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July 20, 2025

dentesguardados #32 Escrita

#32 O caminho e o que fica pelo caminho

Notas meio improvisadas sobre o processo da escrita

Na abertura da edição anterior, falei que estava iniciando uma nova investida na escrita do livro novo. De todas as tentativas que fiz até agora, tem sido a mais frutífera. Tenho rascunhos de três capítulos, outros dois já bem pensados, e ideias soltas para os demais. Chega a ser um pouco insólito falar aqui sobre conseguir escrever e não sobre estar me preparando para começar ou fracassando. Chega a dar um medinho de estragar o equilíbrio provisório que parece estar sustentando esse avanço. Mas chega de medinho. Acho que uma boa parcela dos assinantes espera acima de tudo que eu possa dizer eventualmente: tá indo.

No que decerto não é uma coincidência, encontrei em livros que li recentemente passagens sobre processo de escrita contendo alguma sabedoria que fez sentido para mim. Talvez não seja coincidência também que ontem mesmo troquei emails com uma escritora e amiga que admiro, nos quais um dos assuntos era a dificuldade de fazer avançar um livro novo, os inícios falsos ou, nas palavras dela, “aquele medo de pegar de novo e uma descrença de que a coisa vai decolar porque, enfim, eu já achei isso antes e acabou não decolando.” Tanto eu como ela escrevemos vários livros nas últimas duas décadas, sempre houve dificuldades pelo caminho, mas achei significativo compartilharmos essa sensação de que alguma forma o jogo mudou. Será mesmo?

Nas linhas abaixo, vou colar alguns dos trechos sobre processo de escrita que andei sublinhando e tentar amarrá-los com meu próprio ponto de vista, compartilhando alguma coisa sobre o livro novo pelo caminho. Não planejei o que vou dizer. Gostaria que soasse um pouco como uma conversa com quem, mesmo à distância e sem intimidade alguma, não soltou minha mão nos últimos quatro anos, me mandando perguntas e incentivos. Obrigado. Que bom que estão aí.

*

(…) a região entre o desconhecido e o conhecido não é bem um caminho, é melhor chamá-la de um vasto território com pouquíssimos indicadores de direção, um campo através do qual abrimos nossa própria trilha sem sabermos ao certo onde tudo isso vai dar, quase ignorando que a escolha dessa trilha específica leva ao desaparecimento das demais. Praticamente alheios à desintegração silenciosa e tremenda de incontáveis outras rotas, avenidas que nunca serão percorridas à medida que outras teorias deixam de ser desenvolvidas e todos os possíveis livros que eu poderia ter escrito, perfeitos em sua não existência, são substituídos por este livro imperfeito. (Ou pensemos nessa própria frase, suplantando qualquer outra coisa que eu poderia ter bolado enquanto tateio o caminho em direção a um desconhecido que insiste em recuar.) Ao lado do otimismo da conjetura, aquela fé no que parece ser verdadeiro, talvez devesse haver um desconforto peculiar, um lamento por tudo que se perdeu no processo — ou talvez uma daquelas hesitações que me acometem nos sonhos, a sensação de ter esquecido de fazer algo. Nesse caso, de ter esquecido de lamentar o que se perdeu no processo.

Karen Olsson, The Weil conjectures: on math and the pursuit of the unknown, trad. minha.

O livro de Karen Olsson avança em duas frentes interligadas: a trajetória da relação fraterna e intelectual entre Simone e André Weil e a trajetória da própria autora desde seus estudos de matemática na juventude até a desistência dos mesmos em favor da escrita jornalística e ensaística. Já se escreveu quase tudo sobre Simone Weil, filósofa da aflição com impulsos de santidade; seu irmão André é menos conhecido. Foi um dos maiores matemáticos do século 20 e chegou a viver no Brasil com a família (após a morte de Simone), fugindo da Segunda Guerra. Nessas duas frentes de investigação, Olsson procura as ligações que podem ser traçadas entre os processos criativos da matemática e da escrita.

No trecho acima, ela começa pensando em como a ideia de conjetura, para os matemáticos, consiste em abrir uma fresta na porta ou adentrar um terreno escuro e rochoso segurando uma tocha. A confiança na verdade de um teorema ou resultado não ilumina o caminho em si: este precisa ser trilhado aos poucos em uma jornada que pode levar anos, sem nenhuma garantia de sucesso. Olsson cita o matemático Carl Friedrich Gauss: “Encontrei meus resultados há muito tempo, mas ainda não sei como chegar a eles.”

