dentesguardados #3 Imagens
Saudações. Esse número da newsletter não contém nenhum texto inédito. Mas quis aproveitar a inauguração dessa exposição de obras do artista alemão Harun Farocki, no IMS do Rio de Janeiro, para republicar aqui um breve artigo que escrevi logo depois de conhecer sua série de obras Paralelo, que analisa as imagens dos videogames. O artigo, intitulado A presença de tudo que falta, estava no meu finado tumblr. Quero muito ver o resto da exposição de Farocki, mas dificilmente irei ao Rio, então vou esperar que vá mais tarde ao IMS de São Paulo, e com alguma sorte conseguirei ver lá.
Antes disso, na próxima sexta-feira, dia 29 de março de 2019, estarei no IMS de São Paulo participando da segunda edição do Festival Serrote. Apresentarei um ensaio para na "Serrote ao vivo", evento que começa às 20h e contará também com participação de Aparecida Vilaça, Daniel Jablonski, Patrícia Campos Mello e Ricardo Aleixo, além da trilha sonora ao vivo da banda Hurtmold. Para assistir, eis as instruções do site: Distribuição de senhas 60 minutos antes do evento; Limite de 1 senha por pessoa; Capacidade do cineteatro: 145 lugares.
O ensaio que lerei na sexta propõe algumas ideias sobre nossa relação com a realidade e a imaginação na era das tecnologias digitais, em função da visibilidade total trazida por elas. A reflexão é construída em cima de imagens de catástrofes e desemboca em palpites mais ou menos convictos sobre os desafios atuais para a escrita de ficção.
O ensaio tem algumas ligações com a primeira edição dessa newsletter, e também habita a mesma região de interesse do artigo sobre Farocki e de dois outros artigos que publiquei no extinto Blog do IMS, ainda disponíveis pra consulta: Esporos de emoção na paisagem do streaming, sobre o poder emotivo de vídeos caseiros na internet, e Onde vivem os Dinobots, sobre os dinossauros robóticos presentes no game Horizon: Zero Dawn e no quarto longa-metragem da série Transformers. Nunca tive a intenção consciente de escrever essas reflexões sobre imagens digitais como se fizessem parte de um conjunto interligado, mas hoje, relendo esses textos todos, tenho a sensação de que se complementam.
Porto Alegre está com um clima de outono maravilhoso nos últimos dias, embora a cidade toda pareça assolada por uma virose pestilenta. O vento friozinho sopra constante e o sol ameno amorna os parques e certas ruas muito bem selecionadas. Há um clima de estupefação e receio no ar, à medida que mais e mais pessoas se dão conta da verdadeira extensão da boçalidade que elegeram, das consequências concretas que já estão em curso. Estou lendo a trilogia do Cixin Liu, vendo os filmes da seleção do Mubi e terminei Bayonetta 2 ontem. Não escrevo nenhuma linha de ficção rigorosamente todos os dias. Passeio com meu cachorro e minha filha, cozinho, traduzo uma lauda aqui e ali, escrevo textos curtos pra destinos variados. Faço 40 este ano. Mas onde eu estava mesmo?
Sem mais enrolação, o textinho sobre o Farocki.
DG
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A presença de tudo que falta
(11 de abril de 2016)Parallel, último trabalho do cineasta alemão Harun Farocki (1944-2014), esteve em exibição recentemente no Paço da Artes, em São Paulo, e por sorte pude aproveitar uma visita à cidade para conferir a obra, sobre a qual nada sabia antes de ler um artigo na Folha de S. Paulo divulgando a mostra. O trabalho consiste em quatro vídeos, Parallel I-IV, que discutem a linguagem dos videogames dentro da história da representação visual, explicitando suas diferenças com relação ao cinema e apontando algumas questões políticas e éticas que aparecem com o domínio crescente das imagens geradas por computador. Os quatro vídeos são exibidos em telas voltadas para o mesmo centro, dando ao espectador um pouco da sensação de estar entrando em um mundo tridimensional digital. Cada vídeo consiste em uma investigação sobre um aspecto dos gráficos digitais presentes nos videogames, com imagens de jogos famosos abarcando os trinta anos de evolução da mídia, acompanhados de comentários ensaísticos proferidos por uma voz feminina um tanto robótica, a ponto de ser difícil dizer se é humana ou gerada por computador.
