dentesguardados #25 Voltas
#25 Piscinas e CDs
No início de setembro do ano passado, voltei a nadar depois de oito anos longe das piscinas. Eu nadava sem parar desde os catorze anos, mas em 2016 tive uma lesão no ombro, provavelmente por causa de outros exercícios equivocados que vinha fazendo na academia, ou porque tive que me segurar na barra do teto dentro de um ônibus lotado fazendo curvas a 100km/h no Rio de Janeiro enquanto segurava a Taís pela cintura com o outro braço porque ela não tinha onde se segurar, mas enfim, fodi o meu ombro por algum motivo que não era a natação e o diagnóstico do especialista foi “capsulite” e o tratamento foi “esperar sem mexer o ombro por cerca de 18 meses até melhorar”. Fiquei uns dois anos sentindo dor aguda ao erguer o braço, até que de fato passou. A essa altura eu já estava envolvido com outras atividades físicas, como treino funcional e embalar minha filha recém-nascida em um bebê conforto com a intensidade de um barco pirata de parque de diversões descontrolado no meio da madrugada, e fiquei sem tempo e sem dinheiro, e o retorno à piscina foi sendo adiado até que a natação se tornou uma recordação do passado, uma prática que tinha moldado a mente, o corpo e a identidade de um Daniel que tinha ficado para trás. Essa transição do “eu nado” para o “eu nadava” se deu por incrementos discretos. Quando aconteceu era tarde demais, ou assim me pareceu por anos.
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Vocês tinham que me ver retornando à piscina. Era cedo, fazia frio, o sol brilhava lá fora fazendo faiscar a água encrespada pelo nado de alguns outros frequentadores do clube. Hesitei um pouco na hora de me alongar, porque depois de oito anos me dedicando ao treinamento funcional os alongamentos que eu fazia antigamente me pareceram ingênuos, como hábitos alimentares da década de 1990. Entrei logo na água, estava quente demais pro meu gosto. Encaixei a touca e os óculos, lembrei de não esperar muito de mim mesmo, afinal, eram oito anos.
Mergulhei, dei impulso na borda com as mãos unidas em seta, o pescoço baixo, as escápulas ativadas, o abdome contraído. Senti a água deslizando como devia por mim, uma percepção hidrodinâmica aprendida ao longo de milhares de horas distribuídas em décadas de nado em piscinas e mergulhos no mar, mas também com um pouco de um saber oculto com o qual desde criança eu sentia ter nascido.
Uma vez eu nadei na mesma raia que um triatleta medalhista mundial, um francês que tinha participado da equipe olímpica de natação do seu país e estava dando lições a uma turma com a qual eu nadava em Garopaba, e teve uma hora em que paramos para descansar ao mesmo tempo na borda ele se virou pra mim e sugeriu que eu abrisse um pouco mais minhas braçadas e em seguida me disse, com um olhar intenso, que eu era “uma pessoa muito aquática”. Assim que ele saiu de perto os outros tiraram sarro dizendo que ele queria me comer, mas tive certeza de que ele havia observado algo real e estava sendo apenas objetivo: eu sou mesmo muito aquático. Nunca fui um atleta competitivo, talvez nunca chegasse a ser mesmo que me dedicasse, mas eu e a água nos entendemos. Não preciso competir para saber disso: sei quando sento no fundo da piscina, quando pego um jacaré, quando acho meu ritmo na raia e me esqueço.
Naquele dia no começo de setembro, minhas primeiras braçadas depois de oito anos me pareceram alongadas, eficientes, elegantes. Imperfeitas de um modo desejável. Cansei menos do que temia. Quando saí da piscina uns 45 minutos depois, era como estar dentro do lar após uma faxina e arrumação. Nenhum lampejo específico, nenhuma epifania, nenhuma ideia definitiva para um novo romance, eu era o mesmo de antes, mas esse eu prescindia de tanta racionalização. Este é o lado mental da sensação de flutuação que sucede o nado, e que tem sua correspondência física naquela moleza prazerosa que quase todo mundo já conheceu algum dia.
Três semanas depois eu já estava nadando no mesmo ritmo que tinha antes de parar, a mesma distância, o mesmo tempo nas séries. Meses depois, quando assisti ao filme Nyad, a história real sobre a nadadora que cruzou o oceano de Cuba a Key West aos 64 anos, tive de segurar lágrimas, mas não no final catártico e sim no começo, quando ela retorna à piscina depois de trinta anos parada. O filme mostra ela chegando no clube, espiando um jovem nadador bombado que entra na raia ao lado, aí ela põe a touca, murmura consigo mesma "só uma nadadinha", como se aquilo fosse só um capricho, uma coisa à toa, mergulha em pé na água clorada e sai dando braçadas tranquilas. Primeiro só ouvimos o barulho da água e a respiração, ela pega ritmo e aí começa a tocar dentro da cabeça The sound of silence. É sacanagem. "It all came back", ela explica à amiga mais tarde. Volta tudo mesmo.
