dentesguardados #33 Sci-fi
#33 Sci-fi
A edição de hoje tem anotações sobre a nova série inspirada no universo do filme Alien e sobre alguns contos de J.G Ballard. No final, celebrações de uma exposição que eu e a Taís organizamos na CCMQ em 2023/24 e do lançamento da minha tradução de "Suttree", de Cormac McCarthy, que será assunto da próxima newsletter.
Alien: Earth e o transumanismo dos tech bros
Alien: Earth. Criar expectativas positivas em relação a séries de franquias produzidas para streaming a essa altura significa merecer a frustração que quase certamente advirá, mas tem dois pontos que achei que valia a pena comentar a respeito dessa aqui. Alien: Earth só tem metade dos episódios disponíveis nesse momento, e é possível, porém altamente improvável, que essas queixas sejam respondidas por desdobramentos dos capítulos finais. A premissa da série: uma nave comercial semelhante à Nostromo do primeiro filme cai na Terra trazendo vários espécimes alienígenas perigosos, incluindo o nosso velho conhecido xenomorfo inspirado em uma pintura de H.R. Giger. A nave pertence à Weyland-Yutani, uma das megacorporações que governam a humanidade no futuro próximo, mas cai nas torres do QG de outra megacorporação, Prodigy, liderada por um adolescente trilionário insuportável, Boy Kavalier, que resolve roubar para si os preciosos espécimes alienígenas. Kavalier também acabou de desenvolver em segredo os primeiros protótipos de ciborgues dotados de mentes humanas, mentes que foram escaneadas de crianças que sofriam de doenças terminais. A protagonista Wendy (há citações incessantes e nada sutis a Peter Pan) é uma delas. A trama se desenvolve a partir dessas boas premissas em direções pouco surpreendentes.
A primeira queixa: não me parece que o melhor que um criador de histórias pode fazer ao abordar os temas das máquinas inteligentes e do transumanismo é partir de um endosso tácito das premissas já cultivadas e defendidas pelos próprios bi/trilionários da tecnologia e seus gurus. Na série Alien: Earth e na maioria esmagadora das histórias de ficção científica que abordam esses temas, os conflitos narrativos, morais e filosóficos partem de uma situação em que uma determinada visão da tecnologia já triunfou. A ideia de que a mente de uma pessoa possa ser “escaneada”, por exemplo, depende de toda uma visão computacional da mente humana que é amplamente questionada pela ciência e ardorosamente defendida por impostores como Ray Kurzweil, um dos gurus que inspiram a elite do Vale do Silício a sonhar com a vida transumana eterna. O conceito de um robô que possui um corpo perfeitamente igual a um humano biológico na aparência e no comportamento também é um salto especulativo muito mais temerário e improvável do que as histórias que costumamos ver nas telas podem sugerir.
Premissas como essas não são neutras. Ao serem repetidamente adotadas como o ponto de partida da ficção científica que nos dedicamos a produzir e consumir, elas vão naturalizando uma visão da tecnologia que atende aos delírios religiosos e escatológicos da elite tech e dos super-ricos. Isso se dá mesmo em filmes competentes como Ex-Machina, de Alex Garland que, assim como Alien: Earth e tantas narrativas parecidas que almejam provocar em torno do assunto, são no fundo bastante conservadoras ou mesmo retrógradas em sua concepção. Elas nos pedem para engolir desde a partida ideias que uma posição verdadeiramente crítica diante da tecnologia jamais aceitaria sem espernear. Sydney Chandler faz um bom papel representando essa menina habitando um corpo cibernético super-poderoso, mas a sensação de farsa é inevitável, para mim, quando vejo um close da pele e das veias do pescoço da atriz ou quando ela se conecta facilmente a um sistema que dá acesso a todas as câmeras em operação na superfície do planeta e navega instantaneamente por ele sem que a sua psique humana se afete de maneira alguma.