Harun Farocki, PARALLEL IV, 2014 | Photo © Harun Farocki
O primeiro vídeo (meus comentários sobre cada um deles serão feitos de memória, infelizmente; não os encontrei em versão integral em lugar algum na internet) aborda a evolução das imagens de computador, anotando aspectos em que derivam e diferem da pintura, da fotografia e do cinema. Imagens de nuvens e lagos em jogos como The Legend of Zelda aparecem lado a lado de imagens de jogos mais avançados ou de trechos de filmes, enquanto a narração diz “eis uma nuvem feita de quadrados”. Farocki parece interessado em diferenciar cinema e videogames a partir do vínculo entre a representação e a realidade, que estaria presente de forma mais direta no primeiro caso (antes da contaminação da película pelo CGI e a consequente transição para o digital, o que se via na tela havia sido registrado por lentes no mundo concreto) e ausente no segundo.
Não sei dizer se Farocki jogou videogames em algum momento da vida, ou se ao menos os jogou no período em que trabalhou nos vídeos de Parallels. Para mim, que nasci em 1979 e joguei videogames desde os cinco anos de idade, começando pelo Odyssey, esse primeiro vídeo colocou de forma objetiva e condensada uma evolução visual que se deu ao longo de trinta anos, em saltos exponenciais, mas ainda assim espalhados em um período de tempo longo, e que transcorreu em paralelo com o amadurecimento – literal, pois me refiro ao olhar de uma criança de cinco anos, depois o de um adolescente fissurado em games, HQs, cinema e computadores, e por fim um adulto com um mínimo de bagagem crítica – do meu próprio olhar. Em cada nova geração de consoles e de gráficos de computador, a evolução me parecia fluida, uma consequência inevitável da etapa anterior. Meu senso estético era influenciado pela sofisticação irrefreável e veloz da informática. Cada novo patamar de avanço gráfico digital era espantoso e deslumbrante, mas de certa forma também esperado, lógico e previsível, e já preparava o terreno para o estágio seguinte, de resolução, quantidade de cores e realismo ainda maiores. Em Parallel I, fui forçado a contemplar a origem de uma linguagem visual que, para a minha experiência, parecia sempre ter existido. Ali estavam os pixels gigantes e as animações rudimentares, a estética de blocos de montar que foi a caverna de pinturas rupestres dos mundos virtuais que conhecemos hoje. A capacidade dos computadores atuais de gerarem imagens fotorrealistas fascina Farocki; em dado momento ele coloca lado a lado um filme e uma imagem de computador reproduzindo nuvens carregadas em movimento pelo céu. São quase idênticas, embora uma tenha origem em um céu real, cuja luz foi captada em filme, e a outra seja resultado de processamento de números em um software de modelagem digital. A âncora com o real se perde. Não me parece que o autor esteja colocando aí nenhum julgamento de valor, apenas apontando esse descolamento, chamando nossa atenção para ele com didatismo quase infantil, e nos levando a imaginar que implicações ele pode ter no futuro, à medida que prossegue o avanço das imagens digitais e dos mundos virtuais.
