dentesguardados #30 Sabotagem
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Niilismo e performance no Antropoceno, ou: O data center de Eldorado é inevitável?
As enchentes de maio no RS completaram um ano. Reportagens descrevem a resignação de quem retorna a seus lares destruídos, conserta o que dá e segue a vida torcendo pelo melhor. Não são só os mais destituídos e desamparados que se veem nessa situação. Para a classe média atingida também não há muita alternativa: o custo de se mudar é proibitivo e toda revolta ou senso de autoproteção terminam vencidos pelo fatalismo e pela imperturbabilidade. Além disso, as pessoas são compreensivelmente apegadas aos lugares onde cresceram, cultivaram tradições ou passaram fases importantes de suas vidas. Elas querem voltar e para isso estão dispostas a correr riscos e viver em negação. Um atendimento satisfatório às vítimas precisaria ser sensível a esse tipo de raiz, que não se pode simplesmente arrancar.
De vez em quando chove forte e a cidade alaga de novo. Talvez alague como sempre alagou. Mas falta luz onde antes não faltava, e em certas regiões a energia, agora de responsabilidade de uma empresa privada, a CEEE Equatorial, demora vários dias para retornar. Os geradores das casas de bombas ainda falham, doze meses depois do desastre anunciado de um ano atrás. Qualquer alerta de temporal encobre a cidade em uma bruma de medo a apreensão. Sebastião Melo começou o segundo mandato na prefeitura dobrando a aposta na privatização do Departamento Municipal de Águas e Esgotos, cujo sucateamento proposital em seu primeiro governo agravou as inundações em Porto Alegre. Novos empreendimentos imobiliários são aprovados em áreas que ficaram submersas, incluindo condomínios no estilo “bairro fechado” com unidades ao preço de alguns milhões, “ideais para morar ou investir”, com vários andares de estacionamento, shopping centers privados e uma pracinha ali no canto para garantir o acesso ao público.
Cobrados por entrevistadores nas rádios e jornais, prefeito e governador insistem nos esforços de algum tipo que estão sendo realizados em algum lugar, sem dar um pio sobre mudança climática e ciência, sem detalhar projetos, mencionando estudos sempre em progresso sobre os quais nada de concreto ou técnico pode ser dito. Geradores e bombas seguem falhando e as últimas reservas de vegetação urbana vão sendo derrubadas pelas construtoras. O problema consiste em conseguir delegar o problema a entes privados que seguramente, guiados pela mão invisível da concorrência, da tecnologia e da teleologia capitalista, poderão adaptar nossas cidades aos novos desafios fazendo uso de uma energia limpa e certificada que será gerada de algum modo em algum lugar que também não se sabe dizer onde.
Hoje mesmo ouvi no rádio que fizeram um teste bem-sucedido no sistema de comportas no muro da Mauá, que fecharam em menos de um minuto. Que bom. Um pouco depois um amigo enviou por Whatsapp um podcast sobre o calor no Oriente Médio. A temperatura média em Bagdá atualmente é de 55 graus Celsius. Digo a mim mesmo que a tentação de pensar essas duas coisas juntas é uma resposta psicológica de defesa, uma armadilha paralisante. O limite da minha ansiedade é o limite do meu mundo. O dia está lindo e seco, a temperatura é amena, tenho trabalho a fazer e amor a receber e dedicar. Foco, bobalhão.
Mas teve uma coisa, o anúncio de um empreendimento específico, que me chamou a atenção. O município de Eldorado do Sul, vizinho de Porto Alegre e localizado próximo ao delta do Jacuí, foi um dos mais atingidos pelas enchentes. Toda a sua área urbana foi alagada, e 32 mil dos cerca de 40 mil habitantes precisaram fugir. O cenário era pós-apocalíptico. É neste município que, como revela essa matéria do Sul21, o governo estadual facilitará a instalação do Scala AI City, que pretende ser a maior “cidade de data centers” da América Latina. Os números são ridículos: investimentos previstos em 500 bilhões de reais para os próximos anos e uma “capacidade de TI de 4,75GW”. Tentando remover o eufemismo safado da assessoria de imprensa da Scala, suponho que o significado disso é que o data center consumirá 4,75 Gigawatts/hora de energia elétrica caso atinja suas metas operacionais. Como aponta a reportagem, é mais do que a geração da usina hidrelétrica de Jirau, a quarta maior do Brasil, que atende a demanda de 40 milhões de pessoas. A empresa garante que a água para resfriamento dos servidores será totalmente reaproveitada após uma carga inicial, uma promessa esotérica a respeito da qual não se sente obrigada — porque de fato não é, não havendo regras específicas para licenciamento da data centers no Brasil — a dar maiores explicações. Uma lei municipal aprovada sob medida para o empreendimento garante que o licenciamento ambiental se dará de forma simplificada e autodeclaratória.

