dentesguardados #24 Armadilhas
#24 Armadilhas ridículas
“É talvez isso que a gente procura pela vida afora, só isso, a maior tristeza possível para nos tornarmos nós mesmos antes de morrer.” Quando diz isso em Viagem ao fim da noite, de Luis-Ferdinand Céline, Ferdinand Bardamu está indo embora de Detroit, voltando para a França e abandonando, sem razão aparente, a namorada Molly, uma prostituta que o trata com uma doçura e compreensão desconcertantes.
Ele podia ser feliz, nos parece, pela primeira vez na vida, depois de ter testemunhado atrocidades sem fim no campo de batalha e nas colônias francesas. Precisa partir mesmo assim. Por quê? Ele não sabe direito, nem Molly. Mas os dois parecem estar jogando um jogo de cartas marcadas, apenas cumprindo uma fatalidade. Ferdinand promete que vai voltar depois de concluir os estudos, mas Molly não cai nessa. “Não, Ferdinand, você não voltará mais… E eu também não vou estar aqui.” O trem chega na plataforma. “Você já está longe, Ferdinand. Está fazendo exatamente o que tem mesmo vontade de fazer, não está, Ferdinand? E isso que é importante… É só isso que conta…” Ele hesita um pouco: “Eu já não estava muito seguro da minha aventura quando vi a máquina.” Mas embarca. “Para deixá-la precisei de muita loucura, e de um tipo frio e abjeto”, diz consigo mesmo nosso herói.
Essa cena me marcou para sempre. Não lembro o ano em que li o romance, mas eu tinha no máximo vinte anos. Ferdinand passará o resto da vida lembrando desse momento, amando Molly para sempre. Mas não exatamente com arrependimento. Havia essa necessidade imperiosa de não ficar onde estava, mesmo que essa fosse sua única oportunidade de ser feliz. De novo: por quê? Por que esse atrito exasperante entre um contentamento que está ao alcance e uma deriva rumo ao fim da noite, à solidão triste que aponta para o desespero incerto? Por que o primeiro representa um acomodamento intolerável, e a segunda um desdobramento desejável da vida, quando poderia muito bem ser o contrário?
O jovem leitor que eu era via nessa cena uma validação confortante da tristeza. Não que eu fosse essencialmente triste ou amasse a tristeza. Até o contrário. Eu sentia que havia em mim um núcleo resistente de solidez e contentamento, uma fundação que me dava segurança para agir como se as tristezas pudessem ser o caminho para que eu “me tornasse eu mesmo”. Há em Ferdinand, apesar de tudo, uma determinação que nos faz supor uma solidez de caráter baseada na auto-estima. Do contrário, sua jornada o aniquilaria. Mas ele sistematicamente sobrevive, impõe seu ímpeto e sua ira aos horrores e incertezas. Dessa fortaleza secreta de satisfação, que cultua a tristeza caótica como algo sagrado, ele pode se dar ao luxo de falar da vida desse jeito, de abandonar Molly em Detroit. Nesse núcleo residia uma virilidade desejável, que eu queria para mim e acreditava talvez possuir em algum grau, certamente inferior ao de Ferdinand. Minhas eventuais aventuras eram prosaicas ou mesmo ridículas diante da sua viagem impressionante, mas em algum nível nos entendíamos.
Hoje, uns vinte e cinco anos depois, sou diferente. Ao mesmo tempo em que tenho uma vida repleta de felicidades ligadas às pessoas que amo e a realizações das quais me orgulho, já não confio naquele núcleo resistente de solidez e contentamento. Na verdade, percebo claramente que ele se desmanchou. A gangorra não virou, mas revelou seu desequilíbrio fundamental, em tudo que tem de ilusório e transiente. O culto à tristeza de Bardamu, entendo hoje, é um desvario. O fatalismo romântico não me atrai mais, muito menos o desespero como fonte de conhecimento (não digo que não possa sê-lo; pode ou não pode; só não vejo mais sentido em buscá-lo ou glorificá-lo). Há muitas fontes de conhecimento merecedoras de consideração, incluindo a alegria, a acomodação e o cultivo da imperturbabilidade. Estou menos preocupado em me tornar eu mesmo e mais preocupado com o que faço. A cena de Viagem ao fim da noite segue impressionante para mim, carregada de uma verdade existencial sobre a qual vale a pena ponderar. Mas a releio hoje de outro ponto de vista.