O segundo e terceiro vídeos da série abordam aspectos de movimento e estrutura dentro dos mundos digitais tridimensionais moldados pelos videogames. Uma palavra-chave nessas investigações parece ser "possibilidade". À medida que essas representações virtuais ficam mais próximas do real, ou pelo menos de nossa experiência visual e auditiva, torna-se mais interessante comparar os limites do virtual com os limites do mundo físico. Para este fim, Harocki recorre a uma espécie de redução ao absurdo dos mundos dos games, verdadeiros testes das leis "físicas" peculiares que os regem. O avatar do protagonista do jogo Red Dead Redemption é forçado a andar em linha reta até dar de cara com paredes de rocha ou despencar em fendas de penhascos; no primeiro caso, Farocki chama a atenção para a maneira como o personagem começa a se mover de lado, com o rosto ainda prensado contra a parede, de maneira a não ficar preso no mesmo lugar. Esses movimentos nada têm de realista, mas são previstos pelos programadores do jogo e implementados de propósito, para criar uma sensação fluida de deslocamento mesmo quando o jogador dá de nariz com as paredes invisíveis ou arbitrárias dos mundos virtuais, maquiando a ilusão. Essas paredes invisíveis são desmascaradas em outra sequência, na qual as ferramentas de desenvolvimento do game Crysis são usadas para transformá-las em painéis listrados que delimitam claramente o espaço em que o jogador pode circular e os espaços “proibidos”, que estão ali por necessidade, para criar a ilusão de um mundo que se estende além do nosso alcance.
Estratégias semelhantes são usadas para fazer avatares despencarem em abismos sem fim por trás do limite de um cenário ou mergulhar por baixo do solo ou da superfície do oceano, mostrando como essas superfícies, vistas pelo outro lado, se tornam transparentes. Esse desmascaramento da aparência física e da opacidade dos mundos virtuais como mera arbitrariedade do código de computador pode abrir margem a analogias metafísicas, questionar os limites da nossa percepção et cetera. Cada espectador decidirá até onde vale a pena ir nesse sentido. O que me parece claro, todavia, é que Farocki está chamando a atenção para um fato muito importante relacionado aos videogames como forma de expressão: quanto mais avançados eles se tornam em termos de representação, mais significativos se tornam os limites dessa representação. Colocando de outra forma: é fácil enxergar como o poder de processamento cada vez maior torna os videogames mais realistas, bonitos e imersivos, mas em tais mundos virtuais, principalmente quando povoados por outros personagens ou cidadãos figurantes, as limitações são ou devem ser submetidas a níveis de exigência igualmente elevados. Minha experiência com GTAV produziu um exemplo disso: fiquei encantado com os gráficos e sons realistas e com a sensação de movimento dentro do jogo. Algum tempo depois de passar dúzias de horas naquele universo virtual, visitei pela primeira vez Los Angeles, cenário do jogo, e minha sensação ao desembarcar e andar de táxi pela cidade foi a de estar dentro de uma imitação de GTAV. O jogo é como uma representação depurada, mais simples e essencial da cidade real. Isso é atingido por meio de proezas de programação, direção de arte et cetera. Por outro lado, esse mesmo realismo e fidelidade essencial apenas tornam mais patentes as inúmeras maneiras em que o jogo fracassa em reproduzir o mundo real. As possibilidades que faltam são muito mais vastas do que as previstas pelo jogo, e um olhar crítico, mesmo que dure apenas um instante, trará ao primeiro plano essa presença do que está ausente.
Esse é um dos temas do quarto vídeo. Nele, o procedimento aparentemente brincalhão de explorar os limites do mundo virtual, já desenvolvido nos dois vídeos anteriores, é trazido para o nível das interações humanas. Os protagonistas de jogos como GTAV, Mafia e Far Cry 4, visíveis na tela em terceira pessoa ou ocultos “atrás da tela” na primeira pessoa, são controlados como se fossem seres ingênuos despejados em um mundo desconhecido, no qual precisam, antes de qualquer coisa, experimentar com as possibilidades de interação à sua disposição. O resultado é uma série de vinhetas um tanto absurdas, com efeito cumulativo cômico, em que os personagens esbarram nos transeuntes várias vezes, ou dão socos na cara das pessoas até serem mortos pela polícia, ou ficam com o nariz encostado no rosto de alguém que não reage nunca. Todo mundo que já controlou um avatar em um jogo do tipo “mundo aberto” sabe do que se trata essa espécie de autismo coletivo das figuras humanas de um mundo virtual, do qual a única forma de escape parece ser a violência, quase sempre a única forma de agir concedida ao personagem para superar as tarefas propostas pelo jogo.
