dentesguardados #9 Tóquio
Tóquio
Guardei o ovo de volta na mochila. O Terapeuta me agradeceu pela minha fala introdutória e disse que isso era tudo que esperava de mim para a minha primeira participação no grupo. Na sessão seguinte, adiantou, entraríamos mais fundo no meu caso particular. Deu um gole longo no café, deixou a caneca em cima da banqueta de três pernas que estava ao lado da sua cadeira, virou algumas páginas do seu bloco de notas, olhou em volta e perguntou a todos se estavam prontos para prosseguir. O círculo assentiu com acenos de cabeça e murmúrios.
A sala no subsolo era ampla e penumbrosa, lembrando mais uma garagem do que um local para conversas e trocas de experiências sobre uma questão tão íntima e angustiante quanto o cuidado de cópias disfuncionais de entes queridos. Não tinha sido possível ver, do túnel refrigerado que me levara até ali, a fachada da Associação de Pesquisas e Práticas em Pós-Humanidades, mas pelas dimensões internas provavelmente o edifício havia sido no passado uma pequena galeria comercial. O grupo estava reunido bem no centro do recinto. A temperatura era um pouco mais fresca que a dos túneis, o que era incomum e significava que a sala era muito bem insulada. Não havia luz de teto, talvez porque a fiação do prédio estivesse obsoleta. Lâmpadas direcionais amarelas instaladas em pedestais e conectadas por fios a uma bateria projetavam triângulos que se intersecionavam nas paredes cinzentas e no piso de cimento, projetando aqui e ali as silhuetas das pessoas sentadas e, em alguns casos, dos artefatos sob a sua tutela. À minha esquerda, no canto mais iluminado, um revestimento verde-claro de espuma sintética, do tipo que se instala em quartos de bebê ou creches, cobria o chão e as paredes até a altura de uma pessoa em pé. Logo ao lado havia uma cama repleta de travesseiros e forrada com um lençol branco perfeitamente alisado, e apetrechos tais como esteiras emborrachadas, faixas elásticas coloridas, blocos geométricos de madeira, uma arara com roupas e um cesto de palha cheio de objetos variados, dentre os quais à distância pude distinguir uma lanterna, um espelho, um leão de pelúcia. Pensei que talvez a mesma sala fosse usada para atividades envolvendo crianças ou para as sessões de fisioterapia ciborgue que também estavam no leque de atividades da appph, de acordo com o site.
“Nora”, disse o Terapeuta, se voltando para a garota de face severa. “Semana passada você disse que acreditava estar pronta para ligar sua pupa em casa, depois de um intervalo de meses. Gostaria que nos contasse se isso ocorreu, e como foi. E seria legal que fizesse a gentileza de fornecer ao nosso novo integrante os contornos gerais do seu caso.”
A menina não respondeu de imediato. Sem mover um cílio, pareceu mobilizar o corpo todo para conseguir falar, e ao fazê-lo virou o rosto repentinamente e me encarou.
“Era a minha irmã mais velha”, disse. “Ela teve quatro cânceres. Sofria de câncer em série. Durante o quarto tratamento, com vinte e seis anos, ela quis fazer o procedimento. No começo, minha família protestou. Já tinha sido proibido na maioria dos países. Mas não aqui no Brasil, é claro. As pessoas ainda estavam vindo do mundo inteiro pra fazer aqui.” Ela se levantou sacudindo a cabeça de leve e espalhando a cabeleira cacheada sobre as costas. De calça jeans e blusa pretas, lembrava uma adolescente gótica do começo do milênio. À medida que seus lábios se moviam para falar e as emoções brotavam em sua fisionomia, as linhas de expressão abundantes me fizeram pensar que ela era mais velha do que aparentava à primeira vista. Uma mulher adulta. Ela começou a abrir, sem cerimônia, o zíper do saco que protegia não a irmã, aquela pessoa perdida, a quem tratava no pretérito, mas sim a cópia da irmã, a pupa ou crisálida, o artefato condenado ao limbo. “Dinheiro não nos faltava. Meu pai era banqueiro. Podia pagar os médicos e hospitais e podia pagar o procedimento. Acho que pra ele era mais uma questão de princípios. A Samanta, esse era o nome dela, tinha períodos bons entre as recaídas. Trabalhava, era feliz, ou pelo menos demonstrava. Meu pai confiava na medicina.” Nora terminou de abrir o zíper e o saco desabou no piso, revelando uma mulher nua. “Minha mãe era evangélica e achava que o escaneamento era bruxaria.” Ela arrastou um pouco sua cadeira até posicioná-la bem ao lado da mulher ereta e deixou as nádegas caírem sobre o assento, como se aquela breve movimentação já a tivesse cansado. Olhou de novo para mim. “Mas a Samanta nunca fracassou em impor suas vontades. É isso aí que eu tenho agora. Essa boneca.”
