dentesguardados #23 Conflagração
#23 Conflagração do real
Fico voltando a uma certa manhã, ainda em abril, alguns dias antes das chuvas descomunais previstas para o Rio Grande do Sul se concretizarem em um cataclismo sem precedentes. Eu passeava pela ruas do bairro com minha filha de seis anos e Fauna, nossa cachorra recém-adotada. Ao ar era fresco e luminoso, creio que havia poças nas calçadas, restantes de uma chuva inocente que não causava nenhuma ansiedade especial. Sara conduzia Fauna pela guia com orgulho, porque sob a sua tutela a cachorra andava mais tranquila e solta do que comigo. Aconteceu de cruzarmos em sequência com vários conhecidos do nosso bairro, muitos chegando para o trabalho: a diarista que limpa o prédio em que moramos três vezes por semana, o garçom do restaurante favorito, vários outros passeadores com seus cães, os trabalhadores das padarias e floriculturas e barbearias, a dona do restaurante favorito com sacolas do açougue e do Asun, os guardadores de carros. O que talvez me pareceu excepcional foi a concentração da familiaridade nas esquinas da vizinhança contrastando com um certo espírito de novidade que rondava nosso pequeno clã: a cachorra que tinha acabado de entrar para a família, o sentimento de irmandade que eu via nascer entre ela e minha filha, e dentro de mim a sensação de que uma porção de coisas relativas ao meu trabalho, minha rotina, minha capacidade de pensamento e meu convívio familiar haviam finalmente se alinhado após os anos de pandemia e pós-pandemia, permitindo uma leitura não necessariamente esperançosa, mas certamente mais clara do futuro.
Alguns dias depois desse caminhei sob uma chuva insistente para a minha primeira manhã de trabalho no escritório que aluguei perto de casa. Uma mesa e uma cadeira, caixas de livros e goteiras na salinha pouco iluminada na manhã escura e chuvosa. Circulavam as primeiras notícias dos desastres que ocorriam no interior do estado, e ao mesmo tempo minha cabeça começava a interligar pontos mentais e a arejar armários da memória e a revelar cantos esquecidos da experiência interior. Pensava no livro novo e nos trabalhos encomendados e nos prazos e tentava montar uma escala para dar conta de um pouco de cada vez, de um pouco de tudo, do que dava. Ouvia o alarido e os choro das crianças na escolinha próxima, a chuva pesada e sem vento, as gotas tamborilando em cima do pano de chão encardido e encharcado, os passos dos outros ocupantes da casa percutindo e rangendo na escada e no piso de madeira, trovões abafados, e já sentia uma saudade quase imediata daquele mesmo ambiente doméstico que tinha se tornado sufocante para trabalhar, a saudade e o amor justificados, a culpa injustificada.
No sábado daquela semana, com a devastação alcançando uma escala incompreensível, a água acabou nas torneiras do nosso bairro e surgiram mapas do Instituto de Pesquisas Hidráulicas mostrando que nos piores cenários de enchente em Porto Alegre as águas do Guaíba podiam chegar exatamente até a nossa quadra no bairro Santana, uma possibilidade até então impensável. Enquanto assistíamos ao show da Madonna, notícias terríveis se acumulavam nas timelines, voluntários montavam abrigos onde e como podiam, barcos recolhiam gente e animais ilhados, chaves PIX disputavam doações. A gravidade da situação se fazia sentir, mas era difícil de descrever; tínhamos a percepção de que acima da fronteira do estado o restante do país não fazia a menor ideia do que estávamos vivendo.
