dentesguardados #5 Crueldade
Crueldade
Algumas imagens de crueldade contra animais na literatura que mexeram comigo e ficaram na memória: em A travessia, de Cormac McCarthy, dois bandidos metem a faca no peito de um cavalo sem a menor necessidade, talvez frustrados por não terem conseguido levar nada de bom após um assalto. Por dias, o cavalo se recusa a beber água e fica deitado, sangrando e resfolegando, até que enfim se recupera; em Viagem ao fim da noite, de Louis-Ferdinand Céline, a descrição do cavalo que Bardamu monta combatendo na Primeira Guerra, tremendo de dor e com o lombo transformado numa ferida aberta e fedorenta, com pus escorrendo pelas patas; em Sátántangó, de László Krasznahorkai, a irresumível cena da menina torturando e esganando o gato.
O romance Animalia (título na edição inglesa da Fitzcarraldo), de Jean-Baptiste Del Amo, acrescentou algumas cenas a essa coleção de crueldades literárias que me deixaram impressões profundas. O livro começa como um dos pesadelos góticos dos primeiros romances de Cormac McCarthy, narrando a vida de uma família de pequenos agricultores no interior da França, no raiar do século 20. Pai, mãe e filha sobrevivem como podem ao lado de seus animais de criação, chafurdando no esterco e nas doenças, excitados e oprimidos pelos instintos, pela moral religiosa e pelo psicodrama familiar. A menina, Eléonore, procura o companheirismo de porcos, cães, aves e gatos, nem que isso signifique se deitar no chão da pocilga para mamar na teta de uma porca. O pai definha até literalmente se esvair em humores pútridos e fecais e ser absorvido pelo colchão do seu catre imundo. A mãe desce cada vez mais fundo em seu funil de rancor, devoção e desgaste físico, destilando um ódio que é descarregado na filha. Um jovem primo da família, Marcel, vem morar com eles para ajudar na pequena fazenda. Eléonore se apaixona, mas Marcel é logo convocado para lutar na guerra, da qual retorna desfigurado e traumatizado.
Esse é um resumo muito grosseiro das duas primeiras partes do romance. O estilo de Del Amo é um naturalismo algo pomposo, de arroubos apelativos, que procura os detalhes chocantes e os excessos até obter um efeito algo transcendente. É como se a narrativa estivesse levantando a cortina de uma objetividade biológica terrena para espiar um reino de verdades mais cósmicas e intuídas, que só se pode entrever com a ajuda de uma dose de exagero retórico. O autor faz tudo que pode para colocar homem e bicho no mesmo patamar (o título original é Régne Animal), ressaltando a corporalidade mortal que nos iguala a porcos e vermes. O resultado é muito impressionante e convincente, e a leitura vai dando a sensação de que se está entrando em um território ancestral de relações com a natureza. A ênfase no sofrimento e na morte, entretanto, tem mais potência enquanto fruição estética desestabilizadora do que como proposta filosófica. O niilismo biológico, nessa primeira metade do livro, gera imagens e sensações intensas, mas não está dizendo nada muito extraordinário.
Na terceira e quarta partes, o romance dá um salto de tempo até os anos 1980, ajustando a estratégia narrativa para alcançar objetivos um tanto diversos da primeira metade. Acompanhamos agora os descendentes de Eléonore e Marcel numa propriedade rural moderna, fundada sobre a pequena fazenda de outrora. Marcel está morto, Eléonore é uma matriarca reclusa, e são os netos de Eléonore e suas respectivas famílias que administram e trabalham na criação de porcos em escala industrial. O naturalismo das primeiras duas partes é amenizado e cede lugar a um psicologismo mais tradicional do romance europeu; há questões freudianas e transtornos mentais no lugar de corpos machucados que definham em proximidade íntima com animais de criação. Os animais agora não estão mais próximos dos humanos, e sim amontoados organizadamente em um galpão projetado para maximizar a produtividade, tratados como matéria orgânica insensível a ser explorada. A narrativa fica mais comum do ponto de vista da linguagem e do estilo, e também mais esquemática e previsível, mas em contrapartida a abordagem da questão do sofrimento animal cresce em intensidade e ganha um contundente impacto filosófico. Os dois ou três porcos da pocilga com os quais a pequena Eléonore se deitava, e que eram carneados na ponta da faca em um ritual comunitário que envolvia crianças, adultos e outras espécies de animais, agora dão lugar a centenas de suínos acondicionados em baias estreitas dentro um edifício dantesco pelo qual escorrem rios de merda líquida em meio aos quais boiam fetos de porquinhos abortados pelas porcas estressadas ao limite. Antibióticos, doenças, gerenciamento de insumos, cruzamentos, maximização da fertilidade e esforços sisifeanos de manter algum disfarce de limpeza são as preocupações constantes dos homens que cuidam da criação, enquanto as crianças e mulheres fazem o que podem para não enlouquecer no ambiente doméstico opressor.