A mulher nua era, evidentemente, uma androide. Eu sabia da existência de androides anatomicamente fiéis, mas as fotos que me lembrava de ter visto eram mais próximas das bonecas eróticas japonesas. A androide de Nora estava mais para as esculturas hiper-realistas de Ron Mueck, com pelos e cabelos que pareciam aplicados um a um, flacidez realista, rugosidades. Mas não demorava para que se pudesse perceber o que faltava no artefato, em especial nos olhos, que brilhavam demais, e na postura, que era excessivamente neutra, como a de um manequim. Além disso, chamavam atenção marcas estranhas nos pulsos e nas coxas, desgastes ou danos no revestimento que denunciavam a composição artificial daquela carne, e que me fizeram pensar nas borrachas escolares que eu gostava de despedaçar ou esfarelar quando era criança, quando materiais como plástico, borracha e silicone ainda eram vistos como coisas mundanas, substâncias mais reles que o barro ou a pedra, ainda sem traço dessa qualidade um pouco amaldiçoada ou espectral que parecem emitir hoje. Ao contrário dos receptáculos orgânicos criados pela bioengenharia, aquela construção totalmente sintética era um corpo que não estava sujeito ao empuxo inefável da mortalidade, do potencial para a decadência. Essa era uma das lições que a tecnologia tinha nos ensinado a respeito do círculo da empatia. Um objeto era como nós na medida em que envelhecia como nós.
“O que você quer compartilhar conosco hoje, Nora?”, perguntou o Terapeuta.
“Liguei a Samanta semana passada, quinta-feira, na noite após o nosso último encontro. Fazia uns seis meses, já. Tentei lembrar do que conversamos aqui. Tomei cuidado pra deixar ela criar o mundo em torno dela, sem tentar impor o mundo real. Ou minha concepção própria do mundo real.” O Terapeuta balançou a cabeça para cima e para baixo, satisfeito. “Como sempre, ela me tratou como se eu ainda tivesse treze anos. Mas respirei fundo, procurei não contradizer ela, não me apressar muito em interpretar todas as coisas confusas que ela me dizia. Tem uma coisa horrível que sempre acontece, ela começa a imitar passarinhos. Porque supostamente em algum momento da minha infância eu gostava que ela imitasse passarinhos. Meus irmãos do meio não lembram disso, nem eu. Mas parece ser importante pra pupa. Sorri e fingi estar contente enquanto ela fazia piu-piu. E por algum tempo foi agradável. Muito diferente das vezes anteriores. Senti que estava ajudando ela de alguma forma. Que talvez ela pudesse me mostrar alguma coisa que eu não sabia, também.”
“Ótimo”, disse o Terapeuta.
“E teve aquilo de bater nas coisas com força”, prosseguiu Nora, espremendo os lábios e mirando a parede, como se tentasse entender. “Como vocês já puderam ver, ela gosta de bater e de se arremessar contra as coisas. Alguém aqui opinou que ela precisa verificar a solidez dos objetos, dos limites do ambiente. Isso faz sentido. Então dessa vez deixei ela quebrar minha casa. Ela quebrou uma porta com o ombro. Ela é muito forte.”
