi gostoso comemorar em família, e a cara do filhote abrindo presente de natal feliz não tem preço. E outra coisa que não tem preço é ver as coisas vingando, com todas as tribulações que surgem no caminho.
Queria que 2025 pegasse um pouco mais leve. Acho pouco provável, pois são tempos difíceis de maneira geral em várias esferas. Tá fácil pra ninguém não. Mas eu preciso botar o pé no freio.
De vez em quando eu faço um exercício de me imaginar como se fosse um fantasma que visita a mim mesmo em outros momentos da minha vida. Como se1 o eu de agora projetasse a mente de volta no tempo e ficasse lá me observando de longe. Como naquele ano novo de 2010 que eu passei na casa da minha mãe e fiquei tocando guitarra de madrugada, com outras preocupações. Praticamente uma encarnação passada ainda nessa vida. Não havia a menor possibilidade de imaginar a vida que eu levo agora.
Não lembro de ter tido nenhuma sensação de ser vigiado por um fantasma na época, ainda mais um fantasma de mim mesmo do futuro olhando pra o Rafa daquela época.
Eu odeio saudosismos de maneira geral2 (talvez por isso gaste menos tempo com memórias do que deveria), mas acho legal esse esforço de visitar o passado e fazer uma comparação honesta com o que está acontecendo agora. Porque o agora decorre daquele passado3. Ajuda a fazer as pazes com o passado e com o presente.4
Fico imaginando se o meu eu do futuro (de algum futuro, ou de vários) estaria olhando pro eu de agora - provavelmente ponderando sobre como o eu de agora anda pondera as coisas do passado.
É um exercício legal, se você tomar o rolê todo como quem vai numa dessas reservas ecológicas onde não convém mexer em nada e deixar tudo do jeito que encontrou.
Essa comparação ainda vai levar alguns dias pra processar, até porque eu estou cheio de coisa pra fazer e por hora vai ser nos momentos de descompressão. Além disso, eu sei que eu preciso de tempo pra deixar as coisas se assentarem, porque é assim que eu funciono.
What a long and strange trip it's been.
Parte do meu problema com saudosismo decorre da qualidade das memórias. Na real, a maior parte delas é em dispensável aparentemente.
O grosso delas se parece com lixo. Tem cara de lixo, aspecto de lixo e às vezes cheiro de lixo, sem qualquer função aparente. Às vezes é como lixo de papel, outras como aquele lixo de cozinha que já tá fazendo chorume e estourando a sacola de tanto fermentar.
Porém, fica a dúvida: será que não tem mesmo? Será que, pelo fato de estar ali, não tem uma função? Tipo aqueles arquivos de cache do celular, que aparecem por um motivo - mas que uma hora ou outra você precisa limpar.
Claro, se você espremer bastante, qualquer memória pode ter um significado e uma liçãozinha (de moral inclusive), mas eu estou numa fase da vida meio sem saco pra ficar caçando ensinamento em tudo que é cantinho, porque costuma não tem nada ali e o que tem normalmente não é lá grandes coisas. Dá trabalho e toma tempo, e mais do que nunca eu estou na segunda fase mais “sem tempo irmão” da minha vida.5 E o prospecto de ficar garimpando pérolas num lixão aleatório não me parece bom.
Tem muita coisa que eu queria esquecer porque só existe pra ficar ocupando espaço na nossa cabeça, como um desses processos de computador que só servem pra comer memória e roubar desempenho, e que tu só vai se livrar mesmo quando passar um daqueles programas que elimina registro ou quando tu faz um factory reset.
Repare que eu não estou falando de traumas, dores e experiências significativas ainda que sofridas, mas daquela infinidade de coisas banais mas importantes o suficiente pra você não poder se dar ao luxo de esquecer de vez, como fazer declaração de imposto de renda ou aquele bolo pra festa da firma que tu prometeu sem pensar muito e que fez o seu eu do futuro ficar puto da vida com o seu eu mais burro e ingênuo do passado.
Acho que é isso que a gente faz quando descansa de verdade e desopila. Tu pega tudo isso que estava lá ocupando espaço na mente e joga fora, de preferencia de um jeito que tu não acesse nunca mais porque deletou legal valendo real oficial.
Depois, com a cabeça devidamente esfriada e o cache vazio, aí eu penso nas coisas que importam, boas e ruins.
Tem umas semanas já que eu estou nesse processo de limpeza: jogando coisa fora em casa, deletando e-mail, cancelando newsletter que eu não leio, parando de seguir conta com conteúdo que é até bom mas já não tá fazendo muito sentido pra mim.
E acho que essa foi uma das grandes lições desse ano, de poder olhar pra trás e já sacar de antemão o que é ou o que vai ser ruido e cortar logo de cara.
A projeção existe, mas pra dentro da minha própria memória construída
Vejo gente saudosa metendo uns papos bem errados com mais frequência do que eu gostaria
Bom, eu estou acessando memórias, não o passado objetivamente. Mas, é melhor do que nada.
Espero que isso não bagunce minhas memórias ainda mais.
Só perde pros meses seguintes ao nascimento do meu filho. Aquela época foi bastante caótica.