dentesguardados #37 Mergulho
"Meu coração batia forte desde o mergulho e mais ainda agora, abafado pelo volume gigantesco do oceano, querendo ser ouvido. Eu poderia jurar que ela o escutava."
Mergulho
Uma ficção pra encerrar o ano e saudar o verão.
Ela seguia à minha frente e eu via seus pés afundarem na areia cinzenta e pastosa como cimento fresco, as panturrilhas se contraindo como corações no ritmo das passadas. A trilha cruzava gramíneas densas enfeitadas por margaridinhas amarelas. No topo da última duna, a areia roçada pela brisa costeira já estava seca, quente e branca. Paramos um instante para admirar o horizonte oceânico aceso pelo sol matinal, nos ajustando ao sopro fresco daquela amplidão repentina. Na descida até a praia, a trilha se desfazia entre plantas rastejantes de folhas suculentas. Ondas grandes e gordas vinham de muito longe e esmoreciam antes de quebrar na beira com docilidade inesperada.
“Qual teu nome mesmo?”, perguntei.
“Minerva.”
Aguardei que perguntasse o meu, mas ela não o fez e nunca faria.
Três crianças brincavam com pranchas de isopor na água rasa, sem adultos por perto. Alguns idosos marchavam na areia molhada de roupa de banho, tênis e chapéu, exemplos da variedade anatômica humana pendulando os braços flácidos com vigor deliberado. O sol ganhava altitude mas ainda nos olhava de frente. Não deviam ser nove horas.
A cena de Minerva lendo o livro que eu havia esquecido na mesa do quiosque um pouco antes me voltava à cabeça com matizes de paranoia que eu dispensava com um risinho anasalado. Mas havia algo aliciante na fantasia ilógica de que ela e o suposto irmão já sabiam alguma coisa a meu respeito antecipadamente, de que tinham sido enviados para me encontrar e instalado sua barraca na hora e no lugar certos para me espionar. De todo modo, eu não acreditava na minha sorte. Ela parecia genuinamente interessada em mim, e não confundia meu retraimento com falta de interesse. Eu mal a conhecia, mas era como se ela houvesse me reconhecido após uma longa espera.
No sopé da duna, com os tornozelos cor de caramelo clareados por meias de areia fina, ela pôs as mãos na cintura, olhou para os lados e virou a cabeça para trás, sorrindo.
“Quer escolher o lugar?”
Estávamos bem no meio da enseada, que se estendia por meio quilômetro à direta e à esquerda. Dei alguns passos à frente, passei por ela e me posicionei no que imaginei ser o centro geométrico da faixa da areia.
“Aqui.”
Ela veio até onde eu estava e desatou a canga da cintura. Estendeu o pano sobre a areia e se agachou para esticar as pontas. Sentou de pernas cruzadas, de frente para o mar. Eu me acomodei a seu lado, segurando os joelhos. Nos deixamos acolher pelo frescor salino da paisagem. Ela pegou uma caixinha de metal que trazia presa à calcinha do biquíni com uma fivela. Deslizou a tampa entalhada com a figura de uma criatura híbrida, com corpo de touro e cabeça de ave, e tirou de dentro um baseado e um isqueiro Bic amarelo. Acendeu o baseado, deu alguns pegas sem dizer nada e me ofereceu. Era um fumo doce, não se parecia com nada que eu já houvesse fumado. Dei só um pega e devolvi o baseado. Ela apagou o cigarro delicadamente na areia e o guardou de volta na caixinha de metal.
A cintilância do oceano parecia responder ao pulso das minhas têmporas. Olhei para Minerva por cima do ombro, tentando imaginar sem sucesso o que se passava em sua cabeça. Quis quebrar suas clavículas salientes com as mãos como se fossem gravetos, sorver a agonia tranquila que escaparia por sua boca. A brisa marinha roçava as pontas quebradiças dos seus cabelos, que caíam por cima da orelha ornada com duas argolas diminutas. Ela me olhou, se sentindo observada, e sorriu com o canto do lábio empinado. A ideia de que um toque dependeria da minha iniciativa rompeu a teia frágil do meu conforto. Embora na época eu não entendesse dessa forma, meu medo das mulheres excedia em muito o meu desejo, e não haveria de ser diferente com ela. Suspirei de sofrimento antecipado. Eu diluiria quaisquer acenos de libido em um caldo insosso de hesitação e desperdício, até que ela desistisse de mim ou eu fugisse, o que viesse antes.