A visão do resultado pode ser nítida, mas o caminho até ele é longo e incerto. Não há mapa nem atalho. Quando pensa na disposição necessária para esse salto de fé dentro da sua própria escrita, Olsson constata a existência de outro sentimento simultâneo: o da perda de todas as outras versões do texto que poderiam ter existido, a desintegração de outras formas de se expressar que ocorre procedimentalmente, não só no nível do livro ou de um capítulo, mas no próprio nível da frase. O processo criativo, esse avanço temerário por um território vasto e obscuro em direção a um resultado mais ou menos nítido para a imaginação do autor, é um colapso constante de possibilidades incontáveis que parecem mais perfeitas do que qualquer coisa que esteja de fato sendo escrita.

Isso me soa verdadeiro. Sem dúvida experimento esse desconforto com frequência ao escrever. Existe na imaginação silenciosa uma versão do livro, ou de passagens específicas, que me parece acabada, preciosa em suas interconexões narrativas e detalhes relevantes. Escrever é tanto decidir que forma terá o fragmento limitado que representará o ideal da imaginação quanto se despedir desse ideal luminoso que fica pelo caminho. Em muitos casos, essa constatação tem um sabor resignado, de foi-o-melhor-que-deu.

Ao mesmo tempo, no sentido contrário das impressões de Olsson, um dos maiores prazeres do processo de escrita, para mim, é quando a redução da perfeição imaginada à concretude imperfeita e limitada da frase ou do parágrafo parece exceder a qualidade diáfana do ideal. Nesses momentos se pode ter a sensação de que tudo aquilo que se perde, as versões perfeitas que desaparecem no colapso de onda, precisava ser perdido. As formas ideais platônicas não estavam, afinal de contas, pairando numa realidade superior e fora do nosso alcance: estavam dentro da nossa cabeça.

O que está dentro da nossa cabeça existe, mas não é ideal: sua substância é a mesma de tudo aquilo que nos limita. É um grande caos de impressões e pensamentos interligados de formas obscuras, um caos que a intuição ou a razão nos sugerem abrigar uma mensagem relevante que a linguagem poderá organizar em alguma medida, e reduzi-lo a algo inteligível e mais potente é o objetivo da escrita. Quando dá certo, a impressão de perfeição troca de lado. O desconforto se torna conforto. O resultado nos surpreende e a perda é um alívio. Isso também requer a atenção do escritor: o vasto território pedregoso é repleto de incontáveis pontos de chegada, e não há um ponto final.

Talvez isso seja diferente na criatividade matemática, na qual são célebres momentos de clareza instantânea e explosiva que surgem e resolvem tudo quando a pessoa nem está tentando. Se na matemática esses momentos podem ser a resolução de um teorema, na escrita de ficção eles costumam trazer beleza e clareza a etapas microscópicas da narrativa. Mesmo assim, um único deles pode garantir o bom ânimo de um dia inteiro. Assim como a releitura no dia seguinte pode arrebentar tudo com uma chocante constatação de incoerência ou cafonice. Mas não vamos entrar nisso.

Quando a madrugada se instala, e ao silêncio se soma outro silêncio, me sinto pronta para abrir um arquivo em que faço anotações sem regularidade, ao modo de um autoexame, gênero para o qual me falta tanto a prática quanto a contenção monástica que lhe serviu de berço. Ah, Tebas, para onde me levaste? Fui criada à solta pela loba da ficção. Seu leite, contudo, que bem me nutria, tornou-se tão caro nesses anos que lhe esqueci o gosto. Por tentar enganá-lo com novos credos, o monitor devolve cal quando o fito. A minha folha corrida, a bem da verdade, mal completaria um capítulo. Tenho bastante idade, porém a soma de anos pode ser a única posse de um envelhecido. Viajei pouco. Amei pouco. Vivi justíssimo. Li, em troca, admito, e uma biblioteca mesmo modesta forma um juízo. Se há risco, a ficção é o abrigo, acreditei lá atrás, quando existia tempo e existia beleza, e desde então tenho assim me conduzido, sem indagar a sério qual é o prazo de um pacto ou que sabedoria existe em jurar sobre o jurado afora o valor de uma superstição. Desvio os olhos para o tabuleiro. Em xadrez nunca se volta um lance feito. Não seria o caso, me pergunto, de dar a partida por encerrada, a escrita por encerrada, ou algo pior, tudo junto? Consulto a opinião da tela. O marcador de caracteres pisca feito um punhal na imensidão de um arquivo em branco.