A compaixão pelos animais é inata em certas pessoas. Para outras, ela é adquirida aos poucos, por meio da experiência vivida, de informações absorvidas e reflexões acumuladas. E há, aparentemente, aqueles que jamais serão capazes de nutrir empatia por criaturas não humanas, exceto talvez aquelas formatadas geneticamente para serem criadas como mascotes. Cresci no Rio Grande do Sul, onde o culto ao churrasco não é necessariamente desvinculado de uma certa adoração reverente pelo animal de criação ou pelo animal que trabalha. Comemos quantidades imensas de carne vermelha, mas há uma noção disseminada de que o gado por essas bandas é criado da maneira mais livre possível, comendo pasto em vez de rações, que o abate é tão misericordioso quanto pode ser, noção que em determinados casos tem algo de verdade, mas está longe da pureza normalmente alardeada.
De minha parte, até alguns anos atrás tinha a sensação de que ter presenciado o abate de animais desde a infância me gabaritava com alguma espécie de reserva moral para consumir carne livremente. Nunca fui uma daquelas pessoas que vê o bife na bandeja do supermercado e não sabe de onde veio e como foi parar ali. Sempre que necessário, eu podia evocar cenas do meu avô abrindo a barriga de um porco e arrancando as vísceras com as mãos, a terra encharcada de sangue e a densa nuvem de moscas que, debaixo de uma árvore, marcavam o local onde horas antes haviam carneado um boi, as ovelhas penduradas no galho e degoladas da forma certeira por um peão (nunca por mim, jamais ousei encostar na faca) para que logo percam a consciência, entorpecidas pelo sangramento em um sacrifício à moda antiga. Não é que eu tenha realmente me habituado com nada disso. Foram testemunhos isolados, eu poderia contá-los nos dedos das mãos, pois nasci e me criei em cidades grandes, lidando com bovinos, porcos e aves na forma como os encontramos em hipermercados, lanchonetes e churrascarias.
Nunca fui insensível ao discurso dos defensores de direitos animais, vegetarianos e veganos, embora tenha levado um bom tempo para despir as camadas de sarcasmo que permeiam a cultura a meu redor. Travei contato com ideias (e receitas) valiosas ao ouvi-los (e comer com eles). Ao mesmo tempo, trago arraigada em mim a noção de que alimentar-se de animais é moralmente defensável dentro de certos parâmetros. Com o passar dos anos, consegui me libertar da glorificação estúpida do consumo excessivo de carne, tanto na sua forma sincera quanto na auto-irônica, à medida que fui adquirindo mais conhecimento sobre as práticas da pecuária e da produção de carne em grande escala de um ponto de vista do tratamento dado aos animais. Ainda mais recentemente, a consciência sobre o custo ambiental e ético das monoculturas e da pecuária em grande escala reforçou ainda mais a convicção de que as práticas e sensibilidades relacionadas ao consumo de carne precisam mudar, no meu prato, no país e no mundo. Mesmo quando não aderimos totalmente às suas convicções, vegetarianos e veganos são faróis que podem orientar carnívoros moderados em direção a práticas mais esclarecidas, que podem fazer bastante diferença. No entanto, não acredito que um ser humano que mata um animal para comer é um assassino.
Em When species meet, Donna Haraway articula com rara lucidez e inclusividade a questão da moralidade do matar-para-comer. Segundo ela, devemos nos recusar a estabelecer classes de seres “matáveis” para qualquer finalidade, inclusive alimentação, o que não quer dizer que matar para comer é sempre automaticamente errado. Precisamos “habitar as consequências daquilo que sabemos e fazemos, incluindo matar.” Não há norma que dê conta dessas questões. Evocando Derrida, Haraway diz que “não há linha divisória racional ou natural que possa resolver as relações de vida e morte entre animais humanos e não humanos; tais linhas não passam de álibis que imaginamos serem capazes de resolver a questão ‘tecnicamente’”. E também: “Comer significa matar, direta ou indiretamente, e matar bem é uma obrigação semelhante a comer bem. Isso se aplica tanto a um vegano quanto a um carnívoro humano. O diabo, como sempre, está nos detalhes”. Tudo isso pode soar vago e evasivo, mas não é. Trata-se de tomar decisões conscientes e localizadas, com base em tudo que sabemos e experimentamos. Sabendo o que sei sobre a agropecuária extensiva, considero moralmente obrigatório reduzir significativamente o consumo de carne e consumir alimentos orgânicos e de pequenos produtores na maior proporção possível. Aos poucos, estou me tornando melhor nisso. A militância contra o especismo (ou seja, contra a ideia de que a superioridade da espécie humana lhe dá direito de matar e explorar as outras espécies), alguns passos antes de suas conclusões radicais, também aponta um caminho necessário: o de expandir a noção de “espécies companheiras”, diminuindo o excepcionalismo do humano em relação ao não humano, trazendo todas as criaturas, não apenas animais, para dentro desse círculo de empatia em que reconhecemos tanto o direito mútuo à vida quanto a dependência que essa vida tem de outras vidas.