Deitei sobre a canga morna com as mãos atrás da cabeça e tentei não pensar. Dessa nova posição enxergava a tatuagem circular que ela tinha entre as escápulas, quase na nuca, alguma espécie de mandala. Os detalhes do desenho haviam se perdido com o tempo. A tinta estava esmaecida em linhas gordas e esverdeadas, quase indistinguíves na pele pardacenta.
“Essa tatuagem é antiga?”
“Bem antiga. Como dá pra ver.”
“Parece um sol escuro.”
“É uma ótima interpretação nova pra esse borrão.”
Uma incongruência difusa que me intrigava desde que a vi pela primeira vez no camping ao amanhecer adquiriu nitidez súbita. Ela não tinha idade para possuir uma tatuagem tão esmaecida. A não ser que tivesse se tatuado quando era criança ou fosse muito mais velha do que aparentava. Ou eu não entendia nada de tatuagens. E havia todas aquelas manchas e cicatrizes. E a impressão de que ela resistia constantemente a um cansaço que seus olhos, porém, traíam a todo momento. Nos gestos econômicos, na simpatia dosada que parecia enconder um pesar antigo, eu entrevia uma experiência de vida que não cabia em seus anos. Sempre inclinado a preencher lacunas de informação com fabulações, me perguntei se ela não seria uma criatura fantástica, uma vampira. Ou se tudo que eu achava que sabia sobre corpos e tempo apenas arravanha a superfície de mistérios nunca considerados.
Seu companheiro de barraca era um enigma ainda maior. Eu o imaginei à nossa espera no camping, sorrindo, certo de que eu morderia alguma isca. Eu tinha certeza de que estavam me enganando, e, contra todo o meu receio e bom senso, a possibilidade de estar sendo enredado em um jogo malicioso me atraía.
“O que o teu irmão faz?”
“O que ele faz?“
“Ele disse que ia ficar trabalhando.“
“Ah. Ele é matemático. Entre outras coisas.“
“Entre outras coisas? Por que fico tendo a impressão de que vocês estão tirando onda de mim?“
“Não é a nossa intenção.“
“Que outras coisas?“
A resposta demorou.
“Ele dança muito bem. Ele já trabalhou em barcos de pesca. Estuda muito por conta própria. Faz um tempo que ele está tentando resolver uns teoremas. Eu não entendo muito bem. Ele pode te explicar.“
“Ele trabalha em alguma instituição? Dá aulas?“
Ela riu.
“Não. No momento, não. A gente tá viajando faz tempo.“
“Como ele se chama?“
Ela se virou para mim. O sol subia veloz e agora me encarava por trás do seu ombro, me ofuscando.
“Não quero ficar falando sobre ele agora. Pode ser?“
“Então me conta alguma coisa sobre você.“
“Não“, ela disse, enfática. “Assim não.“
“Assim não como?“
“Um interrogatório.“
“Vocês são mesmo irmãos?“
“Assim não.“
“Tá. Desculpa. O que tinha nesse cigarro?“
“Shh.“
Ela pôs a mão na minha barriga. Fechei os olhos e minha respiração parou. Permaneci rígido como um cadáver. Ela deslizou a ponta do dedo pela trilha incipiente de pelos que nascia no meu umbigo e sumia dentro do calção. Traçou o caminho de ida e volta algumas vezes e removeu o dedo. Suspirei e relaxei.
