dentesguardados #7 Processos
Processos
No dia 1 de janeiro de 2021 terminei o primeiro manuscrito completo do livro que havia anunciado na edição anterior dessa newsletter, enviada em 6 de janeiro de 2020. Um pouco mais de um ano de trabalho, um pouco mais de um ano sem enviar uma edição nova aos assinantes, um pouco mais de um ano de vidas atravessadas por uma pandemia global ainda sem término no horizonte. O texto de hoje é meio sem rumo, vem com atraso, mas estamos sem rumo e atrasados.
É estranho pra mim, como certamente é estranho pra muitos de vocês que se inscreveram pra receber os e-mails, que eu não tenha me sentido capaz e nem ao menos compelido a compartilhar meus pensamentos nesses meses todos de pandemia. Criei isso aqui pensando em ter esse canal mais direto com os leitores, não só publicando contos e coisas assim, mas falando um pouco da vida e do meu processo de trabalho. Mas assim foi, treze meses de newsletter inativa. Não é que eu tivesse vontade de escrever e não conseguisse, por falta de tempo ou capacidade mental. Eu não tinha nem vontade. Não havia nada que eu pudesse dizer no calor dos acontecimentos que me parecesse acrescentar ao que já era dito na mídia e nas redes, ou conhecido por cada um no contexto de suas vidas. Os dias eram de ansiedade, incerteza, medo, raiva, e o alento disponível estava na família, nos amigos mais próximos, naqueles com quem a comunicação ainda incluía um laço ou ao menos um filamento de proximidade física. Era preciso entender o que se passava, saber o que fazer, sobreviver, planejar a travessia até o dia ou a semana seguinte escolhendo onde pisar sobre um chão que cedia.
A ideia de publicar qualquer coisa, um desabafo, uma denúncia, uma recomendação de cuidado ou fonte de informação confiável, uma tirada espirituosa sobre o que se passava, ou mesmo uma ficção relacionada ao tema, me parecia um desvio de foco inadmissível. Toda minha energia física e mental, nos primeiros meses de pandemia, convergia para evitar o meu contágio e o dos outros, filtrar as cataratas de informação jorrando das mais diversas fontes e tecnologias, preservar a minha sanidade física e mental, a da minha filha, a da minha esposa, isolados como estávamos, sem escola infantil, com boa parte dos projetos e viagens de trabalho cancelados, mantendo contato esporádico com os familiares mais próximos. Eu não queria tuitar ou escrever ensaios pessoais sobre isso, não achava que havia qualquer benefício em compartilhar essas coisas com leitores distantes à medida que elas aconteciam. Além de tudo, eu sabia que precisava escrever o punhado de histórias que estava decidido a escrever. Se nem minha sobrevivência nem a de outras pessoas dependia disso, a confiança que tinha em mim mesmo dependia. Ser capaz de continuar escrevendo mesmo na adversidade era uma premissa em torno da qual eu ainda organizava minha existência, com ou sem coronavírus. Fiz algumas escolhas nesse ano passado que me permitiram, aos trancos, manter o foco. Tive apoio da minha família, da Taís, da minha filha maravilhosa que me impressionou com sua capacidade de adaptação e resiliência enquanto o mundo à sua volta, que ela estava apenas começando a conhecer, se preenchia de distâncias forçadas e de novos medos invisíveis e fora da sua compreensão.
Foi terminar o livro, em parte, que me devolveu a vontade ou a capacidade de escrever aqui. Deve ter contribuído também o alívio parcial proporcionado pela reabertura da escola infantil em plano de contingência e pela chegada das primeiras doses de vacinas. Não que o pior tenha passado. Enquanto escrevo, o Brasil continua tendo mais de 1000 mortes diárias por covid-19, novas mutações mais contagiosas redobram receios, Bolsonaro insiste em sua conduta criminosa e desumana na crise, brasileiros continuam se aglomerando sem máscaras ou pegando voos comerciais sabendo portar sintomas, a educação de crianças isoladas há mais de ano segue sendo preterida pelas administrações públicas em favor de atividades econômicas não prioritárias e de uma ideia de desenvolvimento que desfigura a paisagem urbana e acelera a destruição do meio ambiente e, bem, não vou perder mais tempo enumerando o que meus leitores já sabem muito bem ou deveriam saber. É sufocante estar vivendo em um país dominado pela burrice, pelo moralismo religioso e pela desigualdade de riqueza e de direitos básicos.