Voltei a ler e a pensar sobre a cena quando li O homem não existe, de Lígia Gonçalvez Diniz. Com o subtítulo “Masculinidade, Desejo, Ficção”, o livro é um ensaio literário em que a autora reflete sobre uma trajetória de leituras profundamente marcada por obras escritas por homens. O título é uma brincadeira em cima da famosa declaração de Jacques Lacan de que “a mulher não existe”, com ênfase no artigo, significando que não há única forma de gozo — como o fálico no caso dos homens — que a defina (não sei nada sobre Lacan, estou parafraseando um pedacinho da explicação que consta no livro, e Lígia enfatiza como a coisa toda é polêmica e inconclusiva). A tirada se mistura, no senso comum, à pergunta “O que querem as mulheres?”, que sempre traz subentendida a noção de que os homens sabem o que querem, que todos nós, homens e mulheres, sabemos o que são. Lígia inverte a premissa, não só para investigar com doses iguais de seriedade e humor o que querem/são os homens, mas também para pensar sobre como certos valores e conceitos de masculinidade e virilidade presentes em obras literárias que foram importantes na sua formação dialogam com sua própria experiência pessoal.
O livro é saboroso de ler e vem sendo merecidamente incensado e discutido, e não pretendo aqui fazer uma resenha de seus vários méritos em termos de crítica literária. Lígia se propõe “observar a masculinidade com olhos generosos”, admitindo que autor e obra não podem ser totalmente separados, mas pregando que livros meramente machistas e escritores meramente babacas diferem de uma ficção marcada por uma “abertura para o outro” e por uma excelência poética e formal que estabelecem diálogos ricos, produtivos, muitas vezes incômodos mas também pontencialmente divertidos, entre modos de existência. “Eu banco meus amores proibidos”, ela nos diz na apresentação, se referindo a autores notoriamente machistas cujos livros pode admirar, “mas também me dou o direito de rir dos homens de vez em quando. Gosto de pensar, porém, que estou rindo com eles: qualquer um com quem valha a pena conversar há de ter a clareza de que o mundo masculino cria armadilhas ridículas para todos nós.” Me senti rindo e conversando com Lígia durante minha leitura de O homem não existe, e sou grato a ela pela oportunidade.
Aprendi muita coisa lendo o livro, mas especialmente surpreendentes para mim foram as várias coincidências na trajetória de leituras importantes na vida de Lígia e na minha. Isso vai muito além da mera anedota, no sentido de que as reflexões da autora a respeito de obras e passagens que também me marcaram como leitor me levaram a repensar profundamente, em muitos casos, minha própria relação com essas obras e passagens. A cena de despedida de Molly em Viagem ao fim da noite foi uma delas, e o resultado está nos parágrafos acima.
Situada numa seção do livro chamada “Feios, tristes e cruéis”, a reflexão de Lígia sobre o romance de Céline se detém nesse apego ao próprio desespero, covardia ou feiura que em muitos livros escritos por homens se traduz numa instável noção de virilidade. Ela estranha que esses traços sejam elaborados ao longo da história literária como sinalizadores de virtude, e eu agora estranho também. Isso é algo que o livro provocou várias vezes em mim: de repente, tenho perguntas — e é libertador tê-las. E não raro, Lígia esboça conclusões que poderiam ser minhas. “Uma parte de mim ainda acredita sinceramente nisso de a tristeza nos tornar quem verdadeiramente somos”, ela diz sobre Céline. “Outra parte de mim, no entanto, aprendeu nos últimos vinte anos a apostar na alegria.” Pensei em fazer uma camiseta.
Albert Camus, Herman Melville, A idade viril de Michel Leiris, Virginie Despentes, a Ilíada e a Odisseia, Tindersticks, a canção “If you see her say hello” de Bob Dylan: estas e muitas outras referência do livro tocaram em passagens marcantes da minha própria formação. Mas as considerações de Lígia sobre um autor em especial talvez tenham destravado em mim algumas percepções que estavam latentes havia muito tempo.