O gemido longo e antinatural de uma serra circular se alternava com marteladas e tinidos metálicos em algum canto sem importância do pequeno balneário. A concussão das ondas quebrando a poucos metros também alcançava meus ouvidos, primeiro um estampido espumoso, depois um tremor surdo que se propagava na areia. Eu via o céu azul no qual orbitavam poucas nuvens delgadas. Não via o sol, que ainda percorria sua trajetória imemorial, mas sentia a pele se abrindo, ardente, para receber seus raios oblíquos. A ascensão vagarosa daquele sol era a medida de todos os ciclos e durações da minha vida, das vidas no planeta. Estávamos inertes e em movimento no arranjo estonteante dos mecanismos do mundo. O berço de areia quente sob a canga me amolecia. Eu tinha pegado a estrada de madrugada e ainda não tinha dormido. Elevando um pouco a cabeça, vi os quadris e a coxa de Minerva a meu lado. Aspirei ou imaginei aspirar o aroma da sua pele. Minhas pálpebras pesaram.
Acordei com a língua pastosa descolando do céu da boca. Estava deitado de lado e meus olhos se abriram para uma paisagem de borrões coloridos. Um cheiro sulforoso de maresia e decomposição empestava o ar abafado. Tentei me mexer e encontrei resistência. Estava enrolado na canga dos pés à cabeça.
Girei para os lados, me retorcendo como uma larva, abrindo aos poucos o meu envoltório e cobrindo de areia o meu corpo grudento de suor até conseguir me sentar com a canga enrolada nas pernas. Entre as pregas do tecido estava o estojinho de metal com o touro alado. A areia refulgia com uma luz branca e furiosa. Por uma fresta entre as pálpebras, olhei em volta. Um homem passou carregando nos braços um menino que chorava aos berros com a cara suja de picolé derretido. Mais perto, uma vespa amarela enorme arrastava uma aranha ainda viva em direção às dunas. A cena despertou um déjà vu que me absorveu por um minuto. Saí dele para a realidade da minha presença solitária na praia.
Eu tinha uma chance de escapar. Tremia de frustração. Me angustiava pensar que minha namorada chegaria dali a poucos dias, que teria de ir buscá-la na rodoviária de uma cidade próxima. Não estávamos nem há dois meses juntos, ela tinha enganado a família com uma história para vir ao meu encontro. Eu me apegava à sua beleza, à sua risada desengonçada e ao privilégio da sua atração por mim, e me agarrar com ela no corredor de uma festa lotada me enchia de uma alegria dilacerante que podia durar dias, mas também havia ocasiões em que eu queria que ela não existisse, que nunca tivéssemos nos conhecido na arena social feroz da faculdade, onde temia que minhas travas afetivas e sexuais estivessem sempre prestes a ser desmascaradas de modo espetacular. Eu não me envolvia muito pelo que estava aprendendo, começava a pensar que tinha sido um erro me matricular em um curso de comunicação social, ainda podia voltar atrás e me transferir ou prestar novo vestibular para biologia, educação física ou informática. Qualquer coisa. De preferência em outro estado. Minha família me apoiava em tudo, e um professor do ensino médio tinha me mostrado na idade vulnerável os livros onde eu aprenderia que a minha existência precedia minha essência. Mas eu já começava a questionar isso, a suspeitar que o desejo de um encontro comigo mesmo pressupunha sim alguma essência. Se não um destino, pelo menos um certo arranjo entre eu o mundo que se oferecia menos à autocriação do que ao reconhecimento. Pensei em voltar para casa já no dia seguinte, tornar alguma mudança de rumo irreversível antes da virada do ano. Terminar meu relacionamento com um telefonema. Estragar um pouco a vida. Pensei em tudo isso ao mesmo tempo em que constatava se tratar de um devaneio covarde. Eu só me deixava levar pela vida e optava pelos caminhos mais convenientes quando havia escolha, era um molenga com a sorte dúbia de possuir um ar misterioso que insinuava algo além. Minha sabedoria, se eu tinha alguma, estava em saber desaparecer antes de notarem o embuste.
A figura de Minerva se aproximando com uma cerveja dentro de um porta-garrafas de isopor me arrancou desses pensamentos. Dois copos americanos de vidro balançavam de ponta-cabeça no gargalo.
“Oi, você tá bem?“
“Quanto tempo eu dormi?“
Ela apontou para o sol a pique.
