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March 25, 2025

dentesguardados #28 Arquiteturas

#28

Arquiteturas

Entrei na livraria Paralelo 30 com a Sara e a Fauna pra gastar um pouco mais de tempo no nosso passeio matinal vendo livros antes de ir pra casa e ao passar os olhos pelas prateleiras de títulos em destaque me detive em um volume que trazia na capa a gravura aparentemente antiga de um pássaro empoleirado em um galho fino acima de um ninho em formato de rede ocupado por um segundo pássaro, sobre um fundo verde-folha, com o título em letras brancas e grandes no inferior: Animais arquitetos.

Há momentos em uma vida dedicada à leitura em que um livro físico disponível em um espaço físico — uma livraria de rua, um balaio de feira, uma biblioteca, a estante da casa de alguém — proporcionará uma experiência de encontro que poderá parecer predestinada, não em nenhum sentido grandioso, pois podemos estar falando tanto de obras magistrais quanto de livros medíocres ou que não provocarão um efeito necessariamente transformador em nossa vida após a leitura, mas no sentido de nos parecer ao mesmo tempo profundamente inesperada e adequada, um acidente feliz.

Enquanto Sara lia O primeiro gato no espaço sentada no chão e Fauna aguardava em pé naquele fastio compenetrado dos cães que se encontram em ambientes humanos que não lhe fazem o menor sentido, folheei Animais arquitetos e descobri que o texto era intercalado por esplêndidas ilustrações aparentemente antigas de tocas, ninhos, armadilhas e outras estruturas construídas por animais de espécies variadas. Passei os olhos pelo texto e percebi que ele apresentava um estilo curiosamente compendioso, no qual dúzias exemplos de arquitetura animal estão descritos de modo condensado e agrupados em tópicos como “Considerações estruturais”, “Arquitetura paisagística animal” e “Considerações econômicas e ecológicas”. O autor, Juhani Pallasmaa, é um arquiteto finlandês nascido em 1936. A edição elegante, quase minimalista, é da editora Olhares, da qual eu nunca tinha ouvido falar. Se os motivos não são auto-evidentes para quem me lê, tampouco saberia eu explicá-los, mas nesse ponto já não havia a menor chance de eu não comprar o livro. Foi um daqueles encontros.

Arquitetura animal enumera exemplos da engenhosidade construtiva de protozoários a primatas, e aqui e ali surgem alguns peixes e crustáceos, mas se detém principalmente nas aves, insetos e aracnídeos e seus prodígios arquitetônicos que às vezes superam de longe a precisão e a complexidade alcançadas pelos seres humanos com seus afamados cérebros e tecnologias. Todo mundo sabe que a teia da aranha é muito mais resistente que o aço e que seu domínio de estruturas tensoras ultrapassa nosso entendimento, mas eu não sabia que certas aranhas espalham gotas de uma substância pegajosa nas teias e depois as fazem vibrar como cordas de violão de modo a dividir essas gotas em gotículas menores e perfeitamente espaçadas que distribuem a armadilha uniformemente por todo o fio. Os cupinzeiros mais altos chegam a nove metros, o que equivaleria a prédios de 3km de altura na escala humana. Vespas, formigas e cupins desenvolveram o papel muito antes dos humanos — eu nunca tinha pensado que os ninhos de certas vespas são literalmente feitos de papel, a partir de madeira triturada e aglutinada com a própria saliva.

Eu tampouco tinha pensado no fato de que muitos insetos e aracnídeos constroem estruturas absurdamente complexas e engenhosas usando variadas secreções metabolizadas por seus próprios corpos. Precisamos da tecnologia pra estender nossos corpos ao ambiente, e uma projeção metabólica como a desses animais inevitavelmente leva nossa imaginação ao território do horror corporal, mas o que poderia ser mais natural do que secretar o próprio material construtivo? Pallasmaa interrompe ocasionalmente sua narrativa sintética para refletir sobre o que os animais poderiam nos ensinar sobre arquitetura, ecologia ou mesmo sobre a beleza. Os exemplos da arquitetura animal, para ele, “representam um funcionalismo ecológico descomprometido”. Para os humanos, por outro lado, “a arquitetura é mais um mediador mental entre o mundo e nós mesmos do que um mediador entre os estilos de vida humanos e o contexto ecológico.” O que construímos é moldado por “fatores culturais, psíquicos e estéticos”, o que gera a tendência de afastamento do equilíbrio ecológico. Com mau gosto estético antinatural, projetamos nos interiores dos shopping centers, nos prédios de Camboriú e na esterilidade asfixiante dos condomínios nossos sonhos de imortalidade e de excepcionalidade, desafiando ou nos dobrando aos limites econômicos e materiais ao sabor do descaso e da megalomania.