Philip Roth foi um autor importantíssimo na minha formação, desde que li O professor de desejo na adolescência. É um dos primeiros escritores que Lígia analisa em seu livro, e o faz sob a ótica do falocentrismo: é notório que a maioria dos protagonistas de Roth, sobretudo os (semi)autobiográficos como Nathan Zuckerman, se entregam a intermináveis embates psicossexuais com amantes, esposas e sobretudo as esposas dos outros. Lígia faz uma leitura detalhada do romance O avesso da vida, à luz das teorias de Freud devidamente revisadas na contemporaneidade, para mostrar como em Roth a potência sexual exibida visualmente pelo pau duro é um índice também da energia criativa em especial e da energia vital no geral. A impotência sexual do homem, em Roth, é sinônimo de impotência em todos os campos da vida. Lígia inveja a simplicidade quase mecânica desse esquema, e se pergunta com bom humor como ela, que não tem um pau, poderia justificar seus eventuais episódios de desânimo intelectual.
Mas Lígia não cansa de enfatizar como essa temática, em todo seu potencial enfadonho e autocentrado, se torna envolvente em Roth devido à grande engenhosidade narrativa e apuro estético de seus romances. Os estertores falocêntricos de seus protagonistas se desenrolam em camadas sobrepostas de diferentes narradores e pontos de vista, gerando revelações e tensões surpreendentes, que injetam curto-circuitos e ironia nas histórias. Em O avesso da vida, Zuckerman, um alter-ego de Roth, finge estar contando a história da impotência sexual do irmão após um procedimento médico, mas aos poucos é revelado que ele mesmo, o desabusado e criativo Zuckerman, está impotente, e que a vida banal do irmão se torna o repositório ficcional dessa impotência; ou algo assim. Leiam o livro, ou leiam a Lígia que explica muito melhor. De todo modo, são ficções dentro de ficções, entremeadas de autobiografia, mas de maneira a fazer emergir uma complexidade humana que eleva o tema ao oposto das caricaturas usuais.
O avesso da vida não foi um livro que me marcou especialmente, talvez porque li a série de romances de Zuckerman de trás pra frente, começando por Fantasma sai de cena, de 2007. Neste livro, Zuckerman está idoso e mora há onze anos em um retiro campestre. Forçado a retornar a Nova York para fazer exames devido à incontinência urinária, ele responde a um anúncio de um jovem casal de escritores que deseja trocar seu apartamento em Manhattan por uma casa no campo, e é claro, Zuckerman se apaixona pela moça, Amie. O tumulto das paixões o envolve novamente, mas nenhum pau fica duro, pois ele está impotente e usa fraldas. A solução que encontra para dar vazão à libido é escrever uma série de diálogos intitulados “Ele e ela”. “As conversas que não tive com ela me emocionam mais do que as conversas que tivemos de fato”, diz Zuckerman. É apenas na ficção que ele confessa já tê-la visto dez anos antes num almoço, que fala do “prazer devastador” que sente em sua presença.
Eu adoro esse livro, acho um dos melhores de Roth. Não tanto por causa das suas obsessões usuais em torno da (im)potência, velhice, política e judaísmo, mas devido ao olhar que dedica à própria amplificação da vida por meio da ficção. Há algo nesse velho personagem deleitando a si mesmo através de diálogos escritos secretamente num quarto de hotel que me tocou quando li pela primeira vez, e que me toca até hoje. Há esse parágrafo:
Mas o quociente de dor que a gente sofre já não é chocante o bastante para não precisar de uma amplificação ficcional, que dê às coisas uma intensidade que é efêmera na vida e que por vezes chega a passar despercebida? Não para algumas pessoas. Para umas poucas, muito poucas, essa amplificação, que brota do nada, insegura, constitui a única confirmação, e a vida não vivida, especulada, traçada no papel impresso, é a vida cujo significado acaba sendo mais importante.
Quando li isso em 2007, me pareceu ser a chave para ler toda a ficção de Philip Roth, mas também a chave para entender o que eu fazia, por que tinha procurado a ficção, por que seguia apostando nela, ou precisando dela. E tenho a mesma impressão hoje.