“Os androides desse modelo têm uma força mecânica absurda”, interferiu outro integrante do grupo, um homem que parecia um Bob Marley obeso, acomodado num pequeno sofá posicionado no círculo especialmente para ele. A seu lado havia uma androide também bastante realista, exceto pelo fato de ter cerca de setenta centímetros de altura, estar vestida com shorts jeans cavados e jaqueta esportiva vermelha e usar tênis também vermelhos. Não tinha a aparência de uma criança, e sim a de uma mulherzinha encolhida, de proporções quase perfeitas. Estava desligada, mas de vez em quando eu olhava para ela assustado, pois tinha a impressão de que suas pálpebras haviam acabado de piscar. “Existe um vídeo dos engenheiros coreanos que a criaram, onde brincam com um protótipo fazendo com que ele carregue uns equipamentos pesados como se fosse uma empilhadeira.”
Todos se remexeram na cadeira, e Nora o fitou com incredulidade, arregalando os olhos e esboçando um sorriso que exibiu seus dentes pequenos e separados. Isaura, de braços cruzados, deu uma risada bonachona, mantendo o olhar no chão. Nunca fui de frequentar grupos, mas se sabia algo a respeito deles é que todos possuem o seu emissário do constrangimento, fornecendo regularmente o material necessário para a censura tácita dos demais.
“Por sinal, eu sou o Honório”, me disse o Bob Marley obeso, erguendo a mão num aceno. Eu o cumprimentei com a cabeça.
“Vamos manter o foco”, disse o Terapeuta.
“Enfim, uma porta a mais, uma a menos”, disse Nora. “Só quero que ela não me machuque sem querer de novo. Meu braço nunca remendou direito. Dessa última vez, deixei ela explorar o ambiente. Servi uma taça de vinho pra mim, coloquei uma música, fui conversando com ela.”
“Parece ter sido uma experiência positiva”, disse o Terapeuta. “Você dividiu conosco, algumas vezes, o sentimento de alienação profundo e o medo que normalmente encontra no convívio com sua pupa. Medo de risco à sua integridade física, inclusive. Eu percebo nesse relato que as coisas evoluíram um pouco.”
“Acho que sim”, disse Nora, “mas não terminou tão bem quanto eu gostaria. Eu fui ficando bêbada.”
Silêncio.
“O que aconteceu?”, incentivou o Terapeuta. Nora suspirou fundo.
“Eu nem tento fingir que ela pode ser a minha irmã, sabe? Mas tem essa coisa de não ter uma resposta inteligível da outra parte, de não conseguir arrancar dela nada além de referências meio fantasiosas a um tempo em que eu era criança, que acaba me quebrando todas as vezes. Estou começando a suspeitar que por causa dessa merda dessa boneca eu de certo modo ainda tenho treze anos. Porque não teve uma resolução daquela porra toda da doença dela, e eu vou envelhecer e morrer qualquer dia e ela vai ficar aí com esse corpo que não muda, sendo essa prótese de silicone falante, e isso me cansa! Me frustra.”
“É compreensível, Nora”, disse o Terapeuta. “Tem muita coisa aí pra pensar. Muita coisa.”
“Lá pelas tantas eu cheguei perto dela e olhei nos olhos, e vi aquela coisa bizarra dos olhos dela detectarem os meus e ajustarem as lentes, é como se fosse uma íris só que não é, e perguntei se ela lembrava de ter passado metade da vida doente, e se lembrava de ter morrido.”
“Você não deve fazer isso.”
“Eu sei! Mas eu fiz. Ela começou a falar da doença, começou a me contar sobre o câncer e as recaídas como se eu fosse uma criança. E de repente começou a acontecer uma coisa que eu nunca tinha visto. Já vi ela ter convulsões, já vi tentar arrancar partes do corpo, já vi pegar um garfo e se espetar toda, mas semana passada ela começou a dançar. A dançar!”
“Dançar como?”
“Bem devagarinho, meio rebolando, dando passinhos curtos. Inclinando a cabeça devagar pros lados. Sem parar de me contar sobre o câncer com aquele tom condescendente, como se quisesse me proteger. A dança foi ficando muito suave e harmoniosa, parecia mesmo um ser humano. Às vezes ela se encolhia e enchia o peito, como se tivesse calafrios, e olhava em volta procurando algo que não estava ali.”
