dentesguardados #8 Avencas
Um ano de pandemia. O marco inicial varia de pessoa a pessoa. O momento em que ficou nítida a ameaça e a magnitude do que seria exigido de nós. Pra mim foi no dia 17 de março de 2020, quando a escola infantil da nossa filha fechou por precaução. Antes disso, notícias das primeiras ondas da doença em outros países já causavam apreensão. O álcool gel já esgotava nas farmácias, aqui e ali se via alguém de máscara nas ruas de Porto Alegre, projetos e eventos que envolviam viagens internacionais começavam a ser cancelados e um ar ainda rarefeito de incerteza pairava em toda parte, a brisa de um precipício encoberto pela névoa. Vieram as primeiras semanas, já muito difíceis, de isolamento social. Havia menos conhecimento e informação sobre o vírus, e em Porto Alegre as autoridades inicialmente correram o risco de pecar pelo excesso. Melhor prevenir et cetera. As medidas daquele período estavam mais próximas de um verdadeiro lockdown do que as vigentes agora, quando o agravamento de uma segunda onda interminável nos trouxe a uma calamidade nacional inédita. Não se tratava, sabemos hoje, de excesso de precaução. Lembro dos meus compromissos e atividades sendo adiados ou cancelados um a um, com pouquíssimas exceções. Projetávamos a retomada de algumas coisas pra dali a poucos meses. Em maio. Mais tardar em junho, não é possível. Mas a escolinha só reabriria em outubro, e pra fechar de novo em fevereiro.
Foram aproximadamente 500 mortos só no RS ontem. Quase 3000 no país. As vidas perdidas desde o começo se aproximam de 300.000. Por extenso: trezentas mil. Um ano de pandemia. Nos governos locais, se viu de tudo. No federal, apenas negligência, deboche, incompetência, ignorância e uma incitação criminosa ao contágio e à irresponsabilidade geral. Jair Bolsonaro é um genocida. Desde o começo, arrebanha a população a comportamentos de risco e se nega a implementar as soluções comprovadas pela ciência e pela experiência para evitar dentro do possível a mortandade. Seu Ministério da Saúde, apenas tentáculo servil de sua necropolítica determinada a se reeleger, rejeitou ofertas de vacinas e passou durante meses a mensagem de que "isso aí faz parte", de que sucumbir ao vírus é uma espécie de fraqueza moral. No RS, o prefeito Sebastião Melo insiste na flexibilização das atividades comerciais sob argumentos tais como (parafraseando) "o problema é que o pessoal não se controla na farra" e "nos hospitais sempre cabe mais um." Bolsonaro e todos seus apoiadores, explícitos ou velados, ativos ou por omissão, compartilham da culpa pelo estado em que chegamos. Jair Bolsonaro é a doença.
Estou pregando pra convertidos ao escrever essas coisas aqui. Ou assim espero. Mesmo sabendo disso, me parece imprescindível fazê-lo. Na reafirmação do óbvio também se pode encontrar uma gota de alívio, embora na prática não sirva pra quase nada. Repetimos como se pra assegurar que não vivemos um pesadelo mesmo. Sabemos como é importante lembrar os horrores do passado pra não repeti-los. Hoje, nessa atmosfera quase delirante de desinformação, extremismo e pulsão de morte, nesse tempo colapsado pelo tecnocapitalismo e pelo vírus, precisamos lembrar constantemente, também, dos horrores do presente, pra não perder de vista os próprios contornos aflitivos do real.
Foram aproximadamente 500 mortos só no RS ontem. Quase 3000 no país. As vidas perdidas desde o começo se aproximam de 300.000. Por extenso: trezentas mil. Um ano de pandemia. Nos governos locais, se viu de tudo. No federal, apenas negligência, deboche, incompetência, ignorância e uma incitação criminosa ao contágio e à irresponsabilidade geral. Jair Bolsonaro é um genocida. Desde o começo, arrebanha a população a comportamentos de risco e se nega a implementar as soluções comprovadas pela ciência e pela experiência para evitar dentro do possível a mortandade. Seu Ministério da Saúde, apenas tentáculo servil de sua necropolítica determinada a se reeleger, rejeitou ofertas de vacinas e passou durante meses a mensagem de que "isso aí faz parte", de que sucumbir ao vírus é uma espécie de fraqueza moral. No RS, o prefeito Sebastião Melo insiste na flexibilização das atividades comerciais sob argumentos tais como (parafraseando) "o problema é que o pessoal não se controla na farra" e "nos hospitais sempre cabe mais um." Bolsonaro e todos seus apoiadores, explícitos ou velados, ativos ou por omissão, compartilham da culpa pelo estado em que chegamos. Jair Bolsonaro é a doença.
