dentesguardados #26 Vulnerabilidade
26# Vulnerabilidade
Relações estranhas
Acabo de ler Strange Relations, de Ralf Webb, um estudo sobre “masculinidade, sexualidade e arte” centrado na vida e na obra de cinco autores estadunidenses (quatro homens e uma mulher): Walt Whitman, Tennessee Williams, John Cheever, James Baldwin e Carson McCullers. Com a exceção de Whitman, atuaram nas décadas intermediárias do século 20. Em todos esses escritores se encontra um “desalinho queer” com a história social de sua época, e cada um lidou à sua maneira com as dificuldades decorrentes disso. Clamam em seus livros, explicitamente ou nas entrelinhas, pelo reconhecimento e aceitação de uma fluidez sexual que era incompreensível ou rechaçada pela sociedade, por seus leitores e, em diferentes medidas, por eles próprios.
O único autor desses que li bastante é John Cheever, de quem traduzi uma coletânea de contos e alguns trechos dos impactantes diários. Eu seu caso, mostra Webb, a livre expressão e vivência da bissexualidade foi sufocada pela rigidez da masculinidade moderna, que nele produzia a autocobrança de tornar-se e manter-se como provedor e pai de família respeitável, o que só poderia ser levado a cabo por um homem viril e heterossexual. Em seus diários, Cheever registrava uma potência “especificamente queer” (nas palavras de Webb) associada ao mundo natural e fantasiava fazer sexo com homens em lagos, sob a copa das árvores e à beira dos rios. A intimidade entre homens só vai aparecer em sua ficção tardia, e de modo tímido. Webb analisa, entre outras, uma cena do romance Falconer, na qual presidiários se alinham em frente a um urinol coletivo para se masturbar juntos obedecendo a um código complicado de olhares de soslaio e toques furtivos, e aponta nela “um reconhecimento deliberado das acomodações absurdas a que os homens podem chegar para poderem estar fisicamente perto uns dos outros” sem comprometer suas credenciais “masculinas”.
Mas o escritor que parece ilustrar melhor com suas próprias palavras a mensagem mais abrangente do livro é James Baldwin. Webb cita a última entrevista publicada de Baldwin (em 1984), na qual ele investe contra os homens que reforçam o padrão do “machão” típico. Estes homens, afirma Baldwin, “são muito mais complexos do que querem perceber”:
É por isso que [Baldwin] os chama de “infantis”, porque “possuem necessidades que são, para eles, literalmente inexprimíveis”. Uma masculinidade infantil, em que os homens mal são capazes de ter uma comunicação, brota do medo de “todo toque humano, já que todo toque humano pode nos transformar.” Para os homens, permitir-se a transformação através da comunhão e da proximidade com o outro significa abrir mão de controle e poder. Significa arriscar algo; aceitar que a imagem marmórea que têm de si mesmos enquanto homens — dominantes, inexpugnáveis, solitários — pode se despedaçar. O desafio, então, seria construir uma nova noção de si, uma masculinidade mais estranha, a partir dessas ruínas.
Fiquei pensando nesse trecho. Lembrei, inclusive, de algumas coisas que tinha elaborado em uma edição anterior dessa newsletter, quando fiz comentários pessoais a partir da leitura do livro da Lígia Diniz, O homem não existe. Eu acho que entendo o tipo de necessidade “literalmente inexprimível” apontada por Baldwin. Um conjunto de sentimentos muito íntimos que parecem incomunicáveis não por serem demasiado complexos, mas devido ao medo das instabilidades e porosidades afetivas que podem trazer. Costuma ser um erro universalizar sem ressalvas elementos subjetivos da identidade, mas as frases de efeito resultantes podem ser irresistíveis, então arrisco: a maldição de todo homem é o medo de parecer vulnerável. Toda uma região das emoções e da percepção do outro é encoberta em sombras por esse terror específico. É por causa dele, e não devido a um suposto instinto maternal, que tantas mulheres chamam tantos homens adultos de crianças.