No fim, a água faltaria por duas semanas no nosso prédio e tivemos que passar um período na casa dos meus pais na zona sul, mas fora isso não tivemos perdas ou prejuízos, apenas no sentido em que todos nós tivemos alguma perda e prejuízo. Até a solidariedade foi questionada nesse momento de trauma social, ambiental, geológico, metafísico: e se ela não bastar ou for até mesmo contraproducente caso não venha acompanhada de revolta política? E se ela servir de muleta para o fatalismo capitalista? Enquanto isso, pessoas que haviam perdido tudo, menos suas vidas, dedicavam as forças restantes a resgatar humanos em estado de choque e cachorros que continuavam nadando com as patas dianteiras, trêmulos e de olhos arregalados, por muito tempo após serem retirados da água; corpos vivos, cheios de consciência e vontade, transformados em autômatos pelo instinto de sobrevivência, estupefatos diante de um ambiente que de uma hora para a outra não fazia mais sentido. Imagens de satélite que circularam a partir de certo ponto mostravam o delta do Jacuí antes e depois da enchente, antes os cursos d’água azuis ou cinzentos serpeando entre a vegetação verde e a mineralidade artificiosa das áreas urbanas, depois um transbordamento massivo de água barrenta cobrindo quase todo o campo de visão do olho estratosférico, uma mancha na crosta terrestre que, após semanas de escrutínio, ainda choca e entorpece ao mesmo tempo.
*
Há muito tempo me interesso pela face estética das catástrofes naturais e ambientais. Em 2019, publiquei na revista Serrote um ensaio chamado Ondas catastróficas, no qual analisava o fluxo de imagens digitais em torno de catástrofes como o tsunami de Fukushima e o rompimento da barragem de Brumadinho, e me perguntava como o regime de visibilidade total e acintosa de fenômenos desse tipo afetava nossa imaginação em geral e a escrita de ficção em particular. Escrevi lá:
O que parece anacrônico na era da visibilidade total, quando se fala em literatura, é o tipo de romance realista ainda hegemônico, o modelo de narrativa masculina e burguesa por excelência, atenta à metódica construção psicológica dos personagens e à representação detalhada e naturalista do real. É o tipo de narrativa que, de modo geral, posso ser acusado de praticar desde os meus primeiros livros publicados. Quando escrevi meu último romance, Meia-noite e vinte, lançado em 2016, experimentei pela primeira vez o desgaste das ferramentas com as quais estava acostumado a transcrever minha imaginação e minha vida interior.
Esse desgaste a que me referia anos atrás me levou às pesquisas, às escolhas formais e à adoção de gêneros literários mais especulativos na composição do meu livro seguinte, O deus das avencas, escrito e lançado durante a pandemia de covid-19. Relendo o ensaio hoje, vejo como nele já estavam cristalizadas as reflexões que permeariam as histórias daquele livro e nas quais ainda acredito firmemente:
(…) há um subtexto onipresente na vida contemporânea, um murmúrio no inconsciente coletivo, repetindo que estamos à beira de um precipício. De maravilha em maravilha, a jornada do homem prometeico nos trouxe a uma cisão quase completa com tudo aquilo que é considerado, com ou sem propriedade, inanimado ou não humano. Estou de acordo com quem acredita que essa cisão equivalerá, seja a curto ou a longo prazo, ao nosso autoextermínio. O aquecimento global, as extinções de espécies e outros efeitos destrutivos da civilização sobre o meio ambiente anunciam uma espécie de apocalipse sem fim, um acúmulo de inúmeras catástrofes, nenhuma delas definitiva por si própria, cuja duração, extensão e complexidade desafiam o intelecto e a percepção. Com as atuais tecnologias de informação e imagem, o sistema descreve a si mesmo em tempo real, energizado pela publicidade e por esotéricos fluxos de capital, turbinado por algoritmos. Precisamos, devemos continuar imaginando alternativas e antídotos para tal cisão.
No texto, menciono outro ensaio da teórica de mídia McKenzie Wark, chamado “Sobre a obsolescência do romance burguês no Antropoceno”. Sua ideia de que as convenções da narrativa realista convencional já não dão conta das sensibilidades e das experiências de tempo e espaço em um mundo transformado pela crise climática apontam, por sua vez, para outro ensaio do escritor indiano Amitav Ghosh, o hoje célebre “O grande desatino” [The great derangement], recentemente publicado no Brasil pela editora Quina. Alguns dias atrás, a Folha de SP publicou uma matéria sobre como a crise climática tem deixado de ser assunto apenas da ficção científica e da fantasia, gêneros considerados menos nobres pelo mercado, para figurar na literatura vista como mais séria, ou seja, naquela que ajoelha em algum grau no altar do realismo moderno.