“Uma hora e meia, talvez? Você caiu em sono profundo, de boca aberta. Te cobri com a canga e fui caminhar um pouco. Fiz a trilha até as pedras. Vim te acordar com essa cerveja antes que tivesse uma insolação.“
“Acho que vou voltar pro camping.“
“Você tá com cara de dor. Tá bem mesmo?“
Ela fincou a garrafa na areia, puxou a canga até desenganchá-la das minhas pernas e a sacudiu a alguns passos de distância. As partículas de areia lançadas ao ar pintaram clarões de um reino invisível.
“Vou tomar essa contigo e voltar“, falei. “Vou embora amanhã cedo.“
Enquanto ouvia isso, ela fez algumas tentativas desastradas até finalmente conseguir estender a canga a meu lado de uma só vez com um movimento suave. Serviu a cerveja nos dois copos e me entregou um deles. Quase só espuma.
“Parece que botam detergente“, falei.
“Bebe antes de esquentar e vamos entrar no mar.“
Sua voz, sempre altiva para encobrir aquele pesar ancestral, transparecia agora uma fisgada de tristeza, o que me fez olhar para ela com toda a atenção. Era como se a minha eventual recusa ao seu convite para nadar pudesse significar um desperdício terrível. É uma das imagens mais nítidas que guardei dela. Os cabelos emaranhados no vento, a ponte do nariz um pouco tostada, os olhos como fossas submarinas abrigando colônias de vida em naufrágios, a irradiação feroz do meio-dia no corpo rijo ressaltando nódoas — tantas manchas, calos, queloides — que faziam pensar em décadas de vida ao relento. Quem ou o quê a teria enviado para me reconhecer?
Logo esvaziamos os copos e estávamos pisando nas ondas, avançando contra a força da água gelada. Fiz meu teatrinho de não me intimidar com o choque térmico, avançando sereno e impávido contra o arrasto ritmado das ondas que não quebravam. Ela deu impulso e saltou como um golfinho, perfurando a superfície e arqueando o dorso numa chicotada. Emergiu um pouco adiante, esbaforida. Enxerguei meus próprios pés apoiados na areia sob a água roxa e transparente, as rendas vivas de luz turquesa dançando no fundo. Mergulhei.
Sem combinar, nadamos por alguns minutos em direção ao fundo e paramos. Não nos afastamos tanto assim da margem, mas a profundidade havia aumentado o bastante para que os nervos captassem a enormidade ininteligível do oceano. A praia seca e luminosa permanecia ao alcance de poucas braçadas, mas já estávamos expostos a enigmas que só ali se formulavam.
“Você nada bem“, ela disse.
“Tu também.“
“Será que dá pra tocar o fundo aqui?“
“Deve dar.“
Ela encheu os pulmões e mergulhou. Vi seu corpo acastanhado se desmanchar na escuridão do mar até sumir e se recompor alguns segundos depois, irrompendo na superfície.
“Não consegui“, ela disse, cuspindo água e arfando.
“Vou tentar.“
Prendi a respiração e fui descendo esticado na vertical, com uma das mãos erguidas. Olhando para cima, vi o caleidoscópio de reflexos do sol e as pernas de Minerva dando coices circulares. Pensei em filmagens submarinas de mamíferos nadando. Cavalos, elefantes. Sempre com uma graça que os humanos não possuem. Esperava tocar o fundo com os pés a qualquer instante, devia ter descido mais de três metros. Me forcei para baixo mais um pouco com a ajuda dos braços. Senti a pressão doendo nos ouvidos. Lembrando que precisava guardar um pouco de ar para a volta, desisti e comecei a subir, batendo as pernas e remando com braçadas abertas. Rompi a superfície com o peito queimando.
“Nada?“
“Nada.“
“É como se tivesse um abismo embaixo da gente.“
“Um abismo sem fundo.“
“Escuro e gelado.“
Ela deitou na superfície de barriga para cima, esticou as pernas e os braços e ficou boiando de olhos fechados. Fiquei perto dela, submerso até o nariz, me detendo em partes de seu corpo que afundavam e emergiam ao sabor da ondulação, ciente da inadequação do meu olhar mas me sentindo no pleno direito de aproveitar, vendo a água escorrer por entre seus peitos até o pescoço, os pelos espetados através da calcinha do biquíni, os dedos dos pés procurando o sol como prolongamentos cartilaginosos de uma curiosidade zoológica. Meu coração batia forte desde o mergulho e mais ainda agora, abafado pelo volume gigantesco do oceano, querendo ser ouvido. Eu poderia jurar que ela o escutava. Notei quando abriu os olhos, encarou o sol o quanto pôde e voltou a fechá-los.