Volta, mas um mesmo nadador não entra na água duas vezes, é claro: agora, todas as quartas de manhã vou à piscina com a Sara, que aos sete anos está fazendo suas primeiras aulas de natação. Ela aprende com entusiasmo enquanto na raia livre ao lado, a poucos metros dela, eu me reencontro de novo e de novo. Entre uma série e outra observo seus exercícios e risadas, ela percebe que estou olhando e me mostra o que agora consegue fazer. Olha pai! Olha! Vivemos juntos o microcosmo do vestiário, do cheiro de cloro e do gosto de sal, e esperamos juntos o momento em que, já banhados e vestidos, vai bater aquela sensação boa que sempre vem depois.
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Esse texto está sendo improvisado. Eu não tinha nenhum assunto prévio e, na verdade, estou escrevendo displiscentemente de uma mesa farelenta na praça de alimentação do Shopping Total enquanto minha filha brinca na colônia de férias da escola de artes circenses que frequenta no período letivo. Voltar a nadar foi talvez o mais importante acontecimento dentro de um contexto de tentativa de reorganização da minha vida, e a decisão algo súbita de escrever uma newsletter depois de meses de quietude me levou automaticamente a esse assunto. Enquanto escrevia os parágrafos acima, ia entendendo aos poucos a sua relação com temas mais amplos.
Ano passado aluguei uma sala para trabalhar, depois de entender — inclusive com breve auxílio de terapia — que a sobreposição de casa e trabalho, tão natural em toda minha vida, já não era viável ou desejável, e que o espaço e o tempo da escrita consistiam no cerne das minhas ansiedades. Entre traduções, leituras críticas e outros trampos, consegui recuperar alguma estabilidade laboral, resolvendo metade do meu problema; a outra metade é a escrita de ficção, para a qual renovo as esperanças no ano que inicia, certamente em condições inaugurais muito melhores do que no ano anterior.
O envio mensal dessa newsletter durante parte de 2024 era também peça estratética de uma busca por consistência produtiva. Como vocês que assinam há algum tempo sabem, funcionou por uns meses e depois parou de funcionar. As contribuições espontâneas que pedi e recebi fizeram uma diferença enorme, ainda que forças opositoras diversas tenham eventualmente quebrado de novo o meu ritmo. Desde a edição anterior, acho que não escrevi nada. E acho que nunca passei tanto tempo sem escrever nada. Mas também percebo que estou ficando mais tranquilo com essa situação. Tranquilo a ponto de sentar aqui hoje com um top sundae e um café do McDonalds ao lado do notebook e sair digitando o que vem à cabeça sem planejar muito.
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Ano passado, percebi que os anos 1990 estavam um pouco na moda. Eram as camisetas do Guns n’ Roses e do Nirvana que os alunos do ensino médio usavam na escola da minha filha, o reaparecimento das Cybershots, toda uma estética normcore reaflorando. É um sentimento previsível e infantil, esse prazer na posterior revalidação da cultura que integramos e ajudamos a construir quando éramos jovens, e existe um risco grande de cair no ridículo ao tentar reivindicar autenticidade diante das novas gerações.
Ao mesmo tempo, aos 45 anos, a entropia começa a se fazer sentir de maneiras incontornáveis. O corpo inicia, inapelavelmente, sua viagem de volta, e ainda que eu me sinta mais em forma hoje do que na maior parte da minha vida pregressa, o cansaço e as transformações na aparência são uma presença constante na textura dos dias. Estou adiando há meses a obtenção do meu primeiro par de óculos de leitura, e agora mesmo as letras na tela estão um pouco nubladas, exigindo afastamento dos olhos e um esforço ativo da visão. A mémoria começa a vacilar, as ideias e estéticas novas nunca soam convincentes o bastante à primeria vista, e começa a ser necessária uma disciplina especial para se manter poroso e vulnerável à incessante produção de novidade.
