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September 15, 2025

dentesguardados #34 Suttree

Minha tradução do romance Suttree, de Cormac McCarthy, chega às livrarias nos próximos dias, publicado pela Alfaguara. Para celebrar, haverá um evento aqui em Porto Alegre na Livraria Paralelo 30 (R. Vieira de Castro 48), no sábado, dia 27/9, às 16hs. Comigo estará a Mariana Carolo, autora de Meridiano infinito (ed. Madame Psicose), e a conversa terá mediação do meu amigo Samir Machado de Machado, autor de Tupinilândia e vários outros romances fabulosos.

convite de lançamento do livro Suttree de Cormac McCarthy em tradução de Daniel Galera, em Porto Alegre, dia 27 de setembro de 2025, na livraria Paralelo 30

Estou muito feliz pela Mariana ter aceitado participar dessa conversa comigo. Meridiano infinito é uma combinação vibrante de ensaio pessoal e estudo literário. Fascinada com o grandioso e violentíssimo Meridiano de sangue de McCarthy, ela se debruça sobre as anotações abundantes deixadas por David Foster Wallace na sua cópia pessoal do romance para realizar uma leitura detalhada de seu enredo, referências, estilo, cenas e personagens. Moradora de Canoas, Mariana fez parte sua pesquisa e escrita como forma de tentar manter a sanidade no período da enchente de maio 2024, enquanto enfrentava as dificuldades que se impuseram no trabalho como professora e nos cuidados com a família. Seu livro é repleto de um ânimo intelectual contagiante e de insights lapidares a respeito da obra de Cormac McCarthy. Como constatar que a melhor representação do grandalhão, glabro e nefando Juiz Holden na cultura pop é Jack Horner, o vilão do longa de animação Gato de botas 2: o último pedido.

Imagem do filme O Gato de Botas 2 mostrando o vilão Jack Horner segurando uma bola de cristal
“Tudo que na criação existe sem meu conhecimento existe sem meu consentimento”

Então, todo mundo que estava aguardando há anos para ler Suttree em português, leitores e fãs de Cormac McCarthy e/ou David Foster Wallace e apreciadores em geral de livros que não estão para brincadeira: esperamos vocês lá na Paralelo 30.

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Uma pergunta anônima pintou esses dias no meu Tumblr:

Olá, Daniel! Admiro muito o seu trabalho como escritor e tradutor, e estou ansioso pelo lançamento de Suttree. Imagino que tenha sido uma das traduções mais desafiadoras da sua carreira. Se pudesse destacar apenas um ponto, qual diria que foi o maior desafio? Fiquei com essa dúvida ao ler a tradução brasileira de O Passageiro: nela, percebi que o tradutor optou por substituir alguns “e” por vírgulas e até por ponto e vírgula, recursos inexistentes no original. Gostaria de saber se esse é justamente o maior desafio: não apenas traduzir o texto, mas também lidar com a sintaxe tão particular de McCarthy.

Junto com esse texto que publiquei no blog da Companhia das Letras à época da morte de Cormac McCarthy, a resposta, reproduzida abaixo, dá uma ideia da travessia, dos desafios, dos critérios e do orgulho final que essa tradução representou:

“Essa foi a tradução mais desafiadora da minha carreira, mesmo. Talvez eu tenha sofrido mais pra traduzir Reino do medo, do Hunter S. Thompson, e Os mil outonos de Jacob de Zoet, do David Mitchell, que também foram muito difíceis, porém menos prazerosos de fazer. No caso de Suttree, a dificuldade andava junto com um entusiasmo muito grande pelo texto e suas particularidades. Desde que li o romance, eu sonhava em traduzi-lo, mas por anos era bem isso mesmo, um sonho: eu não me considerava pronto. Tentei começar logo depois da minha primeira leitura do livro, ainda quando morava em Garopaba, em 2008, e tinha muito tempo livre para fazer o que quisesse. Fiquei intimidado com as primeiras páginas e desisti. Em 2023, meu editor me propôs oficialmente fazer a tradução, e dessa vez me senti pronto. Foram treze meses de trabalho intenso, e considero essa uma das grandes realizações da minha vida. Não sei quais serão as impressões do leitores, mas estou feliz com o resultado e comigo mesmo.

