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November 4, 2025

dentesguardados #36 Ônibus

Uma viagem de ônibus lendo as anotações de Albert Camus em seus últimos anos de vida revolve lembranças de outras viagens parecidas na juventude. Passagem do tempo, sensualismo, desespero, amor pelo futuro.

De ônibus com Camus

Algumas semanas atrás, viajei de ônibus de Porto Alegre até uma cidade do interior gaúcho onde participaria de uma feira de livros e durante o percurso de sete horas de ida e outras sete horas de volta li os últimos cadernos de anotações pessoais deixados por Albert Camus, escritos entre 1951 e 1959, traduzidos para o inglês por Ryan Bloom e publicados em um volume intitulado Notebooks: 1951-1959 (Volume 3), e a determinada altura do regresso me dei conta de que aquelas anotações terminariam dias antes da morte de Camus em um acidente de carro, em 4 de janeiro de 1960, aos 46 anos, e que aquelas reflexões íntimas, pesquisas e notas para textos em progresso ou somente aventados se sucediam numa espécie de contagem regressiva rumo à aniquilação e o silêncio total, definitivo, do seu autor, de modo que a estranha sensação de fundo que acompanhava minha leitura até então só podia ser, eu percebia agora, uma vontade impossível de alertá-lo do que estava fadado a acontecer, como se ainda houvesse tempo de evitar que embarcasse naquele automóvel guiado por seu editor Michel Gallimard com destino a Paris, levando uma valise contendo documentos pessoais, traduções francesas de Nietzsche e Shakespeare, o último volume dos cadernos de anotações que eu estava lendo e o manuscrito inacabado de seu romance autobiográfico, O primeiro homem. Me dei conta também, contemplando pela janela do ônibus os vales profundos e bosques de araucárias da descida dos Campos de Cima da Serra, que eu estava com os mesmos 46 anos de idade que ele tinha ao morrer.

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Tão comum quanto encontrar a obra de Camus nos anos de formação e ser inspirado por suas ideias é reencontrá-la mais tarde, na chamada meia-idade, depois de ter ouvido por aí que o existencialismo é uma doença da juventude, e colocar em suspeição, inicialmente, a força daquelas mesmas ideias. Meses antes, eu tinha relido alguns livros de Camus: O mito de sísifo, O estrangeiro, O homem revoltado. Esse último, que eu provavelmente nem tinha entendido muito bem antes dos vinte anos, me soou mais pertinente e belo do que nunca em sua recusa meio quixotesca do niilismo e da violência em nome de qualquer causa. Os outros dois mantiveram seu impacto inaugural, mas dessa vez eu os li ciente de que faziam parte de um “ciclo do desespero” ao qual a produção posterior de Camus acrescentou nuances e camadas. Sobre o existencialismo, eu tinha chegado por conta própria ao longo dos anos à mesma conclusão que ele deixou anotada em seus últimos cadernos: “Dois erros comuns: existência precede essência ou essência precede existência. As duas marcham e assomam no mesmo passo.” Agora, a leitura dos cadernos descortinava camadas da vida e obra de Camus que provavelmente não teriam me tocado tanto se as tivesse lido mais de duas décadas atrás.

Seus últimos anos de vida, que sucederam a publicação de A peste e a briga com Sartre e quase toda a esquerda intelectual na França ao se posicionar contra o stalinismo e o terrorismo independentista na Guerra da Argélia, foram assombrados pela falta de confiança e pela dificuldade de escrever (o prêmio Nobel só piorou tudo). “Aos quarenta, você consente à aniquilação de uma parte de si mesmo”, escreveu. “Gostaria que os céus ao menos retificassem todo esse amor não utilizado e tornassem resplandecente o trabalho para o qual já não tenho mais forças.” Saudoso de uma solidão edênica que estava ligada às lembranças solares da juventude na Argélia, Camus manifesta várias vezes a sensação de ter se perdido de si mesmo em algum ponto. “Os homens aprendem a viver aos poucos. E eu, para quem a vida sempre foi tão natural, fui desaprendendo aos poucos a viver, até o momento em que cada ação e pensamento meus passaram a adicionar ao meu sofrimento e ao dos outros, aos fardos insuportáveis desse mundo do qual eu, contudo, originalmente tanto gostava.”