O Terapeuta se inclinou para a frente. Algo se iluminou nele, e estava prestes a falar quando Nora o interrompeu.
“E aí eu desliguei ela. Usei o controlinho.”
Outro silêncio se impôs, mais duradouro. Eu sabia bem o que o relato de Nora me fazia sentir, mas não poderia encontrar palavras para me expressar se fosse convidado a isso, e suspeitei que o mesmo se passava com todos os presentes na sala. Enquanto ninguém ousava romper aquela membrana que protegia a pureza de nossas respectivas introspecções, reparei que uma pessoa estava rondando nosso círculo a uma distância prudente, como se não quisesse interromper. Era um homem muito alto, vestindo um terno bem ajustado. Não pude distinguir mais que isso na penumbra. Nenhum outro integrante da roda, nem mesmo o Terapeuta, lhe deu a menor atenção, de modo que logo esqueci dele.
“Do que você estava com medo, Nora?”, disse, finalmente, o Terapeuta.
“Não sei. Mas esperei até hoje pra ligar ela de novo. Queria ligar ela aqui. Me sinto mais segura. Podemos ligar hoje?”
“Claro. É pra isso que estamos aqui.”
Nora olhou em volta como se buscasse autorização do grupo. Alguns sorriram e assentiram para ela, procurando lhe transmitir segurança. Ela colocou o dedo na nuca da androide, que entreabriu os lábios, abriu um pouco as pálpebras e inspirou como se despertasse de um transe, inflando o peito. O interior de sua boca aberta se umedeceu e todo o seu corpo começou a passar por microajustes de postura. Eu nunca tinha visto nada parecido e fui atravessado por uma descarga de desejo sexual que me deixou profundamente perplexo. Eu já tinha lido muita coisa sobre os artefatos criados para hospedar cópias de mentes, e não havia, até hoje, consenso sobre o que se passava exatamente com os dados armazenados enquanto eles se achavam desligados ou em estado de suspensão. Sempre que eu ligava o ovo, minha mãe se comportava como se tivesse permanecido de fato inativa durante todo o período que permaneceu desligada, e em geral só dava qualquer sinal de atividade depois que eu me manifestasse, dizendo bom-dia ou fazendo uma pergunta, por exemplo. Ela era capaz de se exaltar e demonstrar emoções intensas por meio da voz artificial, mas seu estado-padrão era mais próximo da serenidade inerte de uma máquina. Mas a pupa de Nora não era um ovo dotado de alto-falantes invisíveis. Uma vibração percorreu a pele da androide a partir do plexo solar, como se uma corrente elétrica radial eriçasse seus pelos translúcidos. Ao despertar, ela dava a forte impressão de emergir de uma intensa atividade introspectiva que jamais cessava, nem mesmo quando estava desativada. Mas eu tinha as minhas convicções e sabia que estava sendo enganado. Todos esses produtos haviam sido desenvolvidos para apertar os botões certos na psicologia dos humanos que interagissem com eles. Sentindo o coração palpitar de desejo, eu me assemelhava a uma cobaia copulando com um boneco embebido de feromônios.
“Eu sei onde estou. Eu conheço vocês”, disse a androide com uma voz que não parecia robótica nem orgânica mas que soava, estranhamente, como uma gravação.
“Boa tarde, Samanta”, disse o Terapeuta. “É muito bom ver você de novo.” Um coro de saudações tímidas percorreu o círculo do grupo de terapia.
“Estou com frio”, reclamou a androide, abraçando o próprio torso e olhando para Nora.
“As roupas te irritam”, disse Nora, já sem paciência. “Lembra?”
