dentesguardados #27 Caprichos
#27
Simone Weil e a escrita enquanto um mero capricho
Simone Weil abre o seu artigo Moral e literatura, escrito em 1941 (mas publicado somente em 1944, após a sua morte), com a seguinte premissa: “Nada é tão belo, maravilhoso, constantemente novo e surpreendente, tão pleno de um deleite contínuo e prazeroso, do que o bem. Nada é mais estéril e deprimente, monótono e aborrecido, do que o mal.” (Nota: as citações são traduzidas por mim de uma outra tradução para o inglês; o texto original é em francês, Morale et littérature.) Na ficção, porém, ela nos diz que ocorre o inverso. Na ficção, o bem é maçante e aborrecido, enquanto o mal é “variado, interessante, atraente, profundo e sedutor”.
Há uma explicação para isso. Simone Weil sempre tem uma explicação para tudo. Nesse caso, a explicação é que o mundo real é governado pela necessidade, ou seja, pelas leis da física e pelas limitações materiais. O exemplo favorito de necessidade, para Weil, é sempre a gravidade. Ver uma pessoa caindo de uma escada é um espetáculo lamentável, mas na ficção, onde o mal não está constrangido pela necessidade imposta pelo mundo real, a cena se enche de páthos e interesse. Ver uma pessoa flutuando em direção ao céu no mundo real, “suspendendo o efeito da necessidade terrena”, seria sempre encantador. Mas em uma pintura ou obra de ficção, essa cena não teria interesse, não passaria de um simples clichê, pois “a irrealidade rouba todo o valor do bem”.
Até aí, nada que desafie o julgamento de ninguém. O senso comum está acostumado à discussão de que na ficção precisamos de conflito, de problemas, de personagens desagradáveis e cenas desconfortáveis, de dificuldades a serem superadas: disso brotam histórias envolventes que na vida real trariam tédio, indiferença ou pura e simples repulsa. Histórias de sucesso e satisfação descomplicada não rendem boa ficção. O toque especial de Weil é trazer o elemento da necessidade do mundo físico como explicação lógica para isso. A ficção, degarrada da necessidade, “liberta” o mal em um território de miríades de possibilidades simuladas que podem ser desfrutadas inconsequentemente pelo espírito. Já o bem, extraído do contexto da realidade, é esvaziado de sua tensão com a necessidade e o mal, e portanto de sua glória.
Em seguida, Weil dá um salto ainda perfeitamente lógico, porém de digestão menos fácil. “Já que a literatura é acima de tudo um produto de ficções, nos parece que a imoralidade é inseperável dela. É errado, portanto, repreender os escritores por serem imorais, pelo menos sem repreendê-los também por serem escritores, como fizeram alguns corajosos no século dezessete.” Uou. Ok. Para entender para onde ela prossegue agora, é preciso sempre ter em mente que ela está falando de moralidade, ou seja, sobre o bem e o mal. O escritor — poeta, ficcionista, dramaturgo — está atuando necessariamente, queira ou não, naquele campo em que o mal é atraente e o bem, banal. Nada disso é figurativo para Weil. Ela sempre está falando muito sério. Além disso, “aqueles [escritores] que almejam uma moralidade elevada não são menos imorais que todos os outros; são apenas piores escritores.” Essa é a minhas frase favorita do artigo. De fato, a pretensão à beatitude e à lição de moral na escrita, boas intenções à parte, resulta em ficção pobre e não raro sugere uma certa debilidade de caráter, e Weil nos oferece uma chave para compreender por quê.
O que fazer, então, já que a escrita é necessariamente e literalmente imoral? Condenar todos os escritores? A resposta de Weil: “Por que não?” À réplica de que a imoralidade não deve ser tomada como um critério estético, Weil responde que ninguém nunca provou que se deve aplicar unicamente critérios estéticos à literatura e que escritores “não são uma espécie única”, portanto “é impossível que a literatura possa se isentar das categorias do bem e do mal às quais estão subordinadas todas as atividades humanas”.
Nesse ponto, a interpretação de que Weil pudesse estar elogiando a literatura pela sua capacidade de elaborar o mal em um contexto fictício cai por terra. Aqui ela se mostra indiferente a outro argumento do senso comum, que nos diz que investigar e expandir nosso conhecimento sobre o mal através da arte nos ajudaria a reconhecê-lo e mitigá-lo na realidade. Tanto o mal quanto o bem, pelo que podemos depreender da sua obra, estão suficientemente disponíveis na realidade para quem sabe olhar atentamente. Banalizar o mal nunca será benéfico a seus olhos. Ela não dá a mínima para o que você imagina. Só para o que você faz.