Voltando ao livro de Del Amo, ele talvez tenha sido um marco para a minha sensibilidade em relação aos animais. A compaixão que eu era capaz de sentir e praticar ainda era muito dependente de uma divisão rígida entre a crueldade gratuita e a crueldade com uma finalidade, seja ela a alimentação, a pesquisa científica, a vestimenta e outros contextos em que justificativas pontuais podem se aplicar. Se a crueldade não pode ser totalmente erradicada, é imperativo que ao menos a tomemos como elemento constituinte da vida comunitária, do pensamento e das relações de convívio. O romance de Del Amo nos mostra como algo valioso se perde na trajetória entre a animalidade compartilhada da pequena fazenda de cem anos atrás e a cisão entre homem e animal que se manifesta no ambiente da fazenda de porcos moderna e mecanizada, e após sua leitura fica muito difícil permanecer indiferente a isso. Não se trata de modo algum de idealizar como as coisas eram antigamente, até porque a realidade narrada na primeira metade do romance é de uma violência e miséria atrozes. Mas, naquele momento, pelo menos os humanos estão olhando de frente para os animais, vivendo ao lado deles, coabitando o lugar dessa crueldade que, de momento em momento, acompanha a perpetuação de organismos vivos e precisa ser observada, entendida, mediada e evitada tanto quanto possível, sem recair em presunções beatíficas que apontam para uma pureza incompatível com o funcionamento da vida. E se os valores proporcionados por aquela proximidade, daquele senso de compartilhamento da crueldade, puderem ser combinados aos avanços técnicos e científicos dos dias de hoje?
Um pensamento a respeito do animal que seja verdadeiramente inclusivo não deve se restringir a questões de matar e criar para comer. Animais domésticos, assim como vacas e porcos, também são em muitos sentidos adaptados pelo homem à sua própria conveniência. Considero a questão da castração de cães e gatos, por exemplo, incrivelmente complicada de um ponto de vista ético, muito embora defensores dos animais sejam quase unânimes em considerá-la recomendável ou, percebam, “humanitária”. A intenção de controlar a população para evitar animais abandonados é legítima apenas quando se desconsidera o ponto de vista do animal, para quem ter as gônadas extirpadas resulta em alterações hormonais, de comportamento e de saúde. É conveniente para o animal, ou é conveniente para ele somente na medida em que consideramos os efeitos convenientes para nós? Repito, acho a questão complicada e não quero simplificar nem oferecer uma resposta definitiva para ela. Posso compartilhar que decidi não castar meu cachorro quando o trouxe para casa aos cinco meses de idade. Queria respeitar seu modo de existência, presumi que a intervenção não era de seu interesse e que a responsabilidade para lidar com um animal dentro de um apartamento e em um ambiente urbano era toda minha, que o trouxe para casa. Ele tampouco tinha culpa de ser resultado de cruzamentos controlados que criaram uma raça cheia de energia, obcecada em reunir rebanhos com mordidas nos tornozelos. Foi tudo bem durante dois anos e meio, até que o levei para cruzar com uma fêmea em um canil. Depois disso, ficou mais dominante e agressivo, a ponto de tornar-se impossível soltá-lo nos parques e cachorródromos sem que atacasse outros cães. Depois de pedir a opinião de três veterinários, decidimos castrá-lo. Em alguns meses ele se acalmou, passou a dormir mais, voltou a frequentar cachorródromos. Facilitou a vida dos humanos que cuidam dele. Mas para ele, o que significou esse procedimento cirúrgico? Tudo parece ter vindo para o bem, ele pode travar contato com outros cães domésticos por aí e, levando em conta a vida que lhe estava reservada, trata-se de um acréscimo de qualidade de vida, mas um espectro de dúvida e curiosidade compassiva nunca deixou de me rondar no que diz respeito a esse assunto. Não, Donna, nunca é fácil mesmo. E talvez não tenha como ser. Quando relações entre espécies parecem fáceis demais, provavelmente há alguma medida de ignorância, consciente ou não, mas sempre conveniente para nós, aguando a complexidade inerente a uma postura verdadeiramente solidária.