O Terapeuta levantou e pegou a androide pela mão. A máquina conseguiu antecipar o gesto cavalheiresco e ofereceu a mão para ele, mas fez isso sem desgrudar os olhos de Nora. Fiquei me perguntando se era uma atitude intencional por parte da androide, uma maneira mordaz de comunicar a Nora que era assim que desejava e devia ser tratada, ou se não passava de uma incongruência no comportamento do artefato, que se revelava incapaz de coordenar a atenção do olhar com a reação ao gesto do Terapeuta. Com delicadeza, o Terapeuta conduziu a androide até a arara, da qual uma variedade de peças de vestuário pendiam em cabides. Após um instante de consideração, a androide apontou, sem emoção, para um roupão cor-de-rosa de tecido felpudo. O Terapeuta a ajudou a se vestir.
“Nora nos contou”, disse ele, “que você dançou para ela na última vez em que se viram. Gostaria de dançar pra nós?”
“Meu corpo gosta de dançar ao som de certas canções.”
“Você pode escolher qualquer música”, disse o Terapeuta.
A androide pensou por alguns instantes, sem que isso causasse nenhuma alteração em sua fisionomia. Por fim, eu começava a me acomodar diante da presença daquele artefato. Apesar do realismo espantoso da maioria das suas características físicas, a sua natureza artificial ia se revelando nos detalhes do comportamento. Era o problema conhecido desses androides que o mercado, havia uma década, rotulava de antropomorfos. Bilhões de dólares em investimento e pesquisa eram dedicados a simular a oleosidade da pele e os suaves movimentos rítmicos da respiração, mas não havia como simular algoritmicamente a cascata inescrutável de reflexos físicos desencadeada nos organismos biológicos pela experiência interna de cada instante. Meu arroubo erótico, reparei, tinha desaparecido e deixado em seu lugar o sentimento de vergonha que vem no rastro das fantasias tolas, como se eu tivesse tomado o desejo emprestado de outra pessoa e só agora o percebesse. A androide falou o título de uma canção e o nome de um artista. A música preencheu a sala na mesma hora, em volume crescente, até estabilizar num nível confortável aos ouvidos. Era uma melodia lenta e minimalista, com piano, baixo e percussão.
“Eu queria que ela dançasse comigo”, disse a androide. De novo, sua fala soava como algo pré-gravado, e não como linguagem processada espontaneamente. Era como se ela já tivesse de antemão um arquivo de todas as frases que precisaria pronunciar em sua existência, o que obviamente não era possível. “Mas ela não quis. Toda dança pode ser a nossa última dança juntas, irmãzinha.” Passou, então, a balançar o corpo suavemente, caminhando em direção ao canto forrado de espuma, onde um foco de luz mais intenso que o do restante da sala terminava por imitar a atmosfera de um pequeno palco. Uma voz masculina grave começou a cantar em inglês.
“Vem dançar comigo, Nora.”
Nora tinha se posicionado ao lado do Terapeuta e estava observando com um olhar de piedade os passos da sua pupa.
“Você sabe que eu não gosto”, disse Nora. “E também não gosto que você me chame de irmãzinha. Cansei de repetir.”
“Você precisa pensar menos no que espera dela”, disse o Terapeuta, “e prestar mais atenção nos sinais que ela está enviando pra você agora. Lembre que ela está habitando uma casa nova, pra onde acaba de se mudar toda vez que você a liga. Não faz sentido entrar como se vocês duas morassem ali juntas há décadas.”
A androide ia dançando com gestos cada vez mais soltos. Seus movimentos eram belos, ainda que simétricos e exatos demais para que pudessem passar por humanos. Ao mesmo tempo, pareciam demasiado sensíveis para os movimentos de uma máquina. Percebi que ela estava começando a ser acometida por aqueles calafrios que Nora havia mencionado. De repente seu corpo estremecia todo, sem comprometer a continuidade dos movimentos, e ela procurava com os olhos alguma coisa que não parecia estar presente. Como uma esquizofrênica, pensei. Com o corpo visivelmente tenso, Nora se aproximou da pupa e tentou acompanhar a dança, imitando seus movimentos de maneira um tanto desajeitada. Era evidente que dançar trazia à garota consideráveis tormentos de autoconsciência corporal. Comecei a achar que aquilo tudo era injusto com ela. O que Nora estava procurando ali? Por que não se livrava de uma vez daquele arremedo de pessoa? Porque não era simples assim, não podia ser, como eu próprio bem sabia, afinal também estava ali. Algumas pessoas do grupo levantaram da cadeira e se aproximaram um pouco mais. Entendendo que isso fazia parte das liberdades permitidas nos encontros, também me levantei e cheguei mais perto. Eu tinha imaginado que os encontros da APPPH seriam mais parecidos com as reuniões de alcoólicos anônimos consagradas pelo cinema e literatura, uma troca de depoimentos, palavras de apoio, aprendizado e adesão a alguma espécie de método, mas agora entendia como isso tinha sido um erro de julgamento. Tudo indicava que essas sessões estavam mais próximas do teatro experimental ou das intervenções artísticas realizadas em pequenas galerias.