O que mudou com o passar dos anos, e que vejo com clareza agora, depois de ter lido o livro da Ligia, é como eu gostava de ler Roth não por causa de seus temas e obsessões, o judaísmo, a política americana, a punheta e o pau e a associação inclemente entre potência sexual e a intensidade da própria vida; o que me fisgava para valer em seus livros era a elaboração dos motivos que temos para escrever ficção em primeiro lugar, essa “amplificação que brota do nada”. A estrutura narrativa de seus livros é sempre um comentário sobre esse obscuro mecanismo.
Lendo O homem não existe, me dei conta de como eu apreciava a literatura de Roth apesar dos seus temas. Porque a verdade é que nunca me conectei com esse falocentrismo. Ter um pau, por boa parte do tempo, era para mim uma experiência dúbia, de mais inseguranças do que ímpetos e potências. No entanto, eu ainda era membro de um clube. Se eu não gostava do viés falocêntrico em Roth ou no mundo como um todo, certamente deveria haver um problema comigo, algo que eu precisava trabalhar. Devia ser desejável querer ser mais parecido com Roth. E eu me convencia de que gostava de seus livros também por causa disso.
Isso não é mais necessário. Nesse caso, fui presa de uma daquelas “armadilhas ridículas” que o mundo masculino cria para todos nós, nas palavras de Lígia. E também me entendo melhor: a potência, para mim, sempre esteve mais em Bardamu do que em Zuckerman. A dureza que me impelia à criatividade não era a visível e fálica, era a daquele núcleo de autoafirmação viril perante a tristeza, uma perspectiva que me permitia viver a tristeza como um observador e cultuá-la como um veículo temporário em direção à verdade.
Em certa passagem, Lígia cita meu romance Barba ensopada de sangue. O nome do capítulo é “Que cara é essa?”, a primeira fala que se lê no livro. Ela comenta a cena em que o protagonista, que não lembra do próprio rosto devido ao distúrbio causado pela prosopagnosia, se olha no espelho e se compara à foto do avô. O capítulo trata de autoimagem e narcisismo. Mas Lígia também relata uma anedota da vida real: quando tínhamos vinte e poucos anos, ela me avistou em um bar em São Paulo (era a Mercearia). Ela escreve: “Eu achava que ele fazia aquele tipo de escritor clichê, meio sorumbático e atormentado (provavelmente era só tímido)”.
Um amigo que leu o livro antes de mim me mandou um print dessa página com o comentário “Sinto muito, amigo”. Mas eu não me incomodei. Na verdade, achei bacana o que está ali, ainda que num primeiro momento os comentários a meu respeito me constranjam um pouco. Mas também alisam minha vaidade, e me transportam a um outro tempo da minha vida, nos quais eu me expunha a certas situações e via as coisas de maneiras que já não fazem sentido no presente. Fora minhas tendências inatas, fui também muito moldado pela ideologia do valor intrínseco da melancolia que eu procurava e encontrava na ficção. Hoje, a poucos dias dos 45, marido e pai, é possível entender e, até certo ponto, transcender alguns comportamentos que o mundo masculino afirma terem valor em si (ou optar por cultivá-los ou deixá-los quietos). Quando eu era mais jovem, não me era possível, talvez nem desejável. Assim é a parábola de uma vida humana. Se a vida tem uma teleologia, é abrir a cabeça. Acredito poder dizer, pelo menos a mim mesmo, que fiz e ainda tento fazer isso. E à Lígia, além do livro, agradeço por ter cravado o diagnóstico: sim, era acima de tudo timidez.
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A edição dessa semana atrasou um dia, mas veio. Na edição de julho da revista Quatro Cinco Um saiu um artigo meu a respeito das enchentes sul-riograndenses de maio, um relato pessoal cercado de algumas considerações sobre os desafios de expressar em palavras catástrofes dessa dimensão e de vislumbrar caminhos para agir. E volto a lembrar que essa humilde newsletter gratuita sorri ao receber apoios espontâneos de seus leitores e leitoras. Maneiras de fazer isso estão ali no rodapé. Obrigado aos que chegaram e continuam aí, me alegra muito a leitura de cada um. Até a próxima! — D
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