Hoje sabemos cientificamente — a arte já ensinava isso desde sempre — o quanto a consciência se relaciona diretamente com as percepções corporais, com a biota gastrointestinal e com uma série de outras conexões corporificadas que tornam implausível, para dizer o mínimo, esse tipo de fabulação ciborgue. Daí que resulta a pertinência crítica de ficções científicas que exploram o horror corporal, como Tetsuo: O homem de ferro, de Shinya Tsukamoto, ou o EXistenZ de David Cronenberg. Mas eu gostaria de uma ficção científica mais tradicional, de entretenimento, que estabelecesse suas premissas com base em ideias e conhecimentos científicos que não correspondessem ao que ocupa a mente de Peter Thiel ou do Yuval Harari. Ocasionalmente surgem coisas mais espertas — penso no Upgrade de Leigh Whannell, ou no tom de comédia pastelão do excelente Mickey 17 de Bong Joon Ho, que coloca a ideologia transumanista do Vale do Silício no lugar ridículo que merece. Algumas perguntas postuladas pelo roteiro de Alien: Earth não deixam de ser interessantes — o irmão humano de Wendy e seus donos na Prodigy discordam a respeito dela ser ou não humana, ser ou não a mesma garota que existia antes do procedimento de escaneamento — mas, enquanto os personagens discutem isso, Wendy está realizando proezas sobre-humanas em seu corpo artificial sem que isso impacte suas emoções ou seu senso de self (seu “como é ser Wendy”), como aconteceria na imaginação de uma criança brincando de ser robô. E é isso que os roteiristas da série parecem crer que constitui a sua audiência adulta, no que infelizemente estão certos. A série é um grande sucesso.
A segunda queixa tem a ver com “o alien”, o xenomorfo propriamente dito. A criatura aparece bastante em Alien: Earth, mas é quase como se não aparecesse. Desenhada em gráficos computadorizados tão avançados quanto insossos, ela se torna um mero elemento do cenário, ora um vulto associado a um “jump scare”, ora uma aparição mais nítida na qual age de modo vazio ou funcional: o close já manjado da mandíbula retrátil jorrando baba, a figura de corpo inteiro se preparando para alguma espécie de bote contra as vítimas humanas et cetera. Essa irritação é mais difícil de descrever e explicar, mas acho que a esclareci um pouco melhor pra mim mesmo ao reassistir o Alien original de Ridley Scott pela enésima vez. Esse foi um dos filmes a que mais assisti em minha vida, fazia parte da videoteca de fitas VHS pirateadas que eu e meu irmão revíamos obsessivamente na infância (ao lado de Fuga de Nova York, Os irmãos cara de pau, Comando para matar e outros).
A relação de fascínio e devoção que eu tinha com Alien não se desfez muito hoje em dia: continuo maravilhado com a sequência do pouso inicial no planeta alienígena, com a criatura de Giger fundida à sua cadeira na enorme galeria da nave espacial; com a cena do alien fálico explodindo de dentro da barriga de Kane; com a perturbadora cena em que o androide Ash ataca Ripley; mas sobretudo com a criatura em si, “o alien”, que aparece em seus três ciclos, o ovo, o facehugger que parasita a vítima e inocula o embrião, e o xenomorfo que eclode do hospedeiro, do qual herda parte das características físicas. Tudo isso é mostrado no filme com planos generosos, que dão o tempo necessário para que o olhar sorva a estranheza e o horror do que vemos. Os efeitos práticos pré-CGI dão a cada detalhe da criatura a textura orgânica que mexe de verdade com nossas reações e instintos. O filme é profundamente físico, ele pulsa, escorre, chia. Sexo, gestação e estupro marcam a devassa desse organismo estranho no refúgio uterino da nave espacial: a cesariana grosseira impingida pelo feto alien ao corpo masculino, a baba jorrando transparence como um gel lubrificante, o óleo esbranquiçado e seminal que espirra e gorgoleja do androide defeituoso. O alien “adulto” tem um aspecto distintamente biomecânico, combinando estruturas de humano e inseto com outras que parecem peças de automóveis ou de equipamentos industriais. Para além disso tudo, que é manjado, percebi nessa sessão mais recente como o alien parece ter vida própria. Ele é uma criatura predadora pura, sem sinais de vida intelectual, mas sua subjetividade é palpável em todas as cenas, pelo modo como contempla as coisas, se esconde ou reage. Ele também está tateando o mundo.