Qual foi o maior desafio? Em um nível abrangente, foi manter o tom do original. Nada era mais importante nessa tradução, para mim, do que preservar ao máximo a sensação estética proporcionada pela leitura de Suttree. O livro narra com estilo portentoso as peripécias de um desvalido voluntário por um ambiente urbano decadente, violento e habitado por dúzias de figuras pitorescas. McCarthy imprime ressonância cósmica aos episódios mais prosaicos e sórdidos. A crueldade e o desespero são observados sob um prisma de empatia que jamais romantiza ou suaviza as facetas indigestas das pessoas e seus atos. O registro pode alternar de repente da crônica jornalística provinciana ao discurso metafísico grandiloquente. Tudo isso, e muito mais, cria uma determinada sensação de leitura que era imperioso preservar, na medida do possível. Sendo assim, tomei algumas decisões técnicas, mas sobretudo procurei ouvir o texto no original e em inglês na minha cabeça. Às vezes, para preservar o tom era necessário reproduzir a sintaxe e a pontuação, e traduzir vocábulos literalmente; outras vezes, era melhor alterar a estrutura da frase ou buscar palavras diferentes do original. Para aprovar uma frase traduzida e ir em frente, eu precisava responder positivamente a mim mesmo: está soando como o orinal? Eu sinto e enxergo a mesma coisa lendo essa frase em português?

Na tua pergunta, tu menciona a tradução de O passageiro, como o tradutor “optou por substituir alguns ‘e’ por vírgulas e até por ponto e vírgula, recursos inexistentes no original.” Não li a tradução, só o original, então não posso julgar, mas na minha tradução de Suttree achei necessário não somente eliminar alguns polissíndetos (os conjuntivos conectados por “e” sem uso de vírgulas) acrescentando vírgulas onde não havia, mas também inserir polissíndetos onde não havia no texto original. Outra escolha, por exemplo, foi não reproduzir na maioria dos casos os neologismos com palavras conectadas (“rainflattened”, “deadcart”) e adjetivação de substantivos (“cathedraled”), que são comuns no inglês mas soam muito preciosistas no português.

O desafio mais importante foi, portanto, alcançar uma versão que provocasse no leitor as mesmas sensações e sentimentos que o original, e para isso recorri muito à intuição e ao ouvido; creio ter me preparado para isso lendo muitas vezes o romance no original, mantendo passagens na minha cabeça por anos, me inspirando em seu estilo na elaboração da minha própria escrita, enfim, convivendo com o texto por um tempo muito longo, até que sua gramática, léxico e efeitos estéticos peculiares se tornassem uma voz conhecida, acessível sob demanda e quase natural, na minha imaginação.

O que mais deu trabalho, porém, foram as dificuldades pontuais: nunca penei tanto para desvender o mero significado de tantas palavras; há vocábulos em Suttree que não existem em nenhum outro livro, e há muitos, como revela a pesquisa exaustiva em fóruns online e artigos acadêmicos, que até os falantes nativos de inglês e leitores dedicados não compreendem. O texto possui alguns mistérios e obscuridades indecifráveis; possui excessos, desvios da norma, incoerências. Tudo isso faz parte dele, e procurei chegar numa versão em português que preservasse essas características. Mais do que atentar para escolhas específicas, espero que o leitor brasileiro de Suttree que chegue ao romance pela primeira vez tenha uma experiência semelhante à que tive no meu primeiro contato com o livro: o mesmo espanto, a mesma perturbação, a mesma dificuldade para transpor certas passagens, e sobretudo o mesmo maravilhamento.”

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No mesmo mês de setembro em que a Alfaguara publica Suttree no Brasil, o selo Companhia das Letras lança também o monumental Central Europa, de William T. Vollmann, traduzido por Daniel Pellizzari.

O mesmo Pellizzari com quem criei, junto com Guilherme Pilla, a editora Livros do Mal em 2001; com quem traduzi a quatro mãos a trilogia de romances Trainspotting/Porno/Skagboys, de Irvine Welsh, escrita no dialeto “scots”, e os ensaios de David Foster Wallace reunidos na coleção Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo; o mesmo com quem aprendi muito de valioso que sei hoje a respeito de escrita e tradução, mas também sobre ética, compaixão e a natureza da realidade, e também — não menos importante — sobre não dar folga pra palhaço. O privilégio de ser amigo e parceiro do Pellizzari é algo que me enche de gratidão e que nunca perco de vista. Eu não tinha planejado escrever essa elegia, que já começa a ganhar contornos sentimentais, mas foi saindo espontaneamente e vou deixar, foda-se.

Voltando: conversamos constantemente nos últimos anos sobre as agruras e alegrias de traduzir romances tão extensos, admiráveis e difíceis, e significa muito que estejam chegando às livrarias ao mesmo tempo. No caos frequentemente frustrante e assustador que é o mundo, esse tipo de coisa — de esforço compartilhado em torno de algo com tanto valor-em-si e de sincronicidade que brota de longevas amizades e amores — ajuda a nos manter íntegros e esperançosos.

Print da loja online Amazon mostrando capas dos romances Central Europa de William T. Vollmann e Suttree de Cormac McCarthy como frequentemente comprados juntos
Fica a dica, portanto.

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