Estava tentando lembrar de tudo que aconteceu nesses treze meses e certos acontecimentos voltaram à mente com a textura imaterial de um sonho: o fechamento das escolas, o cancelamento de uma residência de escrita no exterior, a demissão do Mandetta, os panelaços, a impossibilidade da minha filha se aproximar de uma pracinha pra brincar, o cancelamento de eventos culturais que sustentavam não apenas profissionais da cultura e artistas, mas toda uma dimensão da vida comunal que de repente esfarelou sem previsão de retorno. Os primeiros seis meses aqui foram de trevas. Não ficamos doentes e ninguém muito próximo de mim faleceu, embora eu tenha me abalado com a internação ou morte de pessoas que admirava ou estimava. Mas ainda não tínhamos nos acostumado nada com essa postergação infinita do alívio, com o adiamento crescente das expectativas. Houve um momento em que a paralisação de certas engrenagens do sistema capitalista, ainda que trouxesse medos como o do desemprego, acenava com a esperança de que pudessem florescer arranjos sociais e econômicos mais justos e ecológicos, realocação de orçamentos de guerra para pesquisa científica, decrescimento global, quem sabe até uma atenuação da tragédia climática. E agora aqui estamos nesse momento de recuperação que nada recupera, a reafirmação frouxa e fraudulenta do mesmo progresso que nos trouxe a todos os impasses potencialmente apocalípticos, acrescidos de uma nova e constante contagem de mortos que se inscreve nos discursos políticos e na paisagem mental como apenas um elemento novo na normalidade.
A distância entre os corpos imposta pelo vírus mata aos poucos o desejo, a solidariedade, a vontade de viver, mas o capitalismo, como não pode deixar de ser, vê apenas oportunidades para mais acumulação, seja ela material ou abstrata. Os algoritmos indicam que para a máxima eficiência prescindimos do espaço público, dos toques, de nossas vozes, de todo tipo de excedente e hesitação que ajudavam a compor os ritmos da existência. É o que Franco Berardi chama de "psicodeflação" em seu diário da pandemia, publicado aqui como "Extremo", pela editora Ubu. Sem a pulsão erótica, a sociedade murcha ainda que seus números se expandam, e o desespero que poderia suscitar alianças é canalizado para a destruição. Conseguiremos contrabalançar isso com as possibilidades formidáveis, porém de natureza muito diversa, quando não oposta, trazidas pelas tecnologias de processamento de dados e de comunicação à distância? Pagaremos a conta de não termos atentado ao substrato material e laboral que viabiliza, por ora, todas essas tecnologias? É enjoativo viver esse intermédio entre a eclosão da crise sanitária e o desenlace da sua superação ou de uma eventual derrota da humanidade. Enjoativo porque o que vamos testemunhando sugere que nossa capacidade para se adaptar ao pior é mais forte que nossa capacidade de enterrar o velho e instaurar o novo, abrir as fronteiras do possível para práticas mais solidárias, comedidas, integradas ao mundo natural, a uma técnica voltada ao bem-estar de todos sem distinção e à beleza da experiência da vida, e não ao cumprimento burro e supostamente inevitável de toda profecia que a própria técnica se apressa em apresentar. Por fim, é enjoativo porque precisamos nos adaptar a novas temporalidades, a temporalidade do vírus, das vacinas, da suspensão por longos períodos de hábitos e atividades que nos pareciam pertencer ao próprio tecido da vida cotidiana. Uma pandemia nesse sentido é um pouco como um desastre nuclear.