De repente a dança da androide passou por uma transformação drástica. Ela inclinou a cabeça para o lado, encostando a orelha no ombro, e começou a andar em círculos, com os braços um pouco abertos e os dedos travados em posições bizarras. Aos poucos, sem parar de andar em círculos, começou a despir o roupão cor-de-rosa e a se esfregar com aquelas mãos que pareciam aranhas mortas, como se o tecido queimasse sua pele. Seu corpo nu agora se movia de um modo mais desengonçado e menos mecânico. Nora se afastou alguns passos.
“Lembra que você dançava assim, em círculos, quando era pequena, Nora?”
“Eu não sei do que ela está falando”, disse Nora, e em seguida balançou a cabeça para os lados. “Acho que quem dançava assim quando era pequena era ela. Lembro vagamente da minha mãe dizer isso.”
A androide deu um berro. Um berro que soava como uma gravação. O que aconteceu em seguida foi muito rápido, mas talvez possa ser descrito como segue. Primeiro, ela começou a ter convulsões horrendas, em pé, no chão e depois em pé novamente, pulando como se o piso tivesse se transformado numa frigideira quente. Com a mão direita, ela arrancou fora o seio esquerdo. Nora gritou, a plenos pulmões: “Por que você não morre de novo?”. A androide correu em direção a Nora, sorrindo, e o Terapeuta se interpôs no caminho. A força da androide arremessou longe o Terapeuta. Nora subiu até a metade as escadas que levavam ao térreo e, percebendo que não era mais perseguida, parou por ali. Durante todo esse tempo, a androide repetia com a voz calma e doce, como se ainda estivesse dançando suavemente, e não sofrendo aquele ataque autodestrutivo: “Vem, irmã, eu vou cuidar de você, vem, irmã, eu vou cuidar de você, vem, irmã…”.
Por alguns segundos, assisti catatônico a tudo isso, mas depois de ver o Terapeuta ser derrubado, tive o impulso de intervir. Me aproximei da androide para tentar imobilizá-la. Eu já tinha entendido que a força dela era bem maior que a de um ser humano, mas na hora não pensei nisso, ou melhor, talvez eu tenha sido movido justamente pela vontade de sofrer em mim as consequências daquela força. Queria ser tocado por ela a qualquer custo, mesmo que para isso precisasse apanhar dela. Ela havia parado de correr e estava andando de novo em círculos lentos, trêmula, se beliscando com uma das mãos e mantendo o outro braço esticado, como uma pedinte. O buraco deixado pelo seio arrancado expunha uma camada de espuma isolante amarelada e rugosa, mais alguma ímpia criação dos engenheiros de materiais que precisaram correr atrás dos avanços abruptos na digitalização da atividade neural para fornecer corpos artificiais à altura. Segurei sua cintura com uma das mãos e estava prestes a usar a outra para tentar baixar seu braço e fazê-la parar no lugar. Ela estava fria ao toque e a consistência de sua carne sintética era muito semelhante à de um corpo humano, exceto pela presença de pequenos nódulos na substância macia de que era feito o seu tecido adiposo. O ovo que abrigava minha mãe nunca esfriava, estava sempre morno ao toque, ligado ou desligado, fizesse frio ou calor no ambiente. Antes que eu pudesse concluir a manobra para imobilizar a androide, uma mão pousou no meu ombro e me afastou.