Em Alien: Earth, até os ataques mortíferos da criatura são sonegados: há várias cenas em que aliens se infiltram em ambientes cheios de humanos, mas o que nos é apresentado em detalhes é o resultado posterior da carnificina, nunca a agência da criatura. No episódio 4, porém, há uma boa cena em que outra espécie de alien extrai e substitui o olho de uma ovelha confinada em um aquário dentro de um laboratório. Percebemos que o corpo da ovelha está sendo controlado por um organismo invasor altamente inteligente pela maneira como ela permanece imóvel, acompanhando com curiosidade serena e calculista os observadores do outro lado do vidro. Quem percebe a inteligência escondida por trás do que parece ser mera crueldade predadora é o androide Kirsh, em atuação sensacional de Timothy Olyphant (o ator parece entender a inesquecível perturbação causada pelo Ash do filme original, uma espécie de uncanny valley de carne e osso que sugere alguma coisa esquisita por trás do funcionamento da máquina, componentes que desconhecemos no mundo real). A comunicação intelectual — ou existencial — se dá entre o parasita alienígena e o androide, um fascínio que escapa aos humanos também presentes. Uma cena que faz o tipo desejável de provocação e produz uma centelha de esperança de que os episódios finais sejam menos banais que os primeiros.

De todo modo, a sensação predominante é de desperdício. Alien: Earth é um produto de entretenimento para puxa-saco de bilionário bater palma. Seus conflitos e horrores não tentam imaginar nada que já não pertença à crença místico-transumanista que direciona o desenvolvimento atual da IA. Seu panorama de um futuro dominado por megacorporações é uma projeção preguiçosa e reacionária de um presente em que empresas desse tipo acumulam, sim, cada vez mais poder e influência política, mas sem remover da sociedade e do planeta a vasta legião de outros viventes, organizações sociais e projetos de futuro em nada alinhados com a visão dos tech bros. Posso imaginar Mark Zuckerberg se divertindo horrores com a caracterização caricatural do trilionário adolescente “genial” ou qualquer inovador de coletinho patagônia fantasiando com o download da própria mente para robôs indistinguíveis de um humano até nas ruginhas na dobra do braço. E lamento que os alienígenas do filme original, uma das maiores criações da história da ficção científica, tenham perdido sua toda sua presença e agência e se tornado esses sustos de trem-fantasma. É ficção especulativa para quem não especula, apenas consome.
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Quatro contos e meio romance de J.G. Ballard
Minha amiga e livreira Nanni me apontou um trecho de um livro recente da Deborah Levy em que ela faz um elogio entusiasmado de J.G. Ballard e de seu romance O reino do amanhã (Kingdom come). Isso bastou para que eu prontamente devorasse o livro da Levy e começasse a ler o romance do Ballard, um dos meus escritores favoritos. Ainda estou na metade de Kingdom come, e adorando, é claro: o romance descreve as convulsões fascistas que surgem em torno de um gigantesco shopping center construído na região metropolitana de Londres, junto às rodovias de acesso ao aeroporto de Heathrow, e o grupo revolucionário igualmente pervertido que surge para combater as massas de consumidores ensandecidas. Difícil imaginar uma obra em que a máxima de que “já vivemos numa distopia” esteja melhor representada. Mas aqui não há um governo autoritário: o consumismo é uma opressão autoinfligida com prazer delirante por uma população totalmente disposta a abrir mão do humanismo e da liberdade e substitui-lo por um eterno presente de satisfação infantil e violência racial. Mas não há confortos nem ensinamentos na prosa de Ballard. A qualidade da escrita é fonte incessante de prazer estético, mas o teor do que está sendo narrado é um caos de conspirações, psicopatologias e desejos censuráveis.
Não posso fazer uma resenha definitiva do romance porque ainda estou no meio, mas lembrei que há alguns anos publiquei na encarnação anterior do meu Tumblr algumas anotações sobre quatro contos do Ballard, na época em que estava lendo seu Complete Stories. Para os ballardianos de plantão ou qualquer um que se sinta atraído em direção a esse grande autor, reproduzo aqui aqueles textos.