Não consegui escrever o tempo inteiro no ano que passou. Longe disso. O processo de escrita e o processo de criar uma vida possível sob a pandemia se abraçaram numa dança da morte, um querendo comer a cabeça do outro. Eu tinha começado a trabalhar na primeira das três novelas já no final de 2019, na verdade, e vinha tentando conciliar a escrita com outras atividades, inclusive uma oficina de romance. Veio a pandemia, o tempo do vírus se impôs. A minha oficina na livraria Baleia foi suspensa em março, no segundo encontro, e remarcada para maio, um prazo que na época parecia seguro o bastante, era claro que de um jeito ou de outro a situação teria se remediado até lá. Quando chegou maio já sabíamos que era impossível determinar o fim. Os hospitais começavam a lotar; Bolsonaro promovia a cloroquina e o negacionismo, espargindo perdigotos com um sorriso cretino na cara; vacinas ainda eram especulações. Fizemos a oficina em modo virtual. Correu tudo bem, e naquele momento os encontros daquelas pessoas unidas por uma paixão e objetivos comuns tinham o sabor extra de uma resistência do espírito contra as pancadas que não cessavam. No inverno as mortes dispararam, a psicodeflação bateu ainda mais forte. A vida de cada pessoa, de cada família, foi afetada de modo diferente pela evolução da pandemia. No segundo semestre consegui organizar melhor a mente e ao mesmo tempo criamos juntos, em casa, novas rotinas. Conseguimos passar algum tempo fora de casa, próximos da natureza, numa bolha de convívio. Em agosto eu tinha decidido dedicar todas as energias sobressalentes, as que não estavam empenhadas na vida prática e nos afetos, à conclusão do livro, que àquela altura tinha deixado de ser um volume de contos e se assumido como um conjunto de três novelas. Em novembro a escolinha reabriu com horários reduzidos. Escrevi dezembro adentro. Terminei.
A primeira novela se chama "O deus das avencas". A história se passa em 2018, às vésperas da eleição presidencial, e trata de um casal que se isola em seu apartamento, sem internet, à espera do primeiro filho, que poderá nascer a qualquer momento. A situação representa a sensação de sufocamento que tantas pessoas sentiram diante do que se avizinhava, mesmo antes de termos qualquer sinal de que enfrentaríamos uma pandemia global. Mas outros vírus nocivos já circulavam naqueles dias, vírus simbólicos, de informação, com imenso potencial sintomático na realidade social, destrutivos ou mesmo letais à sua maneira. A proximidade dos corpos ainda era possível, dentro e fora da intimidade. Como dito acima, comecei a escrever esse texto ainda em 2019, antes da pandemia. A questão toda do isolamento ganhou uma dimensão adicional à medida que eu o concluía.
Os outros dois textos avançam, cada um à sua maneira, no terreno da ficção especulativa. “Tóquio” é uma ficção científica que se passa em São Paulo, em torno da década de 2050. Um homem solitário, proprietário de uma fazenda urbana em um prédio na Consolação, precisa se tornar guardião da cópia do conteúdo mental da mãe, que lhe foi entregue em um dispositivo em forma de ovo depois que a empresa responsável pelo procedimento, e pelo armazenamento dos dados, encerra atividades por força da crise energética. Sua relação com essa mãe, uma capitalista de risco bilionária, e com uma ex-namorada começam a vir à tona enquanto ele frequenta um grupo de apoio psicológico aos guardiões desse tipo de cópia humana. A novela tangencia alguns temas que me interessam há anos, tais como inteligência artificial, consciência corporificada e mudança climática. Minha premissa quando criei a história era a de que há pouca diferença entre os ideais do pós-humanismo e a estética do horror corporal. Essa é a novela mais longa, com o dobro da extensão das outras.
A terceira novela se chama “Bugônia”. Sobre ela não tenho vontade de entrar em muitos detalhes. Gostaria que cada leitor chegasse nela sem noções preestabelecidas e extraísse dali as ideias e sensações que puder ou quiser, boas ou ruins, não importa. Eu a vejo como um cruzamento de gênero pós-apocalíptico com toques de poesia bucólica clássica. Mas é uma descrição forçada e sem dúvida presunçosa. Melhor dizer que é somente um voo de imaginação que floresceu na minha mente e que tive o maior prazer em narrar. Estão embutidos nela, espero, alguns contornos de visões e filosofias que considero úteis ou ao menos alentadoras diante do futuro cataclísmico que muito provavelmente nos aguarda. Alianças com outros seres, adaptação dos modos de vida aos destroços do capitalismo. A trama se passa em uma comunidade isolada que estabeleceu uma espécie de simbiose com as abelhas selvagens. A linguagem é um pouco estranha, pelo menos se comparada à minha ortodoxia usual nesse aspecto. É um texto que eu poderia ter escrito se tivesse começado a escrever hoje.