Estou pregando pra convertidos ao escrever essas coisas aqui. Ou assim espero. Mesmo sabendo disso, me parece imprescindível fazê-lo. Na reafirmação do óbvio também se pode encontrar uma gota de alívio, embora na prática não sirva pra quase nada. Repetimos como se pra assegurar que não vivemos um pesadelo mesmo. Sabemos como é importante lembrar os horrores do passado pra não repeti-los. Hoje, nessa atmosfera quase delirante de desinformação, extremismo e pulsão de morte, nesse tempo colapsado pelo tecnocapitalismo e pelo vírus, precisamos lembrar constantemente, também, dos horrores do presente, pra não perder de vista os próprios contornos aflitivos do real.
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Como prometi na edição anterior, inicio com esta edição a publicação de trechos de cada uma das três noveletas que fazem parte do meu próximo livro, O deus das avencas, que tem publicação prevista pra junho, pela Companhia das Letras. A primeira é a novela que dá título ao livro. Percorrendo o texto pra escolher um trecho, ficou evidente pra mim, mais do que nunca, o quanto ele é uma espécie de artefato muito distante de um passado recente. A história se passa no fim de semana da eleição de 2018. Não havia ainda Bolsonaro eleito e muito menos pandemia. Na situação -- escrita entre dezembro de 2019 e os primeiros meses de 2020 -- de um casal que se isola em seu apartamento pra aguardar a chegada do primeiro filho às vésperas da eleição, sem internet e sem contato com qualquer outra pessoa, os temas do isolamento social, do medo do futuro, da atenção desorientada pelos fluxos de informação, da localização de alguma esperança possível e do senso de coletividade necessário às transformações ganham outros significados se lidas no presente.
Há coisas importantes na novela que não poderão aparecer num trecho curto. Entre elas, se pudermos por um momento levar em conta as chamadas "intenções do autor", está a busca de uma alegoria realista e contemporânea pra sensação de viver num país que não nasce, não desabrocha, não supera os traumas da sua concepção. Mas há também a matéria trivial da intimidade desse casal, o núcleo duro de ternura que não se dissolve nem no maior cansaço ou desespero, o desejo e o contato físico que constituem a liga da vitalidade entre os corpos, e dos quais a pandemia em grande medida nos priva. Nas minúcias de uma vida compartilhada talvez se possam entrever as atrações e repulsas da vida social e das ideologias. Não sei se em grande ou pequena medida, mas de todo modo é fascinante observar e tentar escrever a respeito.
É difícil extrair um trecho autossuficiente dessa novela, pois o que se narra é mais o fluxo contínuo de uma experiência de duas pessoas ao longo de 72hs do que uma sequência de episódios distintos e encadeados. Espero que a amostra abaixo seja um aperitivo envolvente dentro do possível.
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O deus das avencas [trecho]
Qualquer dúvida que tinham a respeito de ser aquele o momento certo de ir para o hospital desaparece assim que se acomodam no banco traseiro do táxi. Há um conforto cinematográfico na situação, o carro rodando sem pressa nem interrupções no asfalto desimpedido da noite morna, sendo apenas ocasionalmente cercado por outros carros que levam pessoas não grávidas às festas daquela madrugada de sábado, gente que não está tendo filhos mas sim indo dançar, se embebedar, brigar, encher a barriga de frituras e queijo, se beijar, foder, olhar os corpos e roupas umas das outras, ter conversas exaltadas sobre séries de televisão, celebrar ou se deprimir nas ruas e bares com as últimas pesquisas eleitorais antes da eleição, ansiar ou temer por sua liberdade. Eles dois não têm a ver com nada disso agora, estão apenas pedindo licença para passar, precisam cuidar de uma coisa que excede todas as outras, uma criança que vai sair de uma barriga. O motorista, um grandalhão imberbe com sotaque de colônia alemã, permanece calmo e dirige devagar mesmo quando Manuela gane de dor. Conta que um de seus três filhos nasceu no hospital para o qual se dirigem, que ficaram presos no engarrafamento do fim de tarde mas chegaram a tempo e tudo deu certo, que resta na lembrança apenas uma felicidade enorme. O hospital fica no limiar da zona semirrural existente no coração urbano de Porto Alegre, um enclave de pequenos sítios e vilas, antigos casarões e leprosários engolidos por seus antigos jardins ao longo de décadas, pomares e pastos que a maior parte dos moradores da cidade nem sequer sabe que existem, embora fiquem a quinze minutos de carro do centro. O táxi sobe uma ladeira sinuosa entre habitações precárias e imensas árvores de mata nativa emporcalhadas de fuligem e resíduos de plástico. O céu ali tem mais estrelas. Logo estarão numa sala de parto, aos cuidados da obstetra e de enfermeiras, as dúvidas serão sanadas, os milagres do protocolo médico serão postos em prática e mesmo que ainda demore um pouco já não há volta.