Adriana Lunardi, “Script girl”, Contos céticos.

Difícil pensar numa formulação mais sensível e pungente para a sensação de desencontro com a escrita do que essas linhas da Adriana, uma escritora que guarda super-poderes por trás de um disfarce contido. Cada vez que releio esse trecho, encontro novos ecos com experiências próprias. A suspeita de ter enfurecido deuses da inspiração por uma dedicação a “novos credos” (quais seriam? pouco importa); a suspeita de que o acúmulo de anos não é proporcional ao de vivências dignas de relato e compartilhamento; a suspeita de que pode ter chegado a hora da realização de um augúrio antigo e mencionado com jovialidade até há pouco, o de que não há garantia alguma de que a ficção seguirá sendo esse “abrigo” indefinidamente, de que um dia talvez nem a disciplina nem o sacrifício possam bastar. “Consulto a opinião da tela. O marcador de caracteres pisca feito um punhal na imensidão de um arquivo em branco.”

Na primeira vez em minha vida que a escrita se tornou realmente uma dúvida, eu não estava preparado para a constatação de quão despreparado estou para todo o resto. Não tenho um apego romântico à escrita, mas preciso pagar as contas e acordar motivado com seja lá o que for preencher minhas horas. Nos momentos de crise surgem fantasias quase ao alcance: de que poderia me contentar perfeitamente com a indolência e a domesticidade, com a vida ao lado da minha companheira e minha filha e nossa cachorra e minha família, sem fazer nada que diga respeito só a mim mesmo; de que poderia me empregar facilmente em algo seguro e repetitivo com base nos talentos que acumulei; de que iriam me querer para qualquer coisa, me remunerar.

A escrita, apesar do que dizem os poetas malditos, os liberais utilitaristas e alguns burgueses com cargos públicos e apaixonados pela própria virtude, não depende só de uma ideia, um lápis e um papel — ou de um Google Docs, um perfil no Instagram e uma panelinha. É uma atividade material inserida em um mundo material, come e disputa recursos — tempo, dinheiro, espaço, atenção, saúde mental — com todas as outras coisas. Não se trata somente de inspiração. Para voltar a escrever, é necessário organizar a dimensão material da vida como o texto organiza o caos de ideias perfeitas que perdemos pelo caminho.

Nos últimos quatro anos, a tentativa nem sempre bem-sucedida de organização material da minha vida prevaleceu sobre o tempo da escrita, inclusive por causa da pandemia, da enchente, das investidas da extrema-direta contra o setor cultural e da estafa de uma vida cotidiana assombrada pelo espectro do apocalipse ambiental. Não quero livrar meu juízo, minha maturidade emocional e minha inspiração de qualquer responsabilidade, mas vocês sabem. Tá foda pra todo mundo.

Há dois anos encontrei um tema: as improváveis conexões biográficas e filosóficas entre Simone Weil e Georges Bataille e sua relação, em grande parte ainda obscura para mim, com um conjunto de lembranças pessoais e histórias inventadas que habitam minha mente em promiscuidade. A questão do que fazer com isso exatamente ainda está em aberto, mas cada vez menos aberto, em incrementos vacilantes. Abro uns rascunhos de capítulos numerados. Evito ler muito deles — vai que me arrependo. Consulto a opinião da tela. Ela me consulta de volta. Tá olhando o quê? O marcador de caracteres avança um pouco.

O trabalho paciente difere dos momentos de libertação ou dos sentimentos itinerantes de liberdade por ser algo contínuo. E por ser contínuo, o trabalho paciente tem mais tempo e espaço para sensações mais agitadas e mesmo contraditórias, como o tédio ou o entusiasmo, a esperança e o desespero, o propósito e o despropósito, a emancipação e a repressão, o sentir-se bem e o sentir-se de outra forma. Essas oscilações podem dificultar o reconhecimento do nosso trabalho paciente como uma prática de liberdade em si mesma. "A arte é como tentar escapar da prisão com uma lixa de unha", diz a artista britânica Sarah Lucas; com o tempo, passei a sentir quase a mesma coisa sobre a escrita. Aqui uma mudança: a menos que eu não esteja lembrando direito, quando eu era mais nova, o "sentir-se livre" por meio da escrita era algo totalmente possível. Enquanto agora a escrita parece mais um encontro forçado e diário com meus limites, sejam limites de articulação, energia, tempo, conhecimento, foco ou inteligência.