Nas próximas três edições da newsletter, espaçadas por duas ou três semanas, planejo enviar pequenas amostras de cada uma das três novelas, aperitivos pra assinantes desse boletim. O livro, se tudo correr bem, sai em maio/junho. Expor assim trabalhos não publicados sempre me deixou um pouco nervoso, mas queria fazer isso aqui porque, enfim, criei a newsletter lá atrás e chamei as pessoas. Vocês tiveram a bondade de assinar. Achei que iam gostar de saber um pouco mais sobre o processo, sobre o que andei escrevendo e vivendo no ano que passou.
Vou encerrar dizendo que ao abrir o TinyLetter pra digitar essa edição e deparar com o número de assinantes, e depois dar uma olhada desatenta pela lista dos e-mails inscritos, tive como nunca antes uma sensação de vertigem ao pensar nesse ato de escrever algo de caráter pessoal e submeter a tanta gente que conheço e não conheço. É um atestado de como a minha vida mudou de anos pra cá, de como o mundo mudou, de como a internet mudou. Eu publicava coisas pessoais na internet e fora dela sem pensar duas vezes, sem gastar tempo imaginando quem recebe, o que vão achar. Um pouco é porque fui ficando mais velho e me afastando do tipo de interação social que a web 2.0 em diante promoveu a modo de comunicação dominante da sociedade. Em outros tempos, ser uma pessoa quieta e se comunicar com muita gente pela internet eram coisas conciliáveis, mas agora, não sei explicar bem por quê (ou até saberia, mas seria todo um esforço à parte e não vem ao caso agora), não é mais assim. Há uma violação de alguma coisa autêntica de cada pessoa no tipo de rede social que acabou imperando. Sei que estou soando como o vovô Simpson gritando com uma nuvem, então vou parar. Mas depois desse ano em que não tive vontade de compartilhar nada fora do mais estrito círculo familiar e de amigos, depois de meses desse acaramujamento, me parece de novo vital disparar sinais de fumaça para todas as pessoas que ao longo dos últimos anos se interessaram pelo meu trabalho ou por mim, seja com sinceridade ou cinismo, com admiração ou ojeriza. Sinto falta brutal da presença física dos meus amigos, dos encontros com leitores e gente de todo tipo nos eventos literários, dos deleites e desprazeres da vida presencial. Em tempos de perdas tão dolorosas, tão vastas e agravadas por injustiças e negligências, ganha importância acima do normal lembrarmos uns aos outros que estamos todos aqui pensando, sentindo, criando, absorvendo a fabulação, a poesia e o conhecimento que circulam. Espero que todos vocês estejam bem, protegidos, protegendo, amparados, amparando, aguentando firme, contentes sempre que possível. Vai dar.
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Seção de links
- https://www.youtube.com/watch?v=f4CN6sxDvr0
- https://revistaourocanibal.com/2020/09/03/as-ondas-de-suicidio-e-a-doenca-incuravel-formas-de-sofrimento-psiquico-no-capitalismo-tardio/
- https://www.matthewgenitempo.com/jasper
- https://criticalposthumanism.net/
- https://twitter.com/cesarfavacho/status/1213506833761128449?s=21
- https://www.nature.com/articles/s41599-020-0494-4
- https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/vida-sustentavel-e-vaidade-pessoal-diz-ailton-krenak/
- https://allisonschulnik.me/
- https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/01/medicos-e-pacientes-relatam-efeitos-colaterais-graves-do-chamado-tratamento-precoce-contra-covid.shtml
- https://diariodapandemia.blogspot.com/
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