Desembarcam em frente à entrada do setor de emergência. A funcionária da triagem detecta imediatamente a situação de parto e Manuela é levada numa cadeira de rodas por uma porta pesada de vidro fosco enquanto a enfermeira que a empurra faz perguntas sobre intervalos de contrações e bolsa d’água. Lucas é instruído a subir ao segundo andar, onde fica a recepção da maternidade, para preencher os formulários. O prédio do hospital parece adormecido. Luzes automáticas acendem em alguns cantos enquanto ele atravessa um salão vazio e sobe pelas escadas. Passa por murais com cartazes falando de sarampo e doação de sangue. A funcionária no balcão pede dados sobre plano de saúde e o nome do bebê. A sala de espera está vazia e contém três fileiras de meia dúzia de cadeiras estreitas, um bebedor e uma pequena televisão presa à parede e felizmente desligada. Estar sozinho no hospital vazio lhe traz, enfim, um pouco de calma. Ele pega o celular, olha as últimas fotos tiradas, resiste à tentação de se conectar. Combinaram que sairiam da bolha somente depois que ele desse o primeiro banho na criança. Pensa nos pais que moram em Imbé, a uma hora e meia de Porto Alegre, com quatro cães que são, individualmente e entre si, assimétricos em sua anatomia a ponto de parecerem a obra de um geneticista maluco, numa casa a três quadras do mar cor de chocolate, de frente para um enorme gramado que está sempre cheirando um pouco a esgoto. Manuela os descreveu certa vez como duas crianças hipertrofiadas. Eram criaturas gritalhonas e apolíticas, bondosas somente no sentido em que costumamos atribuir essa qualidade a seres ingênuos, viciadas em rodízio de pizza e séries de televisão com baixo orçamento. Sua felicidade imune a crises de qualquer tipo, meio ofensiva às pessoas sérias, era contagiante por alguns minutos, após os quais provocava em Lucas uma vontade desesperada de sumir para nunca mais vê-los. Dali a uma ou duas horas teria de ligar para eles, se preparar para os presentes inadequados e a alegria histérica que trariam. Não é que não queira vê-los, antecipa a euforia babona da mãe e os olhos marejados na cara de boneco do pai, e crê que parte da graça de ter um filho é pagar uma dívida afetiva que tem com seus genitores e antepassados. É só que ao imaginar a alegria não consegue evitar de imaginar também a fadiga espiritual que o acometerá em questão de trinta minutos. A principal vantagem de serem daquele jeito é que mal pareciam cientes de que havia uma eleição em curso e sempre votavam em quem Lucas mandava. Ou assim diziam.