Mas pode ser proveitoso revisitar certas práticas e experiências que compuseram a pessoa que nos tornamos. Em algum momento do ano anterior, tirei do armário o velho minisystem Sony que eu havia comprado em 2006, em São Paulo, com o meu primeiro depósito de direitos autorais da vida (eram 800 reais, lembro). Tinha caixas acústicas de madeira, toca-fitas e um prato para 3 CDs. Ainda guardamos aqui em casa uma CDteca com cerca de 250 discos, adquiridos e selecionados ao longo de décadas de nossas vidas. Depois de vários anos entregue à audição em aplicativos de streaming, com as benesses e desvantagens do excesso de oferta em sacrifício da qualidade sonora, foi um prazer gigante escolher CDs e os colocar para tocar, um a um, do começo ao fim, naquele velho rádio que me acompanhou por anos incríveis da minha vida.
Durou pouco. O Sony guerreiro queimou de vez no fim do ano passado. Tentei consertar, mas os técnicos decretaram que as peças já não podiam ser encontradas. Nos últimos dias do ano, resolvi que eu merecia me dar de presente um novo som com CD player. O aparelho, de alta fidelidade, chegou na véspera de viajarmos a São Paulo para o réveillon, e já naquela noite ficamos ouvindo música em família, testando o som com músicas favoritas. Em São Paulo, comprei um CD do Leonard Cohen pra mim e pra Taís e um do David Bowie pra Sara. Agora todo dia escutamos alguma coisa: Karen Dalton, Mount Eerie, Arab Strap, Kid Abelha, meus EPs do Radiohead, o Led Zeppelin e o blues antigo que eu ouvia tanto na adolescência. A qualidade maior do som dá um tom hiper-real à música e as lembranças e emoções associadas com cada disco, com cada faixa, se recriam no presente. A música deixa de ser fundo para outra coisa, ela nos convida a ser ouvida como um fim em si.
Assim como no caso da natação, não é que ouvir os CDs me faça reviver o que já foi vivido ou voltar a ser quem eu era antes: a vivência carrega uma herança, mas é nova e atual. Ao invés de se cristalizar ainda mais, o self relaxa, pois é a transiência de tudo que é evocada, não a permanência. Isso é nostalgia? Não estou certo. Pois não se trata de um desejo de voltar ao passado, mas sim de trazer o passado ao presente, ou de apenas prestar atenção de novo a alguma coisa que já nos foi valiosa e perceber que ela não foi a lugar algum. Não existe, portanto, a melancolia ou ênfase na perda que normalmente se associa à nostalgia, e sim um ânimo renovado, uma disposição que não reduz, e sim amplia, a capacidade de seguir vulnerável ao presente.
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Sexta passada, resolvi baixar de um site no GeoCities os arquivos de áudio do álbum Diamond Jubilee, de Cindy Lee. Lançado em 2024, o álbum duplo está disponível somente para download no antiquado formato WAV (sem compressão, com mais qualidade e bem mais espaçoso que MP3) ou para audição no YouTube em um vídeo de 2hs de duração sem divisão de faixas. Eu tinha ouvido falar desse álbum no meio do ano passado, mas naquele momento não achei graça e não me dei ao trabalho de procurar no Soulseek para escutá-lo fora da zona de conforto do streaming. Apenas no fim do ano, quando ele foi eleito o melhor album de 2024 pelo Pitchfork e ficou disponível ilegalmente nas grandes plataformas de streaming por dois ou três dias antes da artista intervir, ouvi e fiquei encantado. São canções que soam ao mesmo tempo novas e antigas, mas de alguma maneira não existe sinal daquela sonoridade plástica de filtro nostálgico que se encontra em tanta música da era digital.
Quando entendi melhor o projeto do álbum, resolvi fazer o que Cindy Lee provavelmente esperava que seus ouvintes fizessem. Sexta passada, coloquei os 2GB de arquivos WAV em um pen drive e fui a uma loja de informática do bairro. Os caras tinham um PC com gravador de CD-R e vendiam os discos virgens, mas o leitor de CD não estava sendo reconhecido pelo Windows da máquina. O atendente pareceu inicialmente perplexo com meu pedido, mas depois entusiasmado: ele era, afinal, um nerd, e mesmo sendo muito mais jovem que eu parecia entender o que eu procurava, o impulso por trás da coisa. Prometeu resolver durante o fim de semana. E hoje de manhã ele me chamou no Whatsapp dizendo que tinha conseguido gravar os discos de áudio com o Nero.
Quando fui coletá-los e pagar o serviço, o rapaz estava radiante. Tinha feito algo tão simples, que todos nós fazíamos rotineiramente não muito tempo atrás: queimar um CD. Mas uma alegria genuína nos unia. Trouxe para casa os dois discos e escutamos em família, na sala de casa, enquanto o almoço era preparado, e seguimos ouvindo durante o almoço. Deitada no sofá com seu livro, a Taís comentava como o disco era bom. “Pai, não desliga o rádio enquanto a gente come”, me pediu a Sara quando os pratos foram servidos. Claro que não, falei. Só baixei um pouco o volume.