Ao mesmo tempo, depois de ler o livro de Webb e considerar discussões assemelhadas a respeito do que homens ou mulheres são ou não são, penso no problema de apagar as nuances individuais ou culpar o indivíduo quando se discutem as tendências ou práticas da coletividade. Para muitos homens, a vontade de dominância, de supremacia, é não somente indesejável como também incompreensível. Posso falar por mim, mas vivi e aprendi o bastante pra saber que não estou sozinho. Inexpugnável, solitário: ok. Todo um espectro de desejos e fantasias que reconheço e assumo. Dominante? O mau gosto, a obscenidade de sequer imaginar impor algo a alguém. Todo um reino de fantasias masculinas de subserviência e tolerância é riscado do mapa quando se presume o machão típico como denominador comum para fins de argumentação. O falocentrismo, para muitos homens, também soa uma espécie de loucura infantil, uma fonte permanente de inseguranças e humilhações. Um pênis é um órgão estranho de se possuir quando se deseja acima de tudo consentir e agradar.
Masculinidades estranhas já rondam o mundo. Sempre rondaram. O horror atávico ou socialmente construído da vulnerabilidade constrange sua livre expressão, e a vida de mais sujeição e de menos poder com que sonham se perde no horizonte. Se alguém golpear um desses homens esperando destruir seu mármore para que se reconstrua, sentirá que bate em algo mole. Ouvirá um gemido ambíguo. O que ele quer? Com alguma sorte brotará daí uma conversa franca. No meio da nossa guerra de intimidação total entre seres desejantes, talvez alguém exponha seus medos. Talvez alguém fique excitado.
O medo da vulnerabilidade, apesar de tão presente, não é primitivo e não é um destino. Como tudo, é um hábito (não há nada no mundo que visto com clareza suficiente não se revele uma espécie de hábito). Hábitos podem ser modificados. Ou reforçados. Nossa disposição e capacidade de dissolver esse medo, presumindo a especificidade dos indivíduos e a comunhão transformadora do toque humano, como quer Baldwin, pesam muito para que possa prevalecer o primeiro caso.
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Velho Branco

Em algum momento da virada ou do início do milênio, não lembro bem a data, fiquei algumas noites no quarto gravando músicas que tinha composto no violão de nylon e guitarra. Gravei com os recursos mais toscos possíveis, um daqueles microfones Genius em forma de palito, cordas velhas, batucadas nas coxas, ruídos incidentais, um programa de edição de som muito simples e pirateado. Eu me inspirava em bandas de pós-rock, Mogwai, The Microphones, e em artistas lo-fi encontrados no site mp3.com. Guardei até hoje os arquivos em mp3 e agora resolvi botar essas faixas do projeto musical Velho Branco no Bandcamp, reunidas no EP Braço sem palmar. É um artefato de uma vida passada, uma curiosidade preservada de uma certa curva do meu caminho e de uma etapa embrionária das ferramentas digitais para editar e compartilhar som, mas ainda adoro ouvir essas musiquinhas e um dia gostaria de fazer algo parecido de novo. Elas me transportam para uma região remota da memória e dos sentidos, uma espécie de refúgio. Espero que ofereça momentos de gratificação a ouvidos receptivos.
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Escritores desesperados
A escritora Rachel Rose leu e gostou de Barba ensopada de sangue e publicou uma entrevista comigo em sua excelente newsletter “Desperate Writer” (em inglês). Falamos sobre meu início de carreira, sobre a escrita do romance e sobre dicas para “escritores desperados” (cof cof).
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Notinha do autor
Saí de todas as redes sociais e é improvável que eu retorne, exceto por alguma necessidade profissional imperativa que agora não está no horizonte. Todo esse lado da internet meio que morreu em definitivo pra mim, depois de anos de crescente fadiga e masoquismo. Felizmente, é só um lado da internet, por mais que hoje em dia se passe pela internet toda. Continua bem fácil me achar e me contatar: uma busca simples, um email. E trocar ideias e experiências pela internet segue sendo um dos grandes privilégios que couberam à humanidade desde o crepúsculo do segundo milênio. Sigo na batalha do livro novo, da escrita de aluguel, da escrita necessária. E sigo fazendo leituras críticas com satisfação e dedicação cada vez maiores. Obrigado de novo, e sempre, a cada um dos assinantes dessas esporádicas missivas.
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ⓒ Daniel Galera