Eu não assinaria embaixo de declarações tão desalentadas. Tampouco posso negar que algo nelas ressoa em certos estados interiores que experimentei em anos recentes, carregando meus medos do futuro (ou do mês seguinte), minhas dificuldades criativas e um certo senso de defasagem da minha presença no mundo através de uma pandemia, uma catástrofe climática, Bolsonaros, IAs. Passar da metade da jornada rumo à morte natural troca a lente com que observamos os fenômenos, tanto os subjetivos — aparência, vitalidade, memória, hábitos — quanto os que estão à nossa volta, mas eu não diria que temo a morte, não ainda, e devo isso menos à contemplação da impermanência ensinada por meus amigos budistas do que à noção camuseana do absurdo, essa luz inaugural que nos compele a afirmar a vida apesar da falta de sentido. Meu pessimismo em relação aos rumos da humanidade é contrabalançado pelo júbilo que preenche meus dias: minha mulher, nossa filha, nossa cachorra, os momentos “toda a família no sofá”; minha família, meus amigos, nosso bairro; a quietude provisória da minha sala de trabalho, meus avanços hesitantes nas páginas em branco; o prazer biomecânico de uma braçada bem dada na piscina, uma torrada de “kimcheese”, um entusiasmo mútuo por um livro.

Se passagens dos cadernos de Camus como as acima citadas me tocam, é menos por identificação direta e proporcional, e mais pelo consolo azedo de descobrir que Albert Motherfucking Camus, aos 46, se atormentava por razões que posso reconhecer daqui do meu milênio e do meu cercado. Percebo também, navegando por seus cadernos, que ele anotava as coisas com uma estrutura muito semelhante à minha, e essa identificação me dá um orgulho bobo. Notas pertinentes à escrita do livro começam com a palavra “Romance.” ou o título “Primeiro homem.”, seguidos por uma partícula de cena, uma ligação entre uma imagem e uma ideia, ou o que parecem telegramas cifrados que só o seu autor pode desvendar. O romance como aquela ocupação mental constante querendo passar à frente das tribulações mais prementes do cotidiano, ebulição indistinta de imagens e ideias obscuramente concatenadas. Em cada anotação apressada, uma gota de esperança de capturar esse segredo, ao longo de meses ou anos de artifício e acúmulo.

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Ainda descendo a serra em direção a Porto Alegre com meu Kindle em mãos, agora com o caos simbiótico das gotas de chuva na janela, lembrei que não era a primeira vez que eu lia Camus durante uma longa viagem de ônibus. Lá pelos dezoito ou dezenove anos, fiz algumas vezes a viagem entre Porto Alegre e Campinas de ônibus para visitar um amigo de infância que tinha se mudado com a família e estudava filosofia na Unicamp. As passagens aéreas tinham custo proibitivo e eu não me arriscava a dirigir para nenhum destino mais distante que as praias de Santa Catarina, mas não era só por isso que eu escolhia o ônibus interestadual, na verdade eu gostava muito de viajar de ônibus, e ainda gosto. A sensação de estar preso naquele não-lugar da poltrona, a vidraça ampla pela qual a paisagem desliza em uma altenância hipnótica de repetições e novidades, o cheiro de chulé dos estofados, as cortinas beges presas a cordas elásticas, o balanço uterino das curvas, freadas e arrancadas, o ocasional murmúrio dos outros passageiros conversando (hoje substituído pelo ruído infernal dos reels e mensagens de áudio emitidos pelos celulares da maioria sociopata), os paradouros de beira de estrada com suas cantinas oferecendo pastéis murchos, salgados farinhentos e banheiros temerários, a sensação de habitar por horas seguidas aquele casulo em movimento, tudo isso sempre me pareceu tão desejável quanto um retiro em uma cabana para escrever ou meditar. Longas viagens de ônibus acolhem a mente solitária e criativa como poucas outras circunstâncias que conheci na vida, e sempre antecipei as minhas com grande entusiasmo, me munindo de CDs, livros, cadernos de anotações e porcarias de comer, mas levando sobretudo a predisposição de passar longos períodos sem fazer nada, com o olhar perdido na janela, sabendo que nenhuma decisão ou ato seria exigido de mim até o próximo paradouro, deixando os pensamentos e sensações fermentando no caldeirão pré-linguístico da introspecção. Hoje em dia é necessário desligar o celular para atingir a plenitude desse estado elevado, mas até uma década e meia atrás a transição era automática e estável, eu só saía dela quando o ônibus estacionava quase um dia inteiro depois na rodoviária de destino, colocando a vida real de novo em suas engrenagens.