Acabo de ler também Sobre os ossos dos mortos, da nobelizada Olga Tokarczuk, recém publicado aqui pela Todavia, um delicioso romance de mistério protagonizado por uma senhora que enfrenta caçadores ilegais no vilarejo em que vive, atormentada com a crueldade gratuita que praticam contra cervos, raposas e cães. A narradora é uma vegetariana que iguala o consumo de qualquer animal para qualquer finalidade a um assassinato. Não há na visão dela sobre este assunto específico nenhuma nuance ou complexidade como os pregados por Donna Haraway. Mas a personagem também é uma adepta da astrologia, o que coloca entre ela e este leitor uma barreira epistemológica considerável. De todo modo, o romance é permeado por uma compaixão e pelo que eu chamaria de uma “ternura pelo universo” que são absolutamente encantadores e comoventes, e que o tornam uma leitura recomendada. Eu e a personagem de Olga concordamos em algo, diferenças à parte: nossa atitude em relação aos animais (e eu diria em relação às criaturas não humanas como um todo) será decisiva para moldar o mundo que teremos de agora em diante.
No Brasil, não apenas se reforça a visão de que uma vaca é feita para comer, como também de que uma árvore é feita pra derrubar, um rio é feito para represar, uma terra é feita para o extrativismo indiscriminado, um índio é feito para ser assimilado e uma mulher é feita para gestar. Criaturas, de acordo com o poder eleito e boa parte da opinião pública, são definidas pelo modo como Deus supostamente nos garante que elas devem ser exploradas. É imprescindível fazer frente a isso, denunciando, concebendo e defendendo alternativas, fomentando sensibilidades opostas, lembrando que a compaixão não se realiza sem o conhecimento responsável da crueldade.
A narradora de Sobre os ossos dos mortos lá pelas tantas confronta pela enésima vez um dos policiais que desdenham de suas queixas contra os caçadores ilegais:
— A senhora sente mais pena dos animais do que das pessoas.
— Não é verdade. Sinto pena de ambos, de modo igual. Contudo, ninguém atira contra pessoas indefesas — disse ao funcionário da Guarda Municipal naquela mesma noite. — Ao menos nos dias de hoje — acrescentei.
— Sim, é verdade. Somos um estado de direito — o guarda confirmou. Pareceu-me bondoso e pouco sagaz.
— Os animais mostram a verdade sobre um país — eu disse. — A atitude em relação aos animais. Se as pessoas tratarem os animais com crueldade, não adiantará de nada a democracia ou qualquer outra coisa.
Hitler era vegetariano. Mas a crueldade enquanto projeto de estado, como a que avança em velocidade alarmante no Brasil, talvez possa ser melhor entendida à luz de uma seletividade da empatia. Não existe solidariedade seletiva; a abrangência de todas as pessoas e formas de vida é uma condição para a solidariedade. Remover o humano do centro do diagrama das formas de vida que merecem consideração, abolir a seletividade da empatia e reconhecer responsavelmente a cota de crueldade que habita as regiões de nosso auto-interesse mais imediato devem fazer parte de qualquer rascunho de formulação ética para o nosso tempo, se quisermos ter esperança de melhorar um pouco o mundo.
Seção de links
- https://www.catarse.me/osa
- https://www.nytimes.com/2019/09/03/opinion/dogs-spaying-neutering.html
- https://www.youtube.com/watch?v=Af7Gk2jY3pQ
- http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/7692-uma-vida-no-chthuluceno
- https://www.excavating.ai
- https://twitter.com/joaofellet/status/1197501193058242571?s=20
- https://www.revistaserrote.com.br/2019/10/ondas-catastroficas-por-daniel-galera/
- https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/noticia/2019/09/paulo-scott-negar-o-racismo-e-uma-postura-clara-de-agressao-ck0r1tz6f0atr01tg10h6varq.html
- https://www.canalmeio.com.br/2019/08/18/antonio-donato-nobre-rios-voadores-pesquisa-fapesp-youtube/
- https://nplusonemag.com/online-only/online-only/you-will-come-to-resemble-the-material/
- https://www.canopycanopycanopy.com
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