dentesguardados #4 Planta
Planta
Há um conto extraordinário do Paulo Henriques Britto, "O companheiro de quarto", incluído na coletânea Paraísos artificiais (Companhia das Letras, 2004), sobre o qual me deu vontade de falar um pouco. É um conto de apenas sete páginas, discreto em meio a textos mais extensos ou de temática superficialmente mais impactante, mas que me ficou na lembrança como a pérola desse excelente livro.
O narrador, que nos relata a história em primeira pessoa, passa a dividir seu quartinho alugado com um rapaz reservado, "de olhos meio puxados" e que "falava meio diferente". Desde a primeira frase, sabemos que o narrador se sente incomodado com a presença desse colega de quarto, não porque ele cause alguma perturbação ou problema, mas justamente pelo contrário. O rapaz quase nunca abre a boca, sai de manhã cedo e vai se deitar assim que volta para casa ao fim do dia, trouxe apenas um colchão e uma mala, não se incomoda com os "cacarecos" do narrador, que estão espalhados por toda parte, nem com a luz que o narrador mantém acesa madrugada adentro et cetera. O rapaz tem "um cheiro meio estranho", apesar de tomar banho regularmente, e logo que se muda pede autorização para trazer um vaso de planta para dentro do quarto, o que imediatamente se torna motivo de implicância do narrador, que pede que ele mantenha a planta do lado de fora da janela durante a noite, porque "de noite as plantas roubam oxigênio do ar."
O conflito, portanto, fica estabelecido logo de início. Temos este narrador desconfiado, implicante e evidentemente mau-caráter, que se sente agredido pelo temperamento quieto e reservado de seu colega de quarto, bem como por sua aparência frágil e seus traços asiáticos. A tensão ganha complexidade quando, certa noite, o colega de quarto chega em casa e encontra o narrador transando com uma garota no minúsculo recinto que não permite nenhuma privacidade. O rapaz logo diz que não tem problema, se deita na cama e "fica na dele". A partir daí, o narrador parece obter satisfação cada vez maior em submeter o rapaz a essa situação. A garota, porém, se compadece do rapaz e demonstra por ele um interesse mais compassivo, querendo saber se ele vive sempre sozinho, se nunca traz garotas para o quarto, coisa e tal. Começa a entrar em jogo o ciúme do narrador, e as possíveis pulsões homossexuais reprimidas que poderiam explicar, ao menos em parte, sua hostilidade em direção a esse jovem estranho e inofensivo. Quando a garota deixa de aparecer sem dar explicações, o narrador começa a suspeitar que ela e o colega de quarto podem estar tendo um caso.
Já haveria subtexto suficiente aí para justificar a existência do conto: o ar de superioridade do narrador como disfarce para sua insegurança patológica e desejo reprimido, seu medo diante do outro e das diferenças (por exemplo na maneira desdenhosa como descreve o rapaz ora como chinês, ora como japonês, ora como somente estranho ou esquisito), a vulnerabilidade do rapaz passivo ao micropoder opressor do "dono do pedaço" (o narrador detém a prerrogativa de ser o primeiro morador do quitinete alugado, o que parece bastar para que determine as regras do local, muito embora admita, lá pelas tantas, que está devendo sua parte do aluguel para o novo colega de quarto) et cetera. O trabalho com a linguagem, que no caso do PHB costuma ser exemplar, também colabora para a completude do conto, e aqui se manifesta em uma oralidade bem ritmada, com gírias na dose exata para transmitir a malandragem do narrador sem abrir mão de uma limpidez literária que nunca chama a atenção para si mesma.
Mas há também a planta. Essa plantinha do colega de quarto aparece no início do conto como quem não quer nada ("Tinha o tal lance da planta dele"), parecendo ser apenas mais um detalhe interessante para caracterizar o personagem. Mas logo surgem motivos para suspeitar que ela terá mais importância adiante. Quando o rapaz pede autorização para trazer a planta para dentro do quarto, o narrador logo tenta impor obstáculos, mas o rapaz insiste. Já sabemos, assim, que a planta tem algum significado muito especial para esse rapaz, a ponto de tirá-lo pela primeira e única vez de sua bolha de isolamento e submissão, aparentemente a um grande custo emocional.
Nas primeiras aparições, a planta é descrita como algo banal, "uma plantinha de nada, num vaso de barro feio, grande demais pra ela", tendo como única característica peculiar o cheiro, que o narrador alega ser parecido com o cheiro estranho emanado também pelo colega de quarto. Às vezes o rapaz fica um tempão só olhando a planta, calmo, com o olhar perdido. Tudo isso sugere uma conexão um pouco misteriosa entre a planta e seu dono, e o leitor começa a intuir que ela não é apenas um detalhe, e que há uma promessa de estranheza crescente nas páginas seguintes.