Em um desses retornos de Campinas, eu ia dizendo, aproveitei as vinte e duas horas de viagem para ler A queda de Camus. Não lembro muito bem do romance, está logo adiante na minha fila de releituras. Mas lembro da sensação de cabecear de sono enquanto me esforçava para prosseguir no texto com a luzinha débil e amarela do meu assento, e de que chovia na noite lá fora. Talvez tenha sido nessa mesma viagem que uma guria mais ou menos da minha idade, de longos e volumosos cabelos loiros, rosto redondo e lábios grossos, sentou numa poltrona próxima e reparei que ela escrevia sem parar em um caderno. Conversamos e fiquei sabendo que estava viajando ao interior do Rio Grande do Sul para escrever um livro, indo pesquisar algo na cidade natal, ou algo assim. Trocamos endereço, ela me mandou uma carta escrita à mão. Eu respondi? Quase com certeza, eu costumava responder cartas, mas o que dissemos um ao outro? Por que parou? Ela escreveu o livro, publicou? É incrível ter a convicção de ter vivido essas coisas e não lembrar de quase nada. Tento lembrar de mais detalhes e me detenho, receando incorrer em falsificações. Sabemos hoje — ou demonstra a ciência — que a memória é em larga medida ficcional, toda lembrança evocada é uma narrativa recomposta no calor do momento, mas é preciso atingir uma certa idade para entender como a memória apaga o passado tanto quanto o recria.

Que seja. Bastou lembrar disso para lembrar que houve uma terceira longa viagem de ônibus em que passei as horas lendo Camus, essa ainda mais distante no tempo. Foi no primeiro ano do ensino médio. Eu tinha, portanto, catorze ou quinze anos (faço aniversário em julho e não lembro da data exata da viagem). Um colega me convidou para viajar de ônibus com ele, só nós dois, sem adultos responsáveis, para Punta del Este, no litoral uruguaio. Ele já havia estado lá algumas vezes com a família, mas para mim aquela parte do continente ao sul ainda era uma incógnita. Meus pais, a quem perguntei do que lembravam desse episódio, disseram que usei um dinheiro que tinha guardado para comprar as passagens e pagar a reserva de um hotel, e eles me deram algum dinheiro para gastar por lá, ou o contrário. Ninguém lembra muito bem. Mas aconteceu, pois mantenho contato com esse amigo e ele também lembra, e guardo algumas lembranças vívidas do quarto de hotel simples que dividimos, das ruas amplas e quase desertas do balneário de gente rica, do odor mineral no ar frio e ensolarado, de um mergulho doloroso em um mar liso e terrivelmente gelado no qual foi impossível permanecer mais que poucos minutos, de almoçarmos todos os dias no mesmo buffet vegetariano porque era o único lugar da cidade que podíamos pagar e de jantarmos Pepsi e Ruffles tamanho família vendo MTV no quarto, e do meu amigo saltando a grade do jardim de um prédio e cortando folhas de babosa que, uma vez abertas ao meio, ele aplicou no rosto como emplastros para amenizar as queimaduras de sol em sua pele sensível de ascendência teutônica. E lembro também vividamente de ler O estrangeiro, de Camus, na longa viagem de volta, sublinhando e anotando nas páginas, pois o nosso professor de filosofia na escola tinha nos passado a tarefa de ler o romance ao longo do ano e escrever o que ele chamava de um “paper”, no caso um resumo comentado de duas ou três páginas.