Mas há uma exceção: os gênios. Para Weil, o escritor de gênio é aquele que atinge uma maturidade capaz de ir “além da ficção” e de levar o leitor consigo. Neles, o mal é elaborado na ficção de tal forma a reproduzir as contingências de um mundo regido pela necessidade. Embora suas obras sejam escritas com palavras, “a gravidade que governa as almas está ainda assim presente nelas”. Esses escritores “discernem a unidade e a diversidade das formas [da gravidade] na arquitetura do abismo”. Quem seriam esse gênios? Certamente não eu e você. Nem os vencedores do Jabuti desde a criação do prêmio. Nem aquela autora simplesmente incrível que ganhou o Nobel. Tampouco aquela outra que nunca foi reconhecida pelo mercado editorial. Weil cita algumas manifestações do que entende por gênio literário. A Ilíada, é claro. Ésquilo e Sófocles. Algumas — poucas — peças de Shakespeare e comédias de Moliére. E meio que deu. No artigo, pelo menos, é isso. Consigo imaginar que ela pudesse citar mais uma dúzia de obras ou indivíduos, talvez, se fosse forçada (não sei como).
O que resta pros outros escritores, ou seja, praticamente todos que já viveram, vivem e viverão? Isso: “Todos os escritores que não são gênios de primeira ordem possuem como única razão de ser a criação de um espaço no qual gênios poderão um dia surgir.”
As conclusões finais do artigo afirmam que os escritores modernos usurparam dos “padres” a posição de guia moral e espiritual que é de seu direito. A sociedade passou a ouvir os escritores em vez dos sacerdotes, que pelo menos remetem aos santos e a Jesus Cristo para pregar a sua moral, o que lhes dá alguma credibilidade e possibilidade de acerto. Mas os escritores são por definição imorais, “e assim a usurpação espiritual da literatura deu a um anúncio de creme de beleza tanta autoridade aos olhos de uma garota do interior quanto as palavras dos padres. Alguém se supreende que tenhamos decaído até onde estamos?”
Aqui chegamos aos estertores da lógica e da razão e adentramos o espaço meio místico, meio conservador em que Weil desemboca nos seus anos finais. Adoro esse artigo inclusive por isso: a autora segura nossa mão com firmeza no início e lá pelas tantas nos desafia a soltá-la. Mas eu gosto de ir de mãos dadas com ela, mesmo quando a compreensão me escapa ou o meu juízo discorda.
Weil assinou esse texto com um pseudônimo (Emile Novis), e não consigo deixar de suspeitar que há uma sutilíssima zombaria nele. Mas provavelmente não. Ela não costumava dizer nada que não fosse exatamente o que queria dizer. De todo modo, sorrio quando penso nessa figura do escritor que resta ao fim da leitura: esse indivíduo caprichoso condenado a uma imoralidade inconsequente, que só piora a sua situação se procura representar o bem em vez do mal, e que no grande esquema das coisas justificará a sua existência, com imerecida sorte, se adubar o terreno para o florescimento de um improbabilíssimo gênio autêntico.
Moral e literatura é um texto excêntrico e pouco importante na obra de Weil. Para que faça sentido por completo, é preciso crer convictamente não apenas na existência do gênio artístico, mas também na existência objetiva do bem e do mal. Fiquem à vontade. Para mim, à parte o deleite suficiente de acompanhar um raciocínio afiado e espirituoso em ação, o que mais interessa é a sua desqualificação muito particular e convincente da escrita edificante e toda a reflexão sobre as relações entre a necessidade do mundo real e a liberdade da imaginação. Nesse segundo caso, não estou convencido de haver uma oposição tão nítida. Talvez o mundo real e a imaginação sejam governados pela mesma necessidade. Imaginar não é fazer, mas cada um é necessário à sua maneira. E quem sabe o bem — na escrita e na vida — seja a expressão criadora sempre renovada, sempre relativa, da intensidade e da persistência que caracterizam uma vida desejável. A escrita, sob essa perspectiva, pode ser ao mesmo tempo caprichosa e necessária.
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