Episódio 14 - O Tártaro (entre titãs, deuses caídos e ímpios)
O submundo propriamente dito, com cara e jeito de inferno1, é o destino final das almas ímpias, dos deuses caídos, dos titãs derrotados pelos deuses olímpicos e de toda espécie de espírito amaldiçoado. Personagens mitológicos que desafiaram os deuses também são condenados ao tártaro, onde recebem suas punições eternas de acordo com o julgamento dos deuses.2
Segundo o mito, é um abismo escuro e profundo. Sua função é servir de prisão aos antigos titãs, deidades primordiais que governavam o mundo sob a liderança de Kronos. Posteriormente, os titãs foram derrotados pelos deuses olímpicos, que passaram a governar o cosmos em seu lugar.3
É um ponto importante na mitologia greco-romana: em algum momento, dois panteões lutaram pelo controle do cosmos, e o grupo derrotado foi aprisionado nesse abismo. A terra sob nossos pés é uma enorme prisão de forças do caos.45
O que está em cima é como o que está embaixo, e se o céu imortaliza os feitos gloriosos para a cultura de um povo, o submundo faz o mesmo para os atos abjetos, vis ou trágicos. Entretanto, se nos primeiros mitos a noção de submundo era uma prisão de forças primordiais caóticas e subjulgadas pelos deuses, nos mitos posteriores o tártaro também ganha ares de “reino dos infernos” para mortais - em especial, aqueles que que cometeram o pior crime possível para com os deuses, a húbris.6 Vide o mito de Sísifo (que é um mito importantíssimo sobre a condição humana)
O mais provável é que, à medida que as sociedades do período clássico se desenvolviam, seus mitos mudassem para acomodar melhor as mudanças psíquicas e sociais - basta pensar que o que começa como uma explicação para a questão da ordem e do caos no mundo começa a ganhar notas de ethos e moralidade aplicada a pessoas comuns que violavam as leis divinas.7
Colocando de forma criminosamente grosseira, a terra serve para duas coisas: enterrar morto e plantar para depois colher. Ela leva a vida embora para nos dar a vida, para depois levar embora e nos dar a vida novamente.
A terra leva o corpo, e é natural que no nosso imaginário ela levasse essa parte animada e intangível da vida. E assim como o que está morto não deve ficar exposto na superfície, (pois atrai animais e propaga todo tipo de doença), o cadáver precisa ir pra debaixo da terra e completar o seu ciclo, restabelecendo a ordem macrocósmica no microcosmo, nessa enorme pedra angular da criação.
E no caso do submundo da mitologia grega, eu gosto de pensar no análogo que faz com o resto do mundo, também dividido em três “andares”.
Convém ressaltar que, na Teogonia e nas demais mitologias, o Tártaro não é representado como um submundo de fogo, enxofre, calor e temperaturas extremas, como no caso do inferno cristão ou mesmo dos vários reinos infernais budistas. O que, claro, não impede que artistas façam a representação que acharem melhor deste reino.
Eternas até que sejam revogadas, vide o mito de Prometeu (que teve uma punição eterna mas não foi condenado ao tártaro.
Segundo o mito, alguns titãs e deidades mais antigas se aliaram aos deuses olímpicos. Já outros foram poupados do tártaro.
Poderíamos pensar uma analogia com o mito sumério da fundação do mundo, em que o caos representado por Tiamat, depois de vencida, vira matéria prima para a criação do mundo material.
Os titãs, apesar de fazerem oposição aos deuses olímpicos, nem sempre eram hostis aos humanos - vide o mito de Prometeu. Forças do caos são perigosas, mas às vezes podem jogar a nosso favor.
A vaidade de se igualar a um deus e perder a noção da própria humanidade só perdia para outros dois crimes: derramar sangue da própria família ou violar as leis de hospitalidade.
Novamente, é uma especulação minha. Caberia estudar algum livro sobre o assunto, ou fazer uma pesquisa acadêmica, mas eu não tive tempo nem de ler nada específico sobre as relações psicossociais entre mito e lei na bacia do mediterrâneo durante o período clássico, e as chances de virar um acadêmico que produziu algum trabalho sobre esse assunto, por hora são bem baixas. Mas é um bom tema.