Ainda tenho essa edição de O estrangeiro. Publicada pela Record em 1993, tradução de Valerie Rumjanek. As páginas estão amareladas e se soltando. Na folha de rosto está escrito a caneta o meu nome e nosso então telefone residencial. Meus destaques e anotações não são muitos e se concentram na etapa final da história, depois que Mersault é julgado e condenado por matar o árabe na praia, e vai para a prisão. Em alguns trechos sublinhados há setas apontando para palavras escritas por mim na margem, tais como “esperança” (“No início da minha detenção, no entanto, o mais difícil é que tinha pensamentos de homem livre”) e “consciência” (“Depois, só tinha pensamentos de prisioneiro.”). Há um trecho que lembro de ter me impressionado, e acho que o citei no meu “paper”: “Nessa época, pensei muitas vezes que, se me obrigassem a viver dentro de um tronco seco de árvore, sem outra ocupação além de olhar a flor do céu acima da minha cabeça, ter-me-ia habituado aos poucos. Teria esperado a passagem dos pássaros ou os encontros entre as nuvens, tal como esperava aqui as estranhas gravatas do advogado, e, como num outro mundo, esperava até sábado para estreitar nos meus braços o corpo de Marie.” Na página 84, sublinhei “Não, não havia saída, e ninguém pode imaginar o que são as noites nas prisões.” Embaixo, anotei a lápis: “Igual à vida, quando percebemos a morte: absurdo existencial.” Não consigo conter um risinho ao ver essa última, um riso de ternura diante da precisão inocente da constatação, não muito diferente daquele suscitado por certas reações e falas da minha filha de oito anos.

É com menos inocência que a daquele adolescente que eu lia os cadernos pessoais de Camus no ônibus descendo a serra semanas atrás, mas ainda um tanto inocente, se quiser ser honesto comigo mesmo. Mas as virtudes do próprio Camus, que tanto admiro, assim como seus defeitos, que censuro e que o tornam mais completamente humano, não estavam atrelados também a uma espécie de inocência? Em suas notas íntimas não faltam vacilações, bem como a consciência amarga de ter tentado viver de acordo com expectativas ou crenças alheias, e uma busca por redifinir, aos quarenta e adiante, os valores e contudas que realmente lhe importam. Quantas afinidades com ele ainda encontrarei até o fim da vida, nesses ciclos ou reencontros com sua obra, talvez em futuras viagens de ônibus?

Há coisas que Camus escreve que me soam como verdades perfeitas. “Leio muito por aí que sou ateu”, ele se queixa. “Ouço as pessoas falarem do meu ateísmo. Mas essas palavras não me dizem nada; elas não possuem significado para mim. Não acredito em Deus e não sou ateu.” Há um longo parágrafo, que não vou reproduzir inteiro, no qual Camus recita para si mesmo uma série de regras e recomendações. “Eliminar a moral ressentida da justiça abstrata. Permanecer perto da realidade dos seres e das coisas. Retornar sempre que possível à felicidade pessoal. Não se recusar a reconhecer o que é verdadeiro mesmo quando essa verdade frustra o desejável. (…) A verdade compensa todos os tormentos. Ela por si só estabelece a alegria que deve coroar esse esforço.” E por fim: “Ascetismo, mas não por um desejo que precisa ser mantido intacto, e sim por sua satisfação. Recuperar a maior das forças, não dominar, e sim oferecer.” Nos relatos de sua segunda viagem à Grécia, de férias com a amante e os amigos, apenas semanas antes do acidente de carro que o mataria, ele registra seus vários mergulhos solitários no mar da forma mais sucinta possível, como se fossem episódios de valor absoluto e auto-explicativo. Vejo a verdade disso também.