“Tá pensando no quê“, perguntei.
“Que o sol é uma cabeça decepada e tem sangue quente jorrando em cima de mim.“
“Meu deus.“
“Eu não inventei isso. É do escritor que você está lendo.“
“Não cheguei nessa parte.“
“É de outro livro.“
“Que mais ele diz sobre o sol?“
“Que ele é como uma ejaculação. Que a gente só enxerga por causa da luz dele, mas se olhar direto, ele nos cega.“
“E a gente tá bem aqui no meio agora. Entre o abismo e a luz que cega.“
“Sim“, ela disse, se deixando afundar e se aproximando de mim com braçadas suaves. “Bem no meio. Você entende.“
Ela chegou perto. Coloquei a mão em sua cintura escorregadia. Ela não reagiu. Tirei a mão.
“E daqui a pouco o sol vai começar a descer“, ela continuou. “Vai se pôr no horizonte e pintar o céu com as cores mais lindas que se pode conhecer. E a gente vai sair daqui e admirar as ondas de longe, e essas coisas que metem medo e parecem que podem nos matar, o fundo do mar, o sol que cega, vão nos encher de vida e de amor pelo universo.“
“Eu sinto amor pelo universo agora. Bem aqui.“
“Mas você está triste. Triste demais, na minha opinião.“
“Não estou triste. Eu sou assim.“
“Não é isso.“
Ela segurou uma das minhas mãos embaixo d’água.
“Quero que tu faça uma coisa comigo.“
“Tá.“
“A gente vai boiar olhando pra cima e encarar o sol pelo maior tempo possível. Até ficar insuportável. Quando não aguentar mais, tem que fechar os olhos, prender a respiração bem rápido e mergulhar o mais fundo que der, e então abrir os olhos lá embaixo, onde é escuro. O mais fundo que der.“
“Esse teu sotaque é de onde?“
“Meu sotaque?“
“Tu é de outro país?“
“Eu morei em muitos lugares. Quer fazer?“
“Qual é o objetivo?“
Ela deu um tapa no meu rosto, bem forte. Senti os molares contra a bochecha e ouvi um estalo como um galho se partindo atrás dos olhos. Uma dor latejante se espalhou na face atingida. Não gemi, não disse um palavrão, não devolvi, não perguntei qual tinha sido a ofensa. Antes que eu conseguisse esboçar reação, ela deu um impulso à frente e beijou minha boca. Seus lábios pressionaram os meus por dois segundos e se afastaram.
“Ei“, ela sussurrou.
“Ei.“
“Quer fazer ou não?“
Fiz que sim com a cabeça. Ela se afastou de novo e voltou a boiar. Olhei em volta antes de imitá-la, como se me despedisse dessa vida. Busquei sustentação na densidade vacilante da água, estiquei os braços e as pernas, endireitei a coluna. Abri os olhos para uma explosão de claridade ininteligível. Cerrei as pálpebras por instinto, mas ainda enxergava um véu vermelho e ardente.
“Não consigo ficar de olhos abertos muito tempo“, falei.
“Tudo bem“, ela disse. “Olha de olhos fechados. Um pouco antes de mergulhar a gente abre.“
Ficamos boiando por um minuto, talvez dois. Eu resistia à tentação de cobrir os olhos com a mão enquanto a claridade impossível transpunha as pálpebras e invadia como lava as ranhuras do meu crânio, evaporando os pensamentos. Ia ficando cego para o meu próprio interior. Sentia a água gelada entrando e saindo dos ouvidos, escutava o marulho distante e frenético como os balbucios de um esquizofrênico em uma caverna.
“Abre“, ela disse.
