Episódio 11 - o Empíreo (Deus Ex Machina. Ou o Deus da Gambiarra Mítica)
Acima da esfera das estrelas fixas, acima de tudo e bem longe de nós aqui embaixo, temos o empíreo (do grego empyros, ou ἔμπυρος, literalmente “feito de fogo”)
Segundo a cosmologia aristotélica e hermética (e que posteriormente viria influenciar a cosmologia cristã), o empíreo seria a origem e o destino final das almas. Longe da criação e perto do Divino - e aqui me refiro ao Divino de forma mais ampla, para fugir um pouco desse framework cristão de botar um velho de direita como liderança política do cosmos.
Que fique claro: não se trata de um fogo literal segundo a química, proveniente das reações envolvidas na queima de materiais com liberação de energia, partículas e gases. Para os antigos, “se parece com o fogo” pois é algo sutil, sem uma concretude material mais grosseira e sensível - mais sensível do que a dos quatro elementos.
O fogo não tem um corpo material propriamente, mas brilha e queima de forma bastante sensível e concreta se você chegar perto demais. É esse fogo que é capaz de mover as coisas com a sua energia e iluminar com a sua luz, não apenas fisicamente (pois a materialidade concreta também é uma criação divina) mas metafisicamente (pois não estamos falando de termodinâmica, ótica e química da forma como entendemos hoje).1
Para os antigos, é a fonte de tudo que existe, mas também o seu destino final. A causa de todas as coisas que por si só não tem causa nenhuma. Para as almas encarnadas, também é o seu destino final.2 O Alfa e Ômega, e cá estamos nós usando de novo invenção de grego pra imaginar o mundo.3
Eu gosto bastante do Empíreo ser colocado como um lugar, e não necessariamente uma coisa ou um ser. E sendo mais específico, um único ser.4
Se o primum mobile executa o movimento, o empíreo é motor. A força e a direção para mover o cosmos precisam vir de algum lugar. E para não fazer a piada do ovo e da galinha da recursividade novamente, a gente mete um deus (ex machina) que é a causa sem causa.5
É um modelo já descartado pela física, mas roda liso no mito e na simbologia, que está aí firme e forte até hoje:
O reino dos céus como um céu literal cheio de nuvenzinha, verticalmente acima da Terra (vide a escada de Jacob) alheio ao caos que é o mundo;
Deus como monarca do cosmos (ou no máximo um presidente linha dura de direita) decidindo categoricamente como que a vontade e a providência divina se manifesta no mundo de forma muitas vezes arbitrária e autoritária (olha aí a força vindo do nada)6,
Almas incorpóreas feitas de uma substancia sutil diferente da materialidade concreta, ascendendo para chegar ao seu destino final no empíreo, etc.
Tá tudo aí. Não muito tangível nem concreto num sentido literal, mas real o suficiente pra habitar o imaginário das pessoas e balizar ações e escolhas - por exemplo, escolhas políticas.
A questão tem menos a ver com o tipo de vaselina metafísica que grupos políticos usam para manifestar a própria vontade (quase sempre à custa da opressão de outros grupos) e mais com o sutil divino, longe do mundano concreto e ao mesmo tempo sendo a causa, o substrato de todas as coisas7.
Quem inventa (ou descobre) essas coisas não é liderança política. O pajé da tribo não é o cacique. Quem vislumbra essa realidade, essa grande visão macro da realidade (que beira a maluquice e por isso mesmo é tão foda) não é rei nem príncipe nem aspirante a cargo de nada. Quem tem acesso a essas tecnologias (desde as técnicas astrológicas até o jeito certo de se fazer um ebó) é outro tipo de pessoa.
Em astrologia tradicional, os astros luminares (Sol e Lua) tem uma relação com o divino, justamente por emitirem luz. Seus júbilos planetários são chamados de Casa de Deus (Sol) e casa da Deusa (Lua). E eles são significadores de vitalidade justamente porque emanam luz, da mesma forma que as deidades. E sua luz torna tudo claro, visível, inteligível. Aqui existe uma correspondência entre clareza de consciência, de vontade e de pensamentos com claridade produzida pela luz.
Se você faz parte de algum grupo religioso ou professa uma fé que implica em almas ascendendo (muitas vezes de forma literal) aos céus para encontrar Deus, pode agradecer a Aristóteles e ao pensamento hermético clássico.
Podiam usar outras letras e alfabetos. Ficom imaginando que alguém em algum momento já deve ter proposto “O Aleph e o Tav” mas isso deve ter dado muita confusão.
A menos, claro, que você entenda o cosmos inteiro como uma única unidade, o átomo indivisível que corresponde a tudo que existe. Pra entender, tem que ser absolutamente tudo junto e misturado.
O paradoxo do mito é a cola metafísica e simbólica que mantém o cosmos funcionando.
A noção de deidade popularmente vigente, ao longo da história, se confunde com a da liderança e da vontade política. O faraó é descendente de deus, assim como o imperador de Roma ou do Japão. Os reis tem o seu direito divino afirmado pela igreja. O presidente dos EUA, eleito, precisa fazer um juramento com a mão sobre a Bíblia, e até o rei de Wakanda nos quadrinhos precisa fazer uma jornada xamânica para trocar ideia com os ancestrais antes de ser coroado. Deus é o Rei e o Rei é Deus ao menos no simbólico, e até hoje qualquer candidato a qualquer coisa precisa barganhar com o credo institucionalizado oficial vigente. Seria lindo se fossemos abençoados com lideranças realmente místicas e mágicas capazes de fazer milagres e com acesso aos mundos superiores, mas quase sempre temos o contrário: forças políticas cruéis usando o mito, o imaginário, o simbólico e a crença como arma para se impor e se consolidar.
Nesse caso, o divino está sob nós também, nos nutrindo e possibilitando.