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Da leitura dos últimos cadernos de Camus, pulei direto para uma antologia em inglês chamada Personal writings, que reúne suas primeiras obras publicadas, os contos de O avesso e o direito e os quatro ensaios de Bodas em Tipasa, ambos lançados originalmente no final da década de 1930, e também um volume intitulado Verão, com textos variados escritos entre 1939 e 1953. Esse Camus dos primórdios, anterior ao sucesso de O estrangeiro e O mito de Sísifo, nos surpreende pela ênfase das descrições de prazer sensorial em contato com a natureza, o sol, o mar, os corpos jovens nas praias. Se nos contos de O avesso e o direito ainda predominam um certo desespero e a forte presença da morte e do absurdo, em Bodas em Tipasa as portas se abrem para um sensualismo irrefreado (entendido aqui como tudo que é relativo aos sentidos) que irriga não só a paixão pela vida, mas também a atitude ética do narrador. Afirmar a vida contra a morte é sobretudo, nesses textos, amá-la sensorialmente. Após uma descrição detalhada das sensações e deleites de um mergulho no mar, Camus escreve: “Compreendo aqui aquilo que se chama glória: o direito de amar sem medida. Há um único amor neste mundo. Abraçar um corpo de mulher é também reter junto de si essa estranha alegria que desce do céu para o mar. Dentro em pouco, quando me atirar nos absintos para fazer o perfume deles entrar em meu corpo, tomarei consciência, contra todos os preconceitos, de estar realizando uma verdade, que é a do sol, e será também a da minha morte.”

Camus não rejeitava esses textos iniciais como frutos de um olhar juvenil ou deslumbrado. No prefácio da reedição de O avesso e o direito em 1957, ele reconhece que aos vinte e dois anos “mal sabemos escrever”, mas que há mais amor naquelas “páginas desajeitadas” do que em toda a sua obra posterior. A fonte de sua escrita estaria para sempre naqueles primeiros textos. “A obra de um homem”, diz, “é nada mais que essa lenta caminhada para redescobrir, pelos desvios da arte, aquelas duas ou três imagens simples e grandiosas em cuja presença o seu coração se abriu pela primeira vez.” O silêncio da mãe viúva, pobre e analfabeta; a justiça da moderação; o amor implícito na luz e no oceano; lendo esses textos, é possível concordar que já estava tudo lá, aguardando o refinamento e a amargura das décadas por vir.

Talvez essa observação do prefácio esteja ligada à seguinte passagem do ensaio “Com a morte na alma”, em O avesso e o direito: “Tenho dificuldade de separar meu amor pela luz e pela vida da minha ligação secreta com a experiência desesperada que quis descrever. Já se compreendeu que eu não quero me decidir a escolher.” Um entendimento que ecoa na famosa frase contida em “Amor pela vida”, outro dos ensaios do mesmo livro: “Não há amor de viver sem desespero de viver.”

Essas defesas enfáticas do valor intrínseco de sentir-se em unidade com o mundo das sensações, sobretudo quando ligadas ao contato com a água, o mar, o sol, me remetem a um época da minha própria vida em que eu também acreditava que as sensações podiam conter o mundo e bastar como a base para uma vida moral. Ao longo do tempo aprendi que isso era insuficiente — e é —, mas ao custo de uma certa desconfiança, às vezes um tipo de culpa, pelo simples desfrute das boas sensações do mundo. Nos relatos presentes em seus últimos cadernos, escritos nos anos anteriores à interrupção da sua vida na mesma idade que agora tenho, percebo que Camus também sofria dessa desconfiança. O peso do mundo não comporta mais a glória sensorial dos seus primeiros escritos, mas ele sabia, estou convencido, de que naquele amor físico às sensações da vida havia uma verdade eterna, à qual deveríamos nos agarrar. Se a vida que temos é essa e não outra, e se não há deuses, não seria esse abandono o que temos de mais garantido em tempos difíceis?

Em sua primeira visita à Grécia, Camus perambulou entre ruínas de templos antigos sob chuva fina, registrando em seu caderno um inventário de impressões e sensações: a luz fresca e magnificente, os corvos cobrindo o templo com um véu preto e tremulante, os ruídos da água, dos cães e do motor distante de uma Vespa. Anotou: “Não é a melancolia das coisas arruinadas que despedaça o coração, mas sim o amor desesperado pelo que dura eternamente em eterna juventude: amor pelo futuro.” Esse amor pelo futuro — que não é crença, nem esperança — esse, estou certo, está ao meu alcance.

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ⓒ Daniel Galera

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