A boa notícia é que essas dificuldades ou aporias não determinam o efeito do nosso trabalho nas outras pessoas. Na verdade, creio cada vez mais que o objetivo de nosso trabalho paciente não é a nossa própria libertação per se, mas uma profunda capacidade de abrir mão dela, com um apego cada vez menor ao resultado.

Maggie Nelson, Sobre a liberdade: quatro canções sobre cuidado e repressão, trad. floresta

Estou só começando a ler o livro da Maggie, mas gostando de como ela tenta formular e descrever conceitos nuançados de liberdade em oposição a usos mais ferozes, simplistas ou autoritários da palavra. O trecho acima está na introdução, e a ideia de “trabalho paciente” vem de uma frase de Foucault a respeito do exercício da crítica, definida por ele como “um trabalho paciente que dá forma à nossa impaciência por liberdade”.

Gosto dessa ideia de que a verdadeira liberdade da escrita significa conseguir libertar-se do próprio peso de que ela seja uma libertação, com um apego cada vez menor ao resultado. Sinto que uma parte importante desse novo recomeço do meu livro foi conquistar, finalmente, um desapego de uma série de resultados que me pareciam necessários à empreitada. Como se não pudesse avançar a contento sem a firmeza de que o livro deveria ser isso ou aquilo, de que sem objetivos relevantes não valeria nem a pena insistir.

Meu caderno de notas está repleto de interrogações relativas a intenções. Tratar esse material como um ensaio? Admitir uma parcela de autoficção? Forjar um protagonista com tais e tais características? Demonstrar determinada tese ao pensar em Weil e Bataille? Me ater a suas biografias? Inventar suas biografias? Tentar tratar certas cenas como narrativa histórica? Incluir elementos fantásticos que insistem em se intrometer?

O mais recente início destravou, creio, porque parti da premissa de que nada disso deveria importar. O livro não almeja nada além de dar forma às ideias e obsessões que insistem em permanecer. Já não me importo com objetivos ou gêneros. Não me importo em como será publicado — caso recusado, mando tudo aqui mesmo como um folhetim atormentado. O “encontro forçado e diário com meus limites” passa, aos poucos, a se tornar o próprio objetivo. Não é que desapareça qualquer promessa de libertação: ter um texto completo um dia é um prognóstico que anuncia no mínimo alguma leveza, mesmo que seja a leveza de estabelecer claramente minha insuficiência. Se isso soa pessimista, não dei o recado que queria dar. Existe êxtase na inutilidade: Bataille reitera isso constantemente em seus escritos, invertendo o senso comum de que a soberania do indivíduo requer propósitos.

Até sabermos como o romancista organiza o seu mundo, os ornamentos desse mundo, que os críticos nos impingem, e as aventuras do escritor, para as quais os biógrafos chamam a atenção, são bens supérfluos para os quais não temos uso. Solitários, devemos subir nas costas do romancista e espiar por seus olhos até que nós também compreendamos a ordem em que ele dispõe os objetos grandes e comuns para os quais os romancistas estão fadados a olhar: o homem e os homens; por trás deles a Natureza; e acima deles este poder que por conveniência e brevidade nos ocorre chamar de Deus. E logo começam as dificuldades, a confusão e a opinião equivocada. Tais objetos, ainda que pareçam simples, podem ser tornados monstruosos e até mesmo irreconhecíveis pela maneira como o romancista os relaciona. É viável afigurar-se por verdade que pessoas que vivem lado a lado e respiram o mesmo ar variam enormemente em seu sentido de proporção; para uma o ser humano é vasto, a árvore, diminuta; para outras, as árvores são imensas e os seres humanos, objetos pequenos e insignificantes ao fundo. Assim, a despeito dos manuais escolares, escritores podem viver na mesma época e nada verem do mesmo tamanho.

Virgina Woolf, O realismo de Robinson Crusoe, 1925

Concluo com essa passagem preciosa de Virginia Woolf, que ecoa o meu entendimento do romance como uma determinada ordenação da realidade e da literatura como pluralidade de visões. Para além dos temas e teses, da moral e da forma, o romance é uma organização peculiar, uma “ordem em que [o romancista] dispõe os objetos grandes e comuns”. Como facilitar que alguém suba nas minhas costas e espie por meus olhos? Aqui lembro também de uma definição de um personagem de Juan José Saer (em O grande): “O romance é o movimento contínuo decomposto.” Desmontar a experiência em seus componentes atômicos e reorganizá-la na linguagem: eis a essência da prosa, e toda a finalidade de que realmente necessita.

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