Uma mulher corpulenta de avental hospitalar passa em direção à porta da maternidade, e por um instante ele pensa tratar-se da obstetra, mas desfaz a impressão assim que trocam um olhar rápido. Aos poucos começa a se questionar sobre a pertinência de tanta privacidade, tanta autoproteção, tanta autonomia. Não quer estar ali sozinho com essa sensação estranha de que estão fazendo algo em segredo, uma fuga, um aborto. Pega o telefone, abre as configurações e fixa o olhar no botão virtual que ativa os dados celulares. Sua pulsação dispara, seu corpo cansado se crispa em antecipação ao que está por vir. O dedo se aproxima da tela, o celular transmitirá uma vibração ínfima, mas de enorme potência erótica, à mão que o segura, e pronto. A porta da maternidade abre de novo e uma enfermeira magrinha e ruiva vem na sua direção. O dedo se afasta da tela luminosa. A enfermeira confirma a sua identidade e diz que Manuela já está saindo. Lucas guarda o telefone no bolso, pega o isqueiro e fica brincando com ele entre os dedos, com a cabeça latejando por um cigarro. Ela aparece um minuto depois, com os braços soltos ao lado do corpo e uma cara de morte estampada no rosto, escoltada pela enfermeira. O obstetra de plantão falou que ela está com apenas um centímetro de dilatação. Um centímetro, Lucas, um centímetro, ela repete, atônita. O médico propôs romper a bolsa e administrar oxitocina, mas ela se recusou, então foi orientada a voltar para casa e esperar. Enquanto aguardam o táxi que o porteiro chama para eles na recepção, Manuela liga para a obstetra, que se resume a dizer que tinha avisado, que era para os dois voltarem para casa e relaxarem, e ligarem de novo somente se a bolsa estourar ou se as contrações ficarem muito mais intensas e frequentes, pois agora ela precisava dormir mais algumas horinhas antes de visitar uma paciente em recuperação. Essa semana está uma loucura, ela diz, parece que os bebês combinaram. Não devem se preocupar se ela não estiver disponível na hora em que voltarem, um de seus colegas os atenderá até que ela chegue. Eles miram a escuridão indiferente em torno do hospital e não conseguem dizer nada. Se sentem como bonecos de um diorama lúgubre que é observado pelos vultos das enormes árvores. Constatam em silêncio a sua inocência perdida, o fim da ilusão de que ainda detinham algum controle sobre o que vinha pela frente, de que uma certa dose de conhecimento, de boas intenções, de expectativas razoáveis e de crença no mecanismo de causa e efeito poderia ajudá-los no duelo com as forças obscuras e viscerais que iam exercendo, cada vez mais à vontade, sua dominação.
Quando entram no apartamento, têm a demorada impressão de que ele está habitado por um desses moradores secretos que se escondem por dias ou meses a fio em armários, sótãos ou embaixo da cama. As persianas e vidros continuam fechados e o ar-condicionado e a televisão ficaram ligados, deixando a atmosfera gelada e elétrica. Não lembram de ter usado os talheres, tigelas e copos sujos espalhados na sala e no quarto. O banheiro está molhado e quente, como se alguém tivesse acabado de sair do banho. Manuela diz que é como se não morassem mais ali, como se estivessem prestes a abandonar aquele lar. As próximas horas serão as mais difíceis para Manuela e começam com ela sentando na poltrona de amamentação que puseram no quarto do bebê. Ela mexe o corpo como se a cadeira fosse de balanço. Lucas espia da porta e vê o rosto transido, um esgar quase silencioso e sem lágrimas visíveis, para o qual não lhe ocorrem palavras de conforto. Fuma na janelinha da área de serviço e entre um cigarro e outro vai conferir se Manuela ainda está na poltrona. Depois do quarto cigarro, escuta o chuveiro e o murmúrio de alguma canção tocando na caixinha de som. A porta aberta do banheiro exala uma névoa luminosa que remete a um laboratório de experimentos secretos. Ele se aproxima e vê Manuela nua, sentada na bola de pilates sob a cascata escaldante, de olhos fechados e lábios comprimidos, com as mãos pousadas na barriga, mexendo de leve os quadris e murmurando uma melodia que soa como um encantamento. É atingido em cheio, as lágrimas brotam de seus olhos e ele dá passos sub-reptícios até a penumbra do quarto do casal, que mais parece uma garagem de depósito com malas, livros, pilhas de sapatos e caixas cheias de objetos que não sabem onde botar desde a reorganização do lar para a chegada do bebê. Deita na cama e chora por alguns minutos, escutando Manuela cantar baixinho, gemer e respirar regularmente, aconchegada em sua nuvem de vapor. A imagem no banheiro não sai da sua cabeça e ele sente que testemunhou um mistério arrebatador, o flagrante de um corpo e mente perfeitamente alinhados à experiência de estar viva, como uma dessas flores raras que desabrocham poucas horas por ano no coração de selvas remotas. O que ela está vivendo, Lucas conclui, ele não pode viver, e o que ela está vivendo tem a ver com coisas que ela viveu muito antes de ele entrar na vida dela, embora nesse instante a vida de um seja a vida do outro numa sobreposição quase completa. Esse quase, porém, é imenso, é a distância intransponível de um fio de cabelo, o universo compactado numa cabeça de alfinete, é tanta coisa que não lhe diz respeito nem nunca dirá. O rangido da bola de borracha nos azulejos do boxe cessa mais uma vez e ela volta a inspirar fundo e a soprar forte, na cadência da dor. Isso não pode durar muito, ele balbucia, precisa acabar logo, por favor acaba logo.