A contradição de instalar um “novo Vale do Silício no Brasil” em uma área devastada por um desastre ecológico causado pela mudança climática soa para mim uma mistura de sarcasmo e pura maldade. Para nossos governantes, incluindo a prefeita de Eldorado do Sul, os investimentos prometidos são a solução para reconstruir o que foi perdido e financiar a prevenção. A única coisa que une essas perspectivas opostas é talvez o senso de inevitabilidade: estamos reduzidos a facilitar ou atrapalhar temporariamente o desdobramento de processos globais irreversíveis como o desenvolvimento da IA e o aquecimento global. A construção da cidade dos data centers é inevitável? Mesmo seus defensores seriam tentados a responder que não. Para eles, deve parecer também uma escolha. A escolha certa.
Às vezes sinto que viver no mundo de hoje é perceber que a batalha é contra uma ordem abrangente e implacável, que não pertence a ninguém. É como querer combater, incentivar ou se posicionar de qualquer outro modo diante de um terremoto. O que pode um estudo, um manifesto, uma bomba contra um sismo? Sua causalidade escapa à dimensão da vida individual ou social. Pensar assim nos convida ao niilismo, e não estou defendendo que seja verdade. Só constato a sensação de impotência que se acumula a conta-gotas. A utopia da redução de danos. Já nem sonhamos com a grande revolução, com o potlach global capaz de reconfigurar a marcha da autodestruição ecológica. Em vez disso, o ser humano reelege o prefeito que representa de cabo a rabo as ideologias responsáveis pelo desastre — que não é natural, e sim resultante de escolhas humanas — e recorre aos chats de IA para poupar seu intelecto das mais básicas funções cognitivas em troca de mais uns minutinhos de doomscrolling.
O escritor e militante ecológico sueco Andreas Malm defende que a sabotagem e a destruição de propriedade são recursos justos e necessários no combate à mudança climática causada pelo homem. No livro How to blow up a pipeline, de 2021, Malm argumenta que o fatalismo climático é uma profecia que cumpre a si mesma, levando a sociedade a acreditar que não pode haver reação ou mudança possíveis diante da escala do problema. O ecoterrorismo também é um elemento importante na narrativa especulativa de The Ministry for the Future, o romance de Kim Stanley Robinson que vivo citando e que imagina os esforços de um órgão internacional secreto de combate à mudança climática em nome da sobrevivência de futuras gerações. Em uma das situações imaginadas no romance, a aviação mundial se torna impossível a partir do momento em que ativistas se apossam de armamentos militares futuristas pero no mucho e passam a abater qualquer aeronave que ouse decolar e despejar carbono na atmosfera.
How to blow up a pipeline foi transformado em um filme em 2022, com direção de Daniel Goldhaber. Nele, acompanhamos os dramas individuais de oito jovens personagens afetados pela indústria dos combustíveis fósseis — entre eles uma garota que está morrendo de câncer, um jovem indígena cuja comunidade teve as terras tomadas por uma refinaria e um punhado de ativistas frustrados com a ineficácia das táticas pacíficas — e a execução do seu plano de explodir tubulações de gás no Texas. É um eco-thriller dos bons, alternando o suspense do procedimento de sabotagem com flashbacks para a história pregressa de cada protagonista, com uma trilha sonora tensa combinando sintetizadores e percussão em barris de petróleo. O filme não se preocupa em fornecer contrapontos à sua defesa da ação direta: a sabotagem é bem-sucedida e inspira, na montagem rápida da sequência final, um movimento amplo de destruição de propriedade que promoverá a consciência coletiva através de uma investida justa contra os responsáveis: os ricos, as corporações, os políticos. O filme toma o cuidado de ressaltar a preocupação dos militantes em não machucar ninguém. Mas a mensagem é direta, sem desculpas: eis o caminho para passar da discussão infértil e da reificação do desespero para algum tipo de ação concreta. É uma energia tentadora. Desde, é claro, que não se pense muito na tendência da violência controlada a se transformar em violência descontrolada. Pensar nisso pode nos levar a pensar de novo no que é possível realizar dentro dos princípios de uma ética pacifista.