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E aqui eu ia encerrar, formatar o texto e enviar pra vocês. Mas hesito. Era só isso mesmo? Um sentimento se esgueira: a culpa de escrever algo focado unicamente no particular. Enquanto falava da natação e dos meus CDs, checava eventualmente o celular e lá estavam o incêndio em Los Angeles, as confirmações de que 2024 foi 1,5 grau centígrado mais quente que a média pré-industrial, a genuflexão salivante dos bilionários da indústria tech diante do imperialismo teocrático, as propagandas das bets e os governos que nada aprenderam com as enchentes de maio. Em uma enquete do The New York Times a respeito das expectivas para 2025, no meio de várias declarações de CEOs saudando os delírios da indústria da IA, o escritor Colson Whitehead ofereceu um contraponto: “Não tenho esperanças para 2025. A humanidade é decepcionante. Matamos o planeta Terra. Vilões triunfam e inocentes sofrem. Imagino que essas tendências seguirão.”
Uma boa parte do meu tempo de leitura ano passado foi dedicado a ler Simone Weil e a reler George Bataille e Albert Camus. Os dois primeiros terminaram a vida incrédulos quanto à capacidade da humanidade de efetivamente contrariar as forças que geram guerras e opressão, buscando saída numa entrega a noções do sagrado que eram tão intensas quanto distintas. Weil apostou tudo no auto-sacrifício enquanto ativador social de forças de bondade e pureza que, se não mudariam o rumo da civilização, pelo menos colocariam o indivíduo em rota de encontro com Deus e com a redução possível do sofrimento pela via do amor radical ao próximo. Bataille apostou numa performance de auto-suplício performático através da escrita. Em reclusão após a Segunda Guerra, escreveu [em A experiência interior] que a Terra, ao parir o ser humano, tinha dado à luz seu assassino. Diante disso, pouco restaria a não ser expressar nossa condição da forma mais dilacerante possível. Camus também era um pessimista: achava improvável que o ser humano tivesse em si o discernimento e convicção necessários para superar a lógica dos senhores e escravos. Mas não era um místico como os outros dois. Em O homem revoltado, aponta o caminho da contenção estoica como maneira de preservar o âmago de revolta existencial sem o qual não pode haver justiça digna do nome. “Eu me revolto, logo existimos.”
A força das ideias poderá nos salvar? Quem sou eu para dizer. Mas abrir mão dessa crença, ainda que diluída nas demandas com frequência esmagadoras da vida contemporânea, seria uma espécie de suicídio em vida. Ainda ontem um pedinte interrompeu meu café da manhã numa padaria para me pedir um pão com manteiga. Eu o ignorei primeiro e depois o repeli. Porque estou preocupado demais com minha própria vida, porque cresci ouvindo no rádio que uma pessoa nessa situação é seguramente um vagabundo, porque ele representava acima de tudo, naquele momento, uma distração da tela do meu celular. Mas logo lembrei de Simone Weil. (Ela e Camus têm surgido com frequência nos meus ombros como grilos falantes.) Lembrei de seu clamor pela prática de uma atenção genuína, não aquela que foca nos objetos e busca solucionar problemas, e sim aquela que nos esvazia, nos coloca em um modo de espera no qual nos dispomos a ser penetrados pelos objetos, pelos outros seres humanos. Parei de olhar o celular e de pensar no que estava pensando. Para nós, que não somos santos em vida, resta o quanto pudermos aprender de conhecimento e disciplina. Então fiz o que era óbvio, o que em todos os lugares e tempos, até mesmo o fim dos tempos, não deveria requerer considerações de outra ordem.
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Seção de links
- http://cliqueemmim.com.br
- https://www.pastemagazine.com/games/s-t-a-l-k-e-r-2/stalker-2-heart-of-chornobyl-review
- https://berkeleyearth.org/global-temperature-report-for-2024
- https://www.universetoday.com/169993/advanced-civilizations-could-be-indistinguishable-from-nature/
- https://revistazum.com.br/entrevistas/o-oposto-de-atirar
- https://www.ufrgs.br/carbono/2024/12/08/entrevista-com-anna-kornbluh/
- https://vimeo.com/296333963
- https://fucktheory.tumblr.com/post/770595945673113600/not-wisdom-darling-instincts
- https://antropogamer.com.br
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