"No começo eu quase não reparava na planta", diz o narrador. Mas ela começa a crescer, a ficar "vistosa", os galhos "meio que se curvam pra cima" e as folhas vão ficando "grandes, muito diferentes". Então ocorre a primeira visita noturna da garota, e o interesse dela pela planta suscita também o interesse do narrador. Nas visitas subsequentes, a garota curiosa faz perguntas ao colega de quarto a respeito da planta, diz que "nunca viu uma planta crescer tão depressa", descreve suas folhas como "lindonas, chocantes mesmo". À medida que a suspeita de estar sendo traído pela garota e pelo colega de quarto se intensificam, o narrador ocasionalmente volta a descrever o crescimento da planta: "Nos galhos de cima estava começando a pintar uns pontinhos vermelhos, ia dar flor. E as folhas estavam começando a mudar de forma, cada uma estava ficando com uma forma diferente, não tinha duas iguais, um lance muito doido."
O desfecho do conto não é dos mais surpreendentes, embora seja, ainda assim, perfeitamente adequado. Cada vez mais enciumado e irritado com o colega de quarto, o narrador empurra o vaso da janela e a planta se espatifa lá embaixo. O rapaz ainda a recupera e a coloca em um novo vaso improvisado dentro do apartamento. Mas a indignação moral do narrador atinge o ápice, e seu desejo reprimido atinge uma pressão exasperante, tanto que ele vê o colega de quarto entrar no banho e o agride verbalmente por ser "bonito demais pra homem" e ter uma "pele de garota". Por fim, enquanto o rapaz toma seu banho, o narrador termina por dilacerar a planta com as mãos, num gesto de destruição da beleza que evoca a escrita de Yukio Mishima ou a cena final do filme Tabu (1999), de Nagisa Oshima. Ele arranca fora os exóticos botões de flor, depois arranca as folhas "uma a uma, tentando não olhar direto pra elas" [grifo meu]. Depois de quebrar o caule, relata que "um cheiro forte encheu o quarto inteiro, como se alguém tivesse quebrado um vidro de perfume." O narrador crê estar fazendo isso por ódio ao colega de quarto, embora o leitor atento possa identificar que se trata, na verdade, de ódio por si mesmo. A planta, por sua vez, não é alvo do ódio de ninguém. Os três personagens a admiram, ou mesmo a amam, como é o caso do rapaz, e por isso mesmo, talvez, ela esteja destinada a ser o bode expiatório desse pequeno drama humano, a vítima de um rancor que precisa correr em alguma direção.
A destruição da planta é uma cena chocante que oferece uma dose generosa de resolução ao conto, mesmo que a narrativa se interrompa logo aí, e não fiquemos sabendo o que ocorre em seguida. Mas ainda existe um detalhe que pode passar despercebido, e que para mim é a chave para o fascínio residual que o texto me causou, persistindo na lembrança por semanas a fio. Só reparei onde estava a fonte desse fascínio residual quando reli o conto.
Na primeira vez em que o narrador realmente se deixa afetar pela presença da planta, suas observações incluem o seguinte:
"Quando eu ficava olhando pras folhas um tempão eu começava a achar que elas me lembravam alguma coisa que eu já tinha visto antes, podia até nem ser uma planta, podia ser outra coisa, mas o que era, eu nunca que lembrava não, mesmo que eu ficasse meia hora só olhando pra ela, mesmo que eu achasse que era importante lembrar o que era que aquelas folhas me lembravam."
Esse trecho inocula no leitor a expectativa de que o narrador finalmente revele, em algum momento do relato, a lembrança que as folhas da planta parecem atiçar em sua memória. E é possível que a questão ficasse para trás, pois o desenvolvimento da história não requer que a lembrança realmente ocorra, mas o autor volta ao assunto no último parágrafo: "Olhei pras folhas e comecei a achar que se eu olhasse pra elas mais um pouco e fizesse um esforço eu ia sacar o que era que elas me lembravam. Mas não fiz esforço nenhum." E então ele procede à destruição da planta, e o conto termina. Fica a sensação de que a planta era a chave para destravar o segredo do narrador, e com isso ampliar ainda mais a já complexa teia de significados da história.
A planta, quanto mais se pensa nela, vai parecendo mais que um detalhe, mais que um elemento-chave, mais até que o conto inteiro.