“Não. Por favor, não mexa nela”, disse o Terapeuta.
Sua voz serena transmitiu uma grande autoridade e obedeci de imediato. Olhei em volta esperando encontrar meus companheiros de terapia em estado de pânico, mas estavam todos calmos e atentos, e Honório chegava a ter um sorrisinho de prazer no rosto mole, como uma criança assistindo a uma luta mortal entre insetos. O Terapeuta estava com um galo na testa e mantinha o braço esquerdo encolhido. Na mão direita, trazia um pequeno objeto esférico.
“Samanta, estenda os braços e sinta o ar. Isso… como um anjo abrindo as asas.”
A androide obedeceu a ele de pronto, como eu havia feito momentos antes.
“Sinta o ar com a ponta dos dedos. Feche os olhos.”
O corpo da androide ainda balançou um pouco, em transição da dança convulsiva até uma posição de repouso. Por fim, ficou parada em pé, de olhos fechados e com os braços bem abertos, os dedos ondulando como tentáculos de anêmonas. Era lindo e absolutamente não humano. O Terapeuta se postou atrás dela e, respirando fundo, de modo exagerado e ruidoso, começou a rolar a bolinha de borracha pelos braços e ombros da pupa, da ponta de um indicador até o outro, passando pelos trapézios e cervical, induzindo no corpo artificial um estado de relaxamento progressivo. De repente a máquina abriu os olhos, entreabriu a boca e pareceu enxergar algo belo que existia apenas em seus circuitos internos. Estava trancada nesse martírio solipsista quando o Terapeuta buscou o olhar de Nora.
“Pode ser agora.”
Nora ergueu um pouco a mão com que segurava o pequeno controle remoto, do tamanho de um chaveiro.
“Não esqueça de falar com ela antes”, sussurrou o Terapeuta.
“Estou sempre contigo, irmã. Não importa o que aconteça. Te amo.”
Nora pressionou o botão e a androide desfaleceu nos braços do Terapeuta como uma bailarina.
*
Este foi um trecho da novela Tóquio, que faz parte do meu próximo livro, O deus das avencas, a ser publicado em maio/junho pela Companhia das Letras. Uma história sobre corpos e mentes, uma mãe e um filho, bilionários e desvalidos, tecnologia e catástrofe ambiental. Vou deixar pra conversar mais sobre ela depois da publicação :) Espero que gostem da amostra e estejam todos bem. Abaixo mais uma playlist, dessa vez com faixas instrumentais e texturas sonoras (quase) sem vocal que me agradam, e o usual punhado de links sem contextualização. Abraços remotos -- DG.
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Seção de links
- https://www.youtube.com/user/LOLhi28/videos
- https://www.fantaspoa.com/2021/ (até 18 de abril, corram)
- https://haviverzes.tumblr.com/post/625108348851929088/tetsumi-kudo-1935-1990
- http://www.postgrowth.art
- http://www.shaviro.com/Blog/?p=1755
- https://nautil.us/issue/89/the-dark-side/the-universe-knows-right-from-wrong?utm_source=Twitter&utm_medium=b_link_post + https://enemyindustry.wordpress.com/2020/09/25/dark-panpsychism-philip-goff-and-pandemonism/
- https://piaui.folha.uol.com.br/materia/eu-existo/?amp
- https://todavialivros.com.br/livros/aguas-do-norte
- https://twitter.com/dodo/status/1376552980086812673?s=20
Playlist
"Tóquio" reúne faixas instrumentais, algumas com samples e vocais esparsos, que representam bem uma porção de climas e texturas sonoras que aprecio. Pensei na playlist também como um bom acompanhamento pra minha novela de mesmo título. Apple Music: https://music.apple.com/br/playlist/t%C3%B3quio/pl.u-MDAWWqjsWG1vpob | Spotify: https://open.spotify.com/playlist/2kabjwy6YTrXUbIduL1LQb?si=aa121cc0f1144a82
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ⓒ Daniel Galera
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