Em contraste, é interessante lembrar das colocações feitas por Antonio Bispo dos Santos em A terra dá, a terra quer acerca das diferenças entre a “arquitetura contracolonialista” quilombola, na qual as residências humanas são feitas dos materiais disponíveis localmente no ecossistema em que se encontram e têm como espaço mais importante o quintal, e a arquitetura “colonialista” dos espaços urbanos, que utiliza materiais sintéticos e aglutina as pessoas eliminando o convívio comunitário e a flexibilidade expansiva dos quintais. Bispo traça um paralelo entre o quintal quilombola e as lajes das favelas, e critica duramente o programa habitacional Minha Casa, Minha Vida por destruir os modos de vida locais. “Para nós, a moradia é o lugar onde vamos passar a maior parte das nossas vidas”, escreve Bispo. “A casa tem que ser uma parte dos nossos corpos, temos que suar naquele material, temos que sentir nosso cheiro em nossa casa. A arquitetura colonialista, uma arquitetura sintética, não nos permite isso. As pessoas precisam fazer casas com as paredes lisinhas, lineares, planas. Ela elimina a arte, pois é um saber mecanizado, não é artesanal, não tem vida.”

A arquitetura contracolonialista e a arquitetura animal nos fazem pensar que o engenho humano se digladia entre conceitos opostos de eficácia e de beleza. De um lado, a noção quantitativa, econômica, mecanizada; do outro, a noção qualitiva, ecológica, orgânica. Pallasmaa não crê em um retorno a modos primitivos de construção, e sim em uma síntese progressora inspirada pela humildade do restante do reino animal. “A arquitetura animal nos ensina que o caminho em direção à arquitetura humana ecologicamente consciente que buscamos não é aquele que nos leva de volta a formas primitivas de construção, mas o que nos conduz a uma avançada sofisticação tecnológica. A evolução é rumo a um refinamento cada vez mais sutil, e não o contrário.”

Tudo isso importa, mas o encanto proporcionado por Animais arquitetos acontece antes de aprofundarmos essas discussões. Está em aprender que vespas e formigas, normalmente inimigas mortais, podem conviver pacificamente quando estão habitando a mesma árvore. Ou que tanto os cupinzeiros quanto as tocas subterrâneas dos cães-das-pradarias possuem sistemas de ar condicionado que dispensam qualquer gasto de energia e que poderiam ser imitados em nossas construções. Ou que certos pássaros constroem ninhos costurando folhas com fios de teia de aranha. Ou em admirar os detalhes das ilustrações magníficas, que ao checar a página de créditos descobri terem sido produzidas em 1889 por G. Pearson a partir de desenhos de W. F. Keyl e E. Smith, e extraídas de um livro chamado Homes without hands, de J. G. Wood. Nos mesmos créditos está a informação de que Animais arquitetos tem origem no catálogo de uma exposição realizada no Museu de Arquitetura de Helsinque em 1995 pelo próprio Juhani Pallasmaa, o que explica o estilo condensado do texto.

(página de Animais arquitetos extraída do site da editora Olhares)

Sara ainda estava sentada no chão da livraria, lendo, quando me aproximei dela para mostrar uma das ilustrações. Ela olhou e depois de alguns segundos arregalou os olhos: a ilustração mostrava a formiga-leão, um inseto que constrói na areia uma armadilha em forma de funil para atrair suas presas, em geral formigas tradicionais. “A formiga-leão!”, exclamou ela, lembrando de uma personagem dos livros dos Moomins, da também finlandesa Tove Jansson, que lemos para ela incontáveis vezes. O mundo encantador do vale dos Moomins e seus habitantes é quase tão real na nossa casa quanto a própria realidade.

“Olha só”, falei pra ela, lendo aquele trecho do livro. “Ao escavar o fosso em forma de funil, a formiga-leão atira grãos de areia em um ângulo de 45 graus para maximizar a distância em que as partículas maiores são lançadas, mas, ao final da construção, adota uma trajetória de 60 graus para reduzir a quantidade de partículas pequenas lançadas para fora do fosso; os grãos mais finos criam uma superfície mais inclinada e escorregadia, aumentando a eficiência da armadilha.”

“Legal, pai”, ela disse assim mesmo, com uma ênfase no legal, e voltou a ler a HQ do gato espacial. O meu encontro com esse livro era também um encontro para ela? Improvável. Mas não era isso que importava, é claro. Olhei em volta, fotografei mentalmente os detalhes daquele momento, o ambiente, o contexto. A gente tem que prestar atenção consciente nessas coisas pra não deixar a vida ser inundada de besteira.

Fazia um calor imenso na rua, o ar condicionado da livraria nos protegia consumindo a energia elétrica gerada em distantes e poluentes estruturas feitas pelo homem. Fauna aguardava com impaciência obediente os seus humanos concluírem essas atividades incompreensíveis, em pé no piso que devia provocar uma sensação estranhamente lisa e gelada sob as almofadinhas de suas patas, talvez pensando na tigela de água que a aguardava em casa, sobre o piso semelhante da cozinha do nosso apartamento.

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Seção de links

  • https://robhorning.substack.com/p/tastes-of-almost-friday
  • https://www.ufrgs.br/carbono/2025/03/09/entrevista-com-pablo-l-c-casella/
  • https://www.youtube.com/watch?v=Dejr0xYOzFQ&list=LL
  • https://buttondown.com/trasel/archive/abas-abertas-16-quem-subsidia-a-imprevidencia/
  • https://www.honest-broker.com/p/whats-happening-to-students
  • https://www.caitlintmccormack.com
  • https://www.youtube.com/watch?v=3cYlBarkmDY
  • https://www.tumblr.com/glitchphotography/777383935711887360/ascension-mg11-deluxe-paint-iv-2025
  • https://soundcloud.com/niluferyanya/rid-of-me

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