Lucas abre os olhos e percebe que dormiu. Levanta afobado e a encontra na sala, deitada de lado no sofá, de olhos abertos. Continua tudo igual, ela diz. Ela não faz ideia de quanto tempo ele passou dormindo, uma hora ou duas, talvez. Ele abre um pouco o vidro da janela e puxa a correia da persiana. Uma fatia ofuscante de luz atravessa a escuridão da sala e pinta uma faixa dourada na parede. Eles protegem os olhos. Uma lufada de ar quente afronta o frio do ar-condicionado. Ela encontra o celular no sofá e aciona a tela. São nove da manhã de sábado, diz, com o olhar de quem achava que a essa altura já teria um bebê mamando no peito. Da rua chegam os ruídos de um helicóptero pairando nas imediações e de garis conversando aos berros sobre problemas de relacionamento. Lucas abre um pouco mais a persiana e os enxerga distribuídos nas duas calçadas da ladeira, homens e mulheres negros, vestindo uniformes cor de laranja e óculos escuros, varrendo bitucas de cigarro, embalagens de plástico coloridas e pilhas de folhetos de propaganda eleitoral. Uma sirene distante de ambulância ou de bombeiros reverbera entre os prédios. Ele tem vontade de caminhar pela vizinhança, cumprimentar os garis e lhes oferecer cigarros, descer até o quartel na Andradas e encarar os milicos como se aqueles jovens de vinte anos fossem eles mesmos o inimigo a ser intimidado.
Para Manuela, os sons da rua parecem ecoar alguma espécie de conflagração da qual eles passaram as últimas horas refugiados. A última contração correu como uma onda deixando uma espuma grossa. Para sua própria surpresa, Manuela se deixa invadir pelo desejo de ir à rua. Sabe que muitos de seus amigos e amigas estão nas calçadas naquele exato momento tentando convencer estranhos a mudarem seu voto. Quis se proteger daquilo tudo, mas agora parece que seu organismo travou no meio do processo da dilatação, ela está cansada demais, sozinha e assustada mesmo em companhia de Lucas, e a ideia de que possa haver algum alento na coletividade lhe parece perfeitamente razoável. Fez de tudo nos últimos meses para mostrar a si mesma e aos outros que a gravidez não era uma desculpa para a passividade, embora na prática tenha feito pouco mais do que opinar nas redes sociais e usar adesivos na roupa. Agora a mesma preocupação dos últimos meses retorna, deformada até o absurdo pelas circunstâncias. A reclusão do trabalho de parto, sua psique temerosa e esgotada lhe diz, parece ser só mais uma desculpa para não encarar o processo histórico, o imperativo moral de se posicionar e agir enquanto talvez ainda seja tempo. Mas antes que consiga pensar no que faria, para onde iria ou quem procuraria, os músculos da pélvis se endurecem e esgarçam outra vez e ela apenas inspira e sopra, inspira e sopra, até que o alívio chegue e reste do outro lado somente um espectro rarefeito das ideias tão urgentes que tentava segurar.
[inédito extraído de "O deus das avencas",
a ser publicado em O deus das avencas - três novelas,
em junho/21, pela Companhia das Letras]
a ser publicado em O deus das avencas - três novelas,
em junho/21, pela Companhia das Letras]
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Seção de links
- https://apublica.org/2020/06/nao-tem-mais-mundo-pra-todo-mundo-diz-deborah-danowski/
- https://tricycle.org/magazine/forgiveness-not-buddhist/
- https://www.thewhitereview.org/feature/an-uneasy-girl/
- https://www.spikeartmagazine.com/articles/downward-spiral-popular-things-dean-kissick
- https://twitter.com/detetivevsilva/status/1368250452245090313
- https://ubu.com/film/ballard_atrocity.html
- https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-presente-de-uma-ilusao/
- https://www.aboriginal-bark-paintings.com/mick-namarari-tjapaltjarri/
- https://youtu.be/YWOuzYvksRw
- https://www.youtube.com/watch?v=8bNKU8GRYmU
Bônus: aqui vai uma playlist de 1h30 de duração. Não tem nenhum tema, só umas músicas que andei ouvindo no balanço da quarentena e gostando, novas e velhas. Spotify: https://open.spotify.com/playlist/3MmzUJCMyMMAxOrkLMMhgx?si=df08a026d6904db9 / Apple Music: https://music.apple.com/br/playlist/quarentenando/pl.u-XkD00vrCDYMxv90
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ⓒ Daniel Galera
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