Nunca saberemos qual é a aparência da planta do colega de quarto. As descrições oferecidas são ao mesmo tempo generosas e genéricas, cuidadosamente talhadas para despertar o interesse da imaginação sem moldá-la de maneira alguma. O poder da planta é um poder espectral, de contaminação entre os personagens, e entre estes e o leitor, até que estejamos todos enredados por esse mistério do ser da planta, que por sua vez se retrai, permanecendo para sempre inacessível. A planta, repito, é maior do que o conto inteiro, e podemos dizer o mesmo, pensando bem, de todos os personagens, criaturas, objetos ou fenômenos realmente poderosos que povoam as narrativas, nos contaminando ou habitando com essa qualidade espectral: são partes maiores que o todo.
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___Sei que a periodicidade dessa missiva está um pouco aquém do desejável, mas não percam a fé. Obrigado a que continua aí na listinha. Continuo escrevendo muito pouco, mas nos últimos meses dei alguns passos importantes pra limpar terreno e ensaiar novos inícios. Teve um dia, faz umas três ou quatro semanas, que peguei todos os meus inícios de contos e textos esboçados para organizar um plano de trabalho, e o resultado foi o apagamento da quase totalidade desses rascunhos, trechos e anotações. Não coloquei na pastinha "Incompleto" ou "Rascunhos" nem nada. Apaguei mesmo. Mas acho que tem coisas legais brotando nos destroços. Tenho em mente um punhado de ideias para contos que realmente tenho vontade de desenvolver. Pelo menos três deles são narrativas derivadas do romance Meia-noite e vinte. Não exatamente continuações ou "prequels", mas... outras coisas, protagonizadas por personagens que aparecem naquele livro, alguns protagonistas, outros secundários ou meros figurantes. Anteontem fui ao lançamento de Davi Boaventura, que acaba de publicar seu Mônica vai jantar pela Não Editora, estávamos batendo um papo enquanto ele caneteava meu livro, e de repente ele me perguntou, meio à queima-roupa, se eu achava que Meia-noite e vinte tinha sido uma guinada no meu estilo, se o romance era o primeiro passo de um caminho que eu pretendia seguir desenvolvendo ou mesmo radicalizando. Acho que eu nunca tinha colocado a questão nesses termos, e fiquei sem conseguir responder nada coerente pro cara, mas fiquei pensando naquilo e concluí que não há retorno ou guinada possível, caso pensemos no processo criativo como um fluxo constante que tem início no primeiro livro e continua até este exato momento. É preciso ir em frente, apoiado no que se acabou de conseguir produzir, sem neurotizar a respeito de como cada nova frase digitada se encaixa no grande esquema das coisas. Melhor se preocupar, isso sim, em povoar o texto com plantas, essas plantas que parecem nos lembrar de alguma coisa, não sabemos bem o que é, mesmo que fiquemos meia hora só olhando pra elas, se bem que acho que está quase, estou quase lembrando, quase...
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Inaugurei isso na edição passada, e pretendo manter: encerrar com uma seção de links contendo apenas os... links. URLs sem título, descrições ou comentários. Houve uma época em que a leitura de URLs era uma arte toda especial, e em muitos casos elas eram a única fonte de informação disponível a respeito do destino para o qual um link apontava. Clica quem se sentir instigado. A ideia é evocar um pouco a sensação de clicar em links na fase 2 da internet (1995-2000), uma experiência bem mais exploratória e imprevisível que a de hoje.
Obrigado pela leitura; fiquem em segurança e de cabeça erguida no espetáculo de ignorância do nosso desgoverno; e de vez em quando, ou sempre que possível, adotemos a postura de Keanu Reeves: tudo bem fazer uma pausa às vezes, não se envolver, deixar o mundo se separar um pouquinho de você.
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Seção de links
- https://pitchfork.com/features/profile/bill-callahan-shepherd-in-a-sheepskin-vest-interview/
- https://blogblawgblog.wordpress.com/2019/03/08/thinking-instead-of-writing-ecology-reasons-imagination-and-stalling/
- https://www.youtube.com/watch?v=a9TAUdZySQM
- https://www.quantamagazine.org/neuroscience-readies-for-a-showdown-over-consciousness-ideas-20190306/
- https://aeon.co/essays/feminists-never-bought-the-idea-of-a-mind-set-free-from-its-body
- https://www.imdb.com/title/tt0064068/
- https://rateyourmusic.com/release/album/jandek/the-ray/
- https://www.jan-mayen.no
- https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-caos-como-metodo/ + https://piaui.folha.uol.com.br/materia/procura-se-um-presidente/
- https://todavialivros.com.br/livros/eu-amo-dick
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