Zone of terror (1960). Programador de uma empresa de eletrônicos que vinha trabalhando em uma simulação do sistema nervoso central para teste de drogas psiquiátricas sofre crise de estresse e é internado em retiro recreativo para funcionários, tendo por companhia apenas um psicólogo. No meio do tratamento, começa a ser surpreendido por aparições de uma figura que, em tempo, percebe ser ele mesmo repetindo o que transcorreu minutos atrás. A apresentação desse duplo explora incongruências temporais e físicas para instalar um clima de medo digno de um conto de horror. O duplo parece um robô ou autômato, impossível em sua translucidez fantasmagórica e semelhança física com o narrador, que se apavora só de pensar em travar contato com a figura. O psicólogo, todavia, insiste que a única possibilidade de cura será abordar o duplo, confrontá-lo e ocupar seu lugar no espaço, aniquilando assim a ilusão “psico-retinal” que gera as alucinações. No final, a proliferação de duplos aniquilará o último reduto de conforto, que é a noção de original versus cópias. Nos últimos instantes de vida, o programador tem a autonomia e exclusividade de seu ego destruídas em uma cena horripilante. Jargão psicanalítico à parte, é notável como esse conto articula questões científicas e filosóficas que não dataram. Quando o duplo aparece pela segunda vez, sentado no sofá em que o programador estivera sentado minutos antes, o psicólogo lhe explica que a visão é como a projeção cinematográfica de imagens mentais captadas na retina. O programador faz a pergunta óbvia: como posso estar me vendo no sofá, uma vez que, no momento em que estava de fato sentado no sofá, eu obviamente não estava vendo a mim mesmo? A imagem nunca esteve em minha retina. O psicólogo diz que ele não deve levar a analogia cinematográfica muito a sério. “Você pode não ver a si mesmo sentado no sofá, mas a sua percepção de estar ali é tão potente quanto uma corroboração visual. É o fluxo de imagens táteis, posicionais e psíquicas que compõe a verdadeira informação armazenada.” O papel dos processos homeostáticos, dos sentidos e das emoções na geração da consciência é tema das pesquisas atuais em consciência corporificada. Ballard não precisa apelar para o sobrenatural, o mórbido ou o violento para perturbar o leitor. Ele apenas chacoalha um pouco nossas certezas básicas a respeito das nossas sensações e do nosso ego. Um pouquinho só basta.
Chronopolis (1960). Nosso protagonista se encontra encarcerado em uma distopia na qual os relógios foram proibidos pelo regime. O conto, narrado in media res, nos revelará o crime pelo qual é acusado. Em suma, o garoto cresce obcecado com relógios. Tenta criá-los em casa, utilizando os mais variados mecanismos, até que um dia cai em suas mãos um relógio de pulso clandestino. Um professor o levará para um passeio em que a realidade é revelada: décadas antes, a cidade de 30 milhões de habitantes havia sido dominada por relógios. A regulação do tempo se infiltrara em todos os pormenores da vida dos habitantes, com prejuízo para as classes trabalhadoras, para quem os cronogramas impostos pelo governo eram particularmente cruéis e desumanos. Uma revolta – curiosamente levada a cabo pela classe média e pelos engravatados, não pelo proletariado – resultou em matança e desativou todos os relógios da cidade. A fração restante da população se instalou no anel suburbano ao redor do centro, este permanecendo com acesso vedado. O protagonista foge, encontra um ermitão que se dedica a reativar os relógios da cidade antiga. Meses depois, é preso pela Polícia do Tempo, acusado de matar o ermitão. O conto antecipa uma era – a nossa era – em que a medição constante do tempo, e sobretudo a otimização do tempo na lógica do capitalismo, se transformou numa forma de opressão. Me lembrei de “24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono”, de Jonathan Crary, um ótimo ensaio sobre a conversão do tempo em ferramenta de produtividade em todos os momentos de nossa vida desperta, incluindo o lazer e o descanso, e da necessidade de preservar o tempo do sono, pelo menos, como reduto de resistência. O protagonista, lá pelas tantas, defende o regime antigo de Chronopolis, alegando que o controle do tempo torna possível o acesso de todos a recursos escassos. Melhor ter 1h de acesso diário ao telefone que acesso a telefone algum, argumenta. O professor retruca: “Aquele era um modo de vida em que tudo havia se tornado escasso. Você não acha que há um ponto para além do qual acabamos sacrificando a dignidade humana?” A pergunta podia ser feita hoje. No nosso modo de vida digital e conectado, não há detalhe da experiência humana que não pareça de alguma forma escasso. Não há tempo suficiente para rigorosamente nada. A atualidade do conto é impecável. Pena que ele termine com uma gracinha que apenas atrapalha a situação irônica construída no final. A última frase parece ter sido enxertada ali por um autor iniciante.
