Episódio 10 - Primum mobile (o primeiro objeto movido)
Segundo os textos herméticos e a cosmologia concebida no período clássico, o mundo é composto por diversas esferas celestiais sobrepostas, como se fosse uma cebola. Cada esfera é uma camada. Aqui em baixo, no chão, é o mundo mundão mundano mesmo, de trabalhar e pagar contas na materialidade concreta, feito de água, fogo, terra e ar. É a onde a gente nasce, vive e morre.
Esse modelo durou mais ou menos até Copérnico e seu modelo heliocêntrico do cosmos - ele morreu em 1543 (Idade Moderna mandando ver) e levou junto essa cosmologia antiga.

Acima de nós, os céus, no plural mesmo porque eram vários: sete esferas concêntricas (cujo centro é o nosso mundo aqui embaixo) onde transitam os sete planetas clássicos visíveis a olho nu - a Lua (sim, era um planeta para os antigos), Mercúrio, Vênus, o Sol (igualmente um planeta na cosmologia antiga), Marte, Júpiter e Saturno. Nessa ordem, do mais rápido ao mais lento. Cada um ocupando uma esfera, da menor até a maior.
Cada esfera contem um desses astros errantes e suas órbitas. Cada céu e cada um desses astros governa (ou imita) o movimento das coisas aqui embaixo1. Pensa num relógio metafísico.
Acima da última esfera, para além dos domínios de Saturno, temos as esferas das estrelas fixas. Seu nome é assim porque, da nossa perspectiva, parecem estar fixas no céu, como se as estrelas fossem pequenas pedras preciosas costuradas no tecido do firmamento. Elas não se mexem aleatoriamente no céu, e toda noite mostram os mesmos padrões de pontos luminosos, como a cruz do cruzeiro do sul ou (pra quem vive no hemisfério norte) a “conha” da Ursa Maior.
A gente sabe que essas estrelas são (ou talvez nem sejam mais) aglomerados de gases e galáxias e nebulosas e sistemas com temperaturas e pressões astronômicas. Mas, da nossa perspectiva daqui embaixo, parecem fazer desenhos fixos eternamente no céu. São um mapa mítico e metafísico do mundo, com suas constelações, seus nomes e suas respectivas histórias.2
Ptolomeu nomeou essa esfera de “Primum Mobile”: a primeira esfera a se movimentar, e que movimentava as demais por tabela, como um mecanismo de um relógio. O primeiro corpo a se mover. Um corpo do tamanho do mundo, literal e figurativamente. O primeiro movimento do cosmos, porque não havia nada anterior, ou outra esfera sobreposta. O motor do relógio, que empurra todas as demais engrenagens, e que se move graças à energia de sua bateria.
Repare que não era um movimento “de dentro pra fora”, com a Terra girando e movendo as coisas. Muito pelo contrário: era de fora pra dentro, do macro empurrando o micro.
É algo filosoficamente complicado e fisicamente impossível: se todo movimento precisa de uma outra força que o desloque, daonde veio (ou vem) o primeiro movimento das coisas? Onde que tudo começa? Se é o primeiro, não pode haver outra força (que seria a primeira força).
Ou as coisas não começam, no sentido de que sempre estiveram aí movendo e sendo movidas, um enorme samsarão de meu deus?
Fisicamente eu não sei como que responde isso, nem metafisicamente, mas ao menos em termos míticos funciona muito bem. Deus Ex machina, uma gambiarra metafísica que ao menos nesse plano simbólico e mítico resolve: fiat lux ad nihilum, faça-se a luz do nada, deus no comando do cosmos.
Uma história da carochinha muitas vezes estapafúrdia, mas que é justamente no estapafúrdio3 que está aquela verdade profunda sobre a realidade que não cabe num manual técnico
Falar em governança dos astros é complicado. Porque, num sentido literal, em geral, não rola.4
Mas eles estão aí desde os tempos mais primórdios. E a gente tá olhando pra cima a muito tempo, tempo suficiente pra esse movimento virar matéria prima5 para a nossa imaginação de alguma forma. Em algum momento alguém resolveu brincar de relógio com essas luzinhas no céu e cá estamos nós, fazendo previsões astrológicas e nomeando os dias da semana em função dessas esferas e os meses em função do caminho que o Sol faz no céu.6
Loucura? Talvez. Mas tem um método pra essa loucura.
O que está dentro é como o que está fora, e o que rola é que na real estamos projetando imaginações nossas nesses corpos gasosos que estão lá em cima, a zilhões de quilômetros da Terra. Imaginações, visões bem certeiras e reais.
Astrologicamente, o Sol é um significador de vontade mas também de consciência, de ciência (não como método científico, mas como estar ciente de algo real oficial) e de visão (tanto da fisiologia quanto de se observar algo por meio da luz e se tornar… ciente daquilo).
Faz sentido Copérnico ter colocado a visão e a ciencia no centro do cosmos, ao invés da matéria terrena.
Isso de primeiro movimento me lembra o primeiro motivo, que me colocou aqui nessa esfera do substack: a insalubridade e o estrago que as redes estavam me fazendo.
Estou no Bluesky tem umas três semanas (na real tinha a conta antes, mas vim pra ficar na Grande Diáspora do Twitter) e não quero mais sair de lá, pois é estritamente melhor que o Twitter em todo e qualquer aspecto.
Agora eu preciso me policiar mais pra usar a rede justamente porque é divertido, prazeroso e produtivo. Inclusive, se você estiver me lendo agora, agradeço a leitura e agradeço também ao Bluesky que não tem algoritmo que fica sabotando entrega de links e conteúdos.7
Curva ascendente do samsara, bora curtir o que tem pra curtir antes de cair em sofrimento de novo.
Para os antigos, havia sim uma relação de causalidade entre o que estava em cima e o que estava embaixo. Historicamente isso varia: em determinados momentos parece que a causalidade é tida como entendimento dominante, e em outros uma espécie de correspondência entre os eventos celestiais e mundanos, porém sem uma relação direta de causalidade - como um relógio que permite contar e medir o tempo, mas não fabrica os fenômenos do tempo no mundo.
O manual do mundo existe, e está sobre as nossas cabeças.
Eu penso em outros mitos como o de Édipo, que talvez seja uma das invenções mais geniais da mente humana e talvez a maior ferramenta na caixa do psicólogo, mas que deus nos livre de ver uma história como essa estampada num jornal. Ou ainda o de Aquiles, que lá pelas tantas surta de raiva ao ver seu querido Pátroclo morrer e resolve… socar o rio.
Quer dizer, tem o ciclo circadiano, marés e o escambau. Vocês entenderam.
Outra piadinha com termo alquímico, foi mal.
Eu fico impressionado como a instituição “dias da semana” nunca falha. Individualmente, uma pessoa até pode se perder no tempo e esquecer que dia é hoje. Como sociedade, não, nunquinha. Provável que a gente esteja usando o mesmo ciclo sem errar a uns cinco mil anos.
Novamente: já tenho idade pra saber que não se deve se deslumbrar com rede social, que hoje tá manero mas amanhã pode virar outro brinquedo de rico fascista. Mas até lá a gente aproveita a rede por aquilo que ela é e usa da melhor forma possível