Numa recente edição de sua newsletter, em um texto intitulado Performance e paralisia, Ariela K. pensa em torno de Hamlet e do assassinato cometido por Luigi Mangione contra um CEO de seu plano de saúde para refletir sobre a angústia da inação numa sociedade em constante performance nas redes sociais. Escreve ela:
O mal-estar da geração digital, ao longo do espectro político, é ser exposta a tantas indignidades e não chegar a lugar nenhum, é o ter o mundo ao toque dos seus polegares e não ter poder para nada, é navegar informação e frustração, opinião e inação, perfomance e paralisia. Quem sai da inércia, nessas condições, não emerge com um plano cuidadoso e bem pensado. O que resta é a foto de cadeia, o corpo na esquina. Luigi Mangione é o herói da geração da Internet, e é emblemático que entregue sua vida numa explosão performática, para não alcançar nada.
Concordo com a ideia de que a internet cria uma relação com a realidade na qual as pessoas têm a impressão de estarem fazendo algo para mudar o mundo, enquanto na realidade a performance virtual está tomando o lugar da ação. Ao mesmo tempo, me pergunto se algum tipo de performance não pode exercer, sim, um efeito concreto dentro de uma realidade que se tornou essencialmente performática. Luigi Mangione se tornou um meme, e logo a foto de seus elegantes tornozelos algemados no tribunal nos desvia das implicações do assassinato que cometeu e das tensões que, já ensinava Camus, são inerentes à revolta humana.
A revolta, insistia Camus, desemboca facilmente no niilismo se apregoa “a solidão de toda criatura, o nada de qualquer moral”. Em O homem revoltado, 75 anos atrás, pensando a história das revoluções nos séculos 19 e 20, escreveu: “Aqueles que recusaram qualquer outra regra ao mundo que criaram, a não ser a do desejo e a da força, correram para o suicídio ou para a loucura e anunciaram o apocalipse. Os outros, que quiseram criar as regras pela sua própria força, escolheram a vã ostentação, a aparência ou a banalidade; ou ainda o assassinato e a destruição.” Luigi Mangione é um niilista? Não podemos afirmar. O que me parece claro é que não é ele o performer nessa história. O performer é o “usuário das redes”, que ao ser acusado dirá: “não tem mais como viver sem isso”.
Que tipo de performance poderia ser proveitosa nessa existência vicária da era digital, que nos empurra para o fatalismo enquanto processos muito concretos, destrutivos e potencialmente apocalípticos corroem nosso ambiente, nossos corpos e nossa psique? Não sei. Mas semanas atrás, no mesmo Texas em que se passa How to blow up a Pipeline, a irmã de uma das vítimas do massacre de El Paso pediu permissão ao tribunal para abraçar o assassino. O juiz autorizou. ”Sinto em meu coração a vontade te abraçar muito forte para que você possa sentir meu perdão e, principalmente, minha dor", ela disse. Disse também: “Nós teríamos aberto as nossas portas para você e te oferecido uma refeição, um almoço ou jantar no estilo mexicano, para mudar os pensamentos feios sobre nós que colocaram na sua cabeça”.
A lógica do fatalismo, tão sedutora, é sabotada por um gesto assim. Talvez possamos canalizar nossa energia performática para gestos como esse, que são o inverso do assassinato, o inverso da destruição. Explosões performáticas que cheguem em algum lugar.
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Nota inútil: pratico severo e quixotesco boicote a ferramentas de IA generativa. Abri uma exceção para as duas imagens que ilustram ironicamente esse texto.
Nota afetiva: obrigado a vocês que eventualmente enviam uma colaboração, não importa de que valor. Vejo os nomes nos recibos, alguns sei quem é, outros não, mas saibam que me ajuda e me estimula de verdade.
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Seção de links
- https://understandingai.iea.usp.br/nota-critica/bits-por-megawatts-como-a-ia-esta-impactando-a-demanda-energetica-no-mundo
- https://spore.ribo.zone
- https://www.ufrgs.br/semsono/2025/04/09/make-fabico-weird-again-1
- https://marreta.pcdomanual.com
- https://www.tumblr.com/liminal-helvetica
- https://www.nonada.com.br/mapeandors
- https://www.youtube.com/watch?v=tof-hTxuhIY
- https://www.technologyreview.com/2025/04/24/1115751/apple-carbon-neutral-eucalyptus-tree-farm-brazil
- https://untitled.stream/library/project/945GE6LtdJjii6k5liPcQ
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