The thousand dreams of Stellavista (1962). Um advogado e sua esposa se mudam para uma casa em Vermilion Sands, bairro de ricos e celebridades. Mas as casas da vizinhança não são comuns, ou “estáticas”, e sim residências “psicotrópicas”, feitas de materiais dinâmicos e sensores que reagem ao comportamento e aos estados mentais dos moradores. Em pouco tempo, o advogado descobre que os antigos moradores eram a falecida estrela de cinema Gloria Tremayne o marido Miles Vanden Starr, um famoso arquiteto. Dez anos antes, o advogado fez parte da defesa que livrou Gloria da acusação de ter assassinado o marido. A obsessão do advogado com Gloria desperta as memórias latentes da casa psicotrópica, levando ao fim de seu próprio casamento e ao ressurgimento de neuroses assassinas que transformam a casa mutante em um organismo potencialmente letal. Temos a fixação usual de Ballard com o mundo das celebridades enquanto projeção de toda variedade de psicopatia, mas o que mais chama a atenção do leitor de hoje é a maneira como o conto serve de alegoria perturbada para os conceitos de “casa inteligente” e “internet das coisas”. A imaginação de Ballard recorre a materiais (“plastex”) e tecnologias fictícias de “bioplasticidade” pra descrever essas residências sensíveis à psique dos habitantes. Hoje temos toda espécie de câmera e sensor atuando em conjunto com satélites e internet para oferecer casas que podem regular a trilha sonora da sala de acordo com a agenda do dia, fazer listas de compras de acordo com o conteúdo da geladeira et cetera. Da visão de Ballard não fazem parte o monitoramento de nossa privacidade pelas corporações que criam tais produtos nem a falta de autonomia patética do sujeito que deseja ser mimado por seus móveis e eletrodomésticos. Ao reagirem fisicamente à chamada “energia do ambiente” e toda sorte de instabilidade emocional, elas parecem mais entidades de terror sobrenatural do que ferramentas de conforto e praticidade visando a otimização racional da vida humana. Mas Ballard vislumbra a lógica capitalista que pesa sobre a casa inteligente na cena em que Fay, a esposa do advogado, tenta apagar as memórias da casa para livrá-lo das garras da paisagem mental deixada pela atriz falecida. O advogado a impede a tempo e a censura com condescendência: “Querida, a imobiliária nos processaria por destruir o pedigree da casa. Sem ele a casa perde todo o valor. O que está tentando fazer?”
The drowned giant (1964). O corpo de um gigante afogado aparece na beira da praia. De início o narrador e os pescadores o observam de longe, com cautela. O gigante é uma criatura fantástica, uma impossibilidade, ou trata-se de uma aparição normal no mundo em que se passa a história? Não sabemos, mas o conto faz justamente a operação de desmitificar, dessacralizar e “trazer ao chão” a figura desse gigante. De início as descrições revelam aos poucos o porte e os traços magnânimos da criatura. À medida que os habitantes passam a montar em cima do corpo, vandalizá-lo e por fim despedaçá-lo para uso como fertilizante, o fascínio dá lugar à banalidade. O gigante se torna nada mais que a carcaça de um animal, como uma baleia. Seus ossos são comercializados como lembranças e então esquecidos. Pouco resta do encanto inicial do narrador, que ao deparar com o gigante afogado pela primeira vez pensa que ele existe “em um sentido absoluto, fornecendo um vislumbre de um mundo feito de absolutos semelhantes, dos quais nós, espectadores na praia, éramos somente cópias débeis e imperfeitas”. Um conto, em suma, sobre a morte de algo belo.