Em uma cena tocante, Parallel IV coloca o protagonista de GTAIV, Niko, dentro de uma delicatessen nova-iorquina e faz ele sacar a pistola e apontar para a mulher que atende no balcão. Por longos minutos, vemos a mulher entrar em pânico, gritar uma das quatro ou cinco frases que foi programada para dizer nessa situação, sair correndo da loja e, depois de um instante do lado de fora, retornar para dentro da loja e reassumir a posição atrás do balcão, para então gritar em pânico novamente por causa da arma apontada para si, sair correndo et cetera ad infinitum. A mulher está presa nesse ciclo sisifeano pelas restrições do código; no instante em que sai da loja, está condenada a esquecer do perigo e retornar às suas funções, e ao ver a arma está condenada a entrar em pânico novamente e fugir, sem memória do que acabou de fazer. A reação é realista quando vista sob a ótica limitada do que o jogo permite fazer, e absurda quando se considera a gama de possibilidades que um realismo mais digno do nome ofereceria: a mulher poderia chamar a polícia ou alguém na rua para ajudar, ou poderia simplesmente perguntar se vamos atirar de uma vez ou não, pois ela tem mais o que fazer do que ficar olhando um idiota com a arma apontada para a sua cara, ou então nós enquanto jogadores é que poderíamos, em vez de apontar a arma ou dar um encontrão na mulher, pedir um sanduíche de pastrami ou perguntar se ela tem alguma dica do que fazer no bairro. O realismo dos games cria miríades dessas situações de perturbadora incongruência e/ou inclinação agressiva, que não se restringem à interação entre as figuras humanas, estendendo-se à interação física com os cenários: você pode saltar de um veículo em movimento com incrível destreza e força física, mas não consegue subir um degrau de vinte centímetros que delimita um jardim, pois ele teve acesso barrado pelos programadores por um motivo ou outro.
Harun Farocki, PARALLEL IV, 2014 | Photo © Harun Farocki
Alguns comentários que li sobre Parallel ressaltam leituras políticas e sociais da obra, como se Farocki fosse mais um a querer denunciar a tendência violenta ou antissocial dos video games. Esse me parece ser um aspecto presente nos vídeos, mas de forma apenas tangencial. Acima disso, o que os vídeos sugerem é que a sofisticação incessante dos mundos virtuais interativos e seu domínio crescente sobre formas anteriores de representação gráfica não interativa nos forçam a pensar na qualidade dessa interação. E um dos caminhos para isso é aprender a prestar muita atenção, em qualquer oportunidade, a tudo que esses mundos vistosos, imersivos e graficamente impressionantes não nos permitem fazer. Por que eu não posso continuar cavalgando em direção ao horizonte pelo tempo que quiser em Red Dead Redemption? Por que essa moça não entra em pânico quando coloco uma metralhadora na cara dela em Far Cry 4? Em alguns casos, as limitações são de ordem técnica ou algorítmica (visando um gameplay divertido e equilibrado); em outros, são escolhas arbitrárias ou simplesmente pobreza de espírito dos game designers (ou servilismo ao gosto comum do mercado). Em termos de possibilidades de interação, ainda estamos na fase dos bloquinhos de montar, da nuvem feita de quadrados. Para que os games evoluam como forma de expressão, a sofisticação do ver e do ouvir precisa ser acompanhada pela sofisticação dessas possibilidades, daquilo que nos é permitido fazer dentro desses mundos. Com as tecnologias digitais se tornando parte cada vez maior de nossas vidas, incluindo novos avanços em realidade virtual e a banalização do conceito de “gamification” em áreas tão diversas quanto dietas alimentares, saúde, educação, política e combate militar, esse tipo de atenção à qualidade dos mundos virtuais e seus limites interativos se torna, para além da faceta de entretenimento mais associada aos games, uma questão de ética e cidadania. //
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Seção de links
- https://www.quantamagazine.org/did-supernovas-kill-off-the-monster-shark-megalodon-20190115/
- https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/03/estado-norte-americano-pode-legalizar-uso-de-corpos-para-adubar-o-solo.shtml
- https://youtu.be/wCI1Xxus3HI
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