Abri os olhos e dessa vez os mantive abertos contra o instinto, indiferente ao dano, recebendo o golpe líquido da luz que derramava do céu como sangue fervente. Quanto mais tentava fixar o sol, mais ele me agredia com sua totalidade caótica.
Não sabia dizer se ela ainda boiava a meu lado ou já havia mergulhado. Mas eu soube que era o momento, não suportaria esperar mais. Puxei ar até encher os pulmões, prendi a respiração, fechei os olhos com força e mergulhei fundo. Desci com a cabeça para baixo, convictamente, empurrando a água para trás com as mãos em concha, me impulsionando também com as pernas, sentindo a pressão aumentar ao redor da cabeça. Teria aguentado descer ainda mais fundo, mas tive receio. Parei e abri os olhos.
Estava tudo escuro e silencioso. Fiquei à espera de uma convulsão, uma epifania, mas eu estava imerso na mais perfeita calma, algo próximo do que eu imaginava ser uma morte tranquila. Mas eu não tinha acabado de abandonar, apenas um instante atrás, uma outra sensação de quase morrer? Aquele rugido de luz que me deixava no limiar de uma desagregação completa havia dado lugar a essa imobilidade sem peso, consoladora, sem que eu tivesse experimentado uma transição, e meu organismo todo estava paralisado e aliviado como uma presa recém-esquecida por uma fera à espreita. Tinha a impressão de não ser mais uma grandeza discreta. À medida que minha visão se habituava, a água foi recuperando aos poucos sua tonalidade verde-arroxeada, partículas minerais pairavam diante do meu nariz, rumores portentosos chegavam de regiões ocultas. O que eu percebia através do sentidos não podia ser tudo, mas tudo aquilo que eu não podia perceber não era distinto do que eu percebia em nenhum sentido fundamental. O fundo do mar foi aparecendo aos poucos como uma extensão de tênue claridade verde e espectral. No sentido oposto ia se revelando a superfície faiscante. Recuperei o senso de que havia cima e baixo, de que esses dois lados me atraíam com forças distintas que se anulavam. Uma queimação que nasceu no peito e desceu ao estômago me fez notar que estava quase fôlego. Me opondo a uma das forças e cedendo à outra, comecei a subir em direção ao sol estilhaçado.
Quando botei a cabeça para fora d’água, Minerva já estava lá.
“E aí?“, ela perguntou, sorrindo.
Eu não sabia o que dizer, apenas sorri de volta. Dois seres arfantes após uma brincadeira que de qualquer ponto de vista razoável só podia ser fútil, mas o mundo já não era o mesmo para mim. Havíamos experimentado a mesma coisa? Ela sabia desde o começo o que aquilo causaria em mim? Não posso afirmar, mas até hoje acredito que sim, que ela sabia precisamente.
Voltamos nadando até a beira e saímos do mar calados. Ela espremeu a água dos cabelos, exibindo as axilas carnudas e raspadas. O movimento na praia havia aumentado, a balbúrdia dos banhistas e o Tim Maia soando no rádio de um carro estacionado em um acesso próximo enchiam a atmosfera de alegria difusa. Ela franziu as sobrancelhas para mim.
“Diz alguma coisa, menino.“
“Não sei. Eu estou no meio. É assim que eu me sinto, no meio.“
Ela ficou séria, pensou um pouco. Espetou meu peito com o indicador.
“O meio é intenso. Tão intenso quanto os extremos. Pouca gente aprende. Eu levei muito tempo.“
“Quanto?“
“Não é coisa que se pergunte.“
Ela fez menção de ir embora. Mas se deteve e me encarou.
“Você vai?“
“Vou.“
Ela assentiu, piscou e saiu andando, dourada, sem idade, subindo a duna em direção ao camping, me deixando sozinho. Meus ombros ardiam, machucados de sol. Mesmo assim, permaneci sentado na areia sorvendo a normalidade da praia em pré-temporada. Você vai o quê? Eu não fazia ideia do que ela estava falando, nem me importava. As gotas d’água na minha barriga, as ilhas esfumadas no horizonte, o riso da minha espécie, qualquer coisa em que prestasse atenção tinha um brilho perfeito.
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