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Bebe um gole aí, Sut
Chegamos à coisa que será o assunto da próxima newsletter. Agora é real. Minha tradução de Suttree, de Cormac McCarthy, está impressa e em pré-venda. Logo chega às livrarias.
Foram 13 meses de trabalho contínuo para entregar a primeira versão aos editores, mas eu morei dentro desse romance muito mais tempo do que isso, desde que o li pela primeira vez em 2008. Sofri, penei, mas sem nunca deixar de me deleitar com o texto, com uma admiração que só cresceu à medida que penetrei suas minúcias de linguagem e mecanismos narrativos profundos. Meridiano de sangue costuma ser considerado a obra-prima de McCarthy, mas há quem coloque Suttree nesse trono. É o romance mais autobiográfico e joyceano do escritor, acompanhando quatro anos da vida de seu protagonista-alter-ego pelas vizinhanças sórdidas de Knoxville nos anos 1950. Um livro quase impossível de sumarizar, que precisa ser experimentado para se revelar. Por enquanto era isso, queria mostrar a fotinho e dizer que estou orgulhoso de mim. Na próxima vou falar um pouco mais da tradução e de um evento que estou bolando aqui em Porto Alegre para celebrar o lançamento.
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Índice Remissivo: um lugar de passagens
Durante uma viagem à Califórnia em 2015, eu e a Taís Cardoso visitamos uma pequena galeria em San Francisco e gostamos de uma exposição que incluía uma estante de livros selecionados pela artista. Aquela ideia ficou na nossa cabeça e voltava de vez em quando. E se um dia pensássemos em algo parecido aqui em Porto Alegre? A oportunidade surgiu em 2023, quando bolamos o projeto Índice Remissivo e o enviamos à Casa de Cultura Mário Quintana.
A ideia consistiu em criar uma analogia desse tipo de peça textual remissiva dentro do contexto das artes visuais, incluindo no espaço expositivo uma estante de livros que podia ser vista tanto como um elemento de diálogo com as obras quanto como uma obra entre outras, instigando nos visitantes uma atitude de curiosidade diante da presença daquela seleção específica de volumes. Para compor o projeto, foram convidados três artistas gaúchos: Camila Elis, Fercho Marquéz-Elul e Manoela Cavalinho. Cada participante apresentou uma exposição individual que foi combinada a uma estante de livros e exibida no espaço Maria Lídia Magliani, no quinto andar da CCMQ, ao lado do Jardim Lutzemberger. O projeto contou também com conversas com cada artista, mediadas pela Taís, e oficinas de escrita ministradas por mim. Os resultados e a receptividade do público foram sensacionais e deixaram saudade e um gostinho de quero mais.
No site da CCMQ é possível acessar gratuitamente o belo catálogo digital do projeto Índice Remissivo, que inclui também amostras dos textos produzidos pelas participantes das oficinas. Confiram. Como é dito no nosso texto no catálogo, Índice Remissivo foi “um lugar de passagens. Passagem entre os vários espaços da Casa de Cultura, propiciada pelas características únicas da sala Maria Lídia Magliani, com suas aberturas para outras salas, o jardim, a cidade; passagem entre obras visuais e livros, entre o visual e o verbal, entre a matéria e os conceitos; passagem, em última instância, entre artista e espectador, numa fronteira demarcada por livros disponíveis, abertos, cuja própria seleção era guia de boas-vindas para um território em mútua construção.” Foi trimmmassa.
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Seção de links
- https://gifcities.org
- https://lume.ufrgs.br/handle/10183/140367
- https://www.ufrgs.br/carbono/2025/07/11/entrevista-com-caroline-levine/
- https://brockcovington.substack.com/p/the-prophecy-of-david-foster-wallace
- https://jacobin.com/2025/08/cormac-mccarthy-conservatism-catholicism-community
- https://felipeta.wordpress.com/2025/08/09/todos-os-animais-do-mundo/
- https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2025/08/usar-chatgpt-e-ser-cumplice-de-um-crime-diz-ted-chiang-celebrado-autor-de-sci-fi.shtml
- https://retrofuturista.com/michael-gira-discusses-birthing-and-the-evolution-of-swans/
- https://swans.bandcamp.com/album/birthing
- https://substack.com/home/post/p-172263599
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