Episódio 16 - Monas Hieroglyphica (ou: quando Deus fez o mundo através do verbo, ele o fez em hebraico)
Semana passada, para variar um pouco, teve como a trilha sonora da academia uma série de episódios de 2020 do Esoterica. O assunto da vez foi a Monas Hieroglyphica - uma obra do John Dee que não é muito falada entre os entusiastas de ocultismo, mas que acaba sendo importante por conta de suas implicações simbólicas.
Normalmente, quando se fala de John Dee, a conversa costuma ser sobre o seu sistema enochiano de magia ou sobre os episódios, digamos, inusitados de sua vida. Só que ele era, dentre outras coisas, alquimista e astrólogo real da côrte da rainha Elisabeth, e seu legado também tem trabalhos envolvendo alquimia e astrologia.
Resumindo de forma criminosa: durante muito tempo (vamos colocar aí até mais ou menos o surgimento da linguística como conhecemos) havia uma celeuma filosófica e teológica sobre a linguagem e sua metafísica.
Seria a linguagem uma parte intrínseca do mundo ou seria algo à parte, um epifenômeno inventado pelo ser humano alheio ao real mas que fala sobre o real? Seria a linguagem algo totalmente independente e alheia ao real, ou seria capaz de afeta-lo de alguma forma? Ou ainda, seria interdependente ao real, entremeada naquilo que é?1
Não sei a quantas anda essa discussão entre filósofos contemporâneos, linguistas e estudiosos de semiótica, mas no plano macumbístico os pontos riscados continuam funcionando muito bem.2 Os pontos cantados, por sua vez, são em sua maioria em português misturado com yorubá e outras línguas originárias do continente africano, e os orixás continuam ouvindo e respondendo numa boa.
Em termos práticos, ninguém se importa muito enquanto o ritual continuar funcionando e a entidade continuar baixando no terreiro (ou no círculo, ou no triângulo) pra fazer o que tem que fazer, mas de tempos em tempos, ao longo da história do ocultismo ocidental, essa questão é levantada e ganha algum tipo de destaque, influenciando as práticas de um determinado período ou cultura.
Tem um motivo para, até hoje, as pessoas ficam entoando letra hebraica e evocando anjo: em algum momento tomou-se o hebraico como a língua original com a qual Deus fez o mundo, e o seu uso evocaria poderes metafísicos análogos à criação do mundo.3 A cosmologia mudou de lá pra cá, as teologias e teleologias também, mas a tradição de fazer magia em hebraico continua, por diversos motivos.
Dentro de uma perspectiva mítica judaica e cabalística, faz um bastante sentido, pois existe toda uma simbologia das letras hebraicas como as bases místicas e esotéricas da fundação do mundo. E em algum momento, isso se popularizou para fora do judaísmo. Dá-lhe de ocultista cristão partir dessa mesma ideia4 pra montar ritual para dominar espíritos ctônicos e supostamente coagi-los a revelar seus segredos - o que com certeza deixaria um cabalista bastante perplexo, visto que o propósito desse caminho espiritual a união com o divino por meio de uma observação muito séria da lei judaica, (e não de coagir encosto)
A Monas Hieroglyphica
No ano de 1564, John Dee publica uma obra sobre um símbolo mágico (a tal da Monas Hieroglyphica) que segundo ele próprio sintetizava a união de todas as forças místicas, alquímicas, celestiais, espirituais e metafísicos e que poderia ser usado como objeto de meditação para obtenção de sabedoria oculta. Se a linguagem tem poder metafísico sobre a realidade, por que não condensar tudo em um único símbolo bem overpower?
Forçando uma barra, a construção desse símbolo é quase um processo de criação de sigilo na magia do Caos, onde você pega vários símbolos e letras e vai juntando tudo até parecer alguma outra coisa que não lembre mais o significado original da frase ou do símbolo. Nesse caso específico, ele sobrepõe componentes dos glifos astrológicos: o disco solar, os semi-círculos, a cruz tradicionalmente associada à matéria e junta tudo num boneco palito que simboliza o macrocosmo e a alquimia enquanto prática espiritual.5
Voltando à base. Ou melhor, aos céus
Aqui temos uma influencia mais hermética do que cabalista em sua execução, já que ele trocou o Aleph pelos glifos. Mas o raciocínio é o mesmo: um símbolo com poderes mágicos sobre a realidade.
John Dee era astrólogo, e a inspiração pra criação do símbolo vem da escrita de glifos astrológicos, que por sua vez representam corpos celestiais e seus movimentos. Estes por sua vez, representam coisas aqui embaixo - o que está em cima é como o que está em baixo, e o movimento natural desses astros pode ser lido como um análogo aos fenômenos aqui em baixo.6
A astrologia surge como uma forma de ler o mundo natural e seus ciclos. Os dias, as noites, a posição do Sol no céu, a Lua que aparece à noite de tempos em tempos, o ciclo eterno das estações do ano, os ventos, a secura e a umidade, tudo isso vira nome e verbo.7 Animais viram… signos para se falar do mundo sobre o mundo, numa linguagem (inclusive metafísica, bem longe do material concreto mais imediato) que vai se sofisticando com o passar do tempo.
O signo e o significado já foram mais próximos.
O Dr. Sledge, nos episódios, apontava varias vezes a diferença de uma “cabala do que é dito” em contraposição a uma “cabala do que é”.
Parece uma discussão com ares de punheta intelectual, mas o fato é que a gente continua recitando mantra, palavras mágicas, gestos com as mãos e fazendo nossos próprios talismãs. E se há continuidade, imagino que deva haver algum grau de sucesso nesses símbolos todos em impactar a realidade de alguma forma.
O Sefer Yetzirá conta a história da fundação do mundo através do alfabeto hebraico, e meio que “abre a porteira” pra esse tipo de prática envolvendo letras do alfabeto hebraico. Entretando, vemos frequentemente nos PGM uma helenização desse fenômeno, com a evocação do nome divino em hebraico… só que em grego (IAO, ao invés do clássico YHWH). E sempre é divertido e fascinante como essas coisas se cruzam e mudam com o tempo.
Não que isso seja um problema a princípio, pois toda tradição esotérica ocidental é esse recorte e colagem de tudo que é influencia e cultura da bacia do mediterrâneo. É impossível estabelecer um purismo quando se trata de práticas construídas social e historicamente. Por outro lado, sempre há o risco da apropriação ocorrer como forma de dominação cultural.
Não confundir com alquimia histórica, que tinha outros objetivos.
Colocando de forma grosseira, é um pouco como levantar o dedo ao vento pra sentir como que está o ar e por tabela saber se vai chover ou não.
Preciso fazer um estudo de quando surge a escrita. Em especial, se ela é anterior ou posterior ao surgimento da astrologia.