Na verdade, o que a matéria do jornal e Ghosh identificam é uma flexibilização do realismo para acomodar perspectivas tidas como fantásticas ou periféricas até muito recentemente, como as da ficção científica, do terror, do afrofuturismo, das cosmogonias dos povos indígenas, e talvez possamos incluir aí também a perspectiva dos ecologistas que há décadas descrevem e antecipam boa parte do que está ocorrendo. Para dizer algo que soe verdadeiro, belo ou pertinente sobre o mundo em que passamos a viver nas últimas décadas, o castelo do realismo precisou abrir as comportas para afluentes da imaginação menos preocupados com o rigor racional (tempo-espacial, estrutural, histórico, psicológico), a coerência, a consistência e a quantificação das experiências, e mais aberto ao impossível, ao invisível, ao inacessível, ao imaterial, ao atemporal, ao instável, ao incrível; uma imaginação menos antropocêntrica, que não nos garante posição privilegiada na rede dos fenômenos planetários.
Consultada para a matéria, pesquisadora e escritora Ana Rüsche, uma das maiores pensadoras sobre literatura e crise ambiental no Brasil, destaca O deus das avencas como um exemplo de boa ficção que lida com o tema. Fiquei feliz demais em ver o livro aparecer ali: lançada em 2021, no auge da pandemia, essa minha reunião de três novelas teve um bom lançamento e recepção dentro do que se podia esperar naquele período. Aos poucos, vejo o livro aparecer em pesquisas acadêmicas e debates em torno das mudanças climáticas e suas representações na literatura. Um desses artigos, publicado recentemente na revista Abusões da UERJ, de autoria de Letícia Vidal Ferreira, mestranda em Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo, é uma análise profunda e atenta da novela “Bugônia”, que encerra o meu livro. Você pode ler o artigo aqui.
Fazendo uma brilhante “leitura ecocrítica” da novela, Letícia destaca uma série de aspectos do texto inseridos conscientemente por mim, o tipo de coisa que move a fabulação sem que o autor necessariamente espere identificação clara por parte dos leitores. Ela percebe, por exemplo, como a relação dos humanos do Organismo com as outras espécies se pautam por alianças que beneficiam todos os envolvidos, inclusive no caso das bactérias que, no mundo construído pela novela, ainda ameaçam dizimar quase toda a população humanas. “O agenciamento das figuras não-humanas é explícito”, ela escreve no artigo. “Suas ações, direcionadas ou não à manutenção dos acordos, são apresentadas como conscientemente pautadas pelos próprios interesses — ainda que esses nem sempre sejam compreensíveis.” É um exemplo de como procurei trazer à narrativa as ideias de simbiogênese da bióloga Lynn Margulis e do devir-com proposto por Donna Haraway com seu conceito de espécies companheiras. O artigo revelou a mim próprio algumas coisas que eu nunca tinha percebido. Por exemplo, como ao longo da novela “as imagens de morte (como no caso dos campos de eucalipto, troncos caídos e do ‘esqueleto’ da torre de transmissão) são paulatinamente substituídas por imagens de vida (através do surgimento de pequenos líquens)”.
A novela, em uma de suas interpretações possíveis, é o relato de um organismo social reagindo a uma catástrofe ambiental (o sumiço das abelhas) provocada pelo homem (o astronauta) e se reconfigurando em um novo modo de viver que talvez lhe permita perpetuar sua sobrevivência. É também, portanto, uma alegoria do nosso presente, no qual as crises do clima e do capitalismo global clamam por uma reação que seja ela mesma ambiental, orgânica.
Letícia destaca os contornos de romance de formação na jornada da protagonista Chama, mostrando como a adolescente não apenas conquista maturidade para se adaptar a uma sociedade existente, mas modifica essa mesma sociedade no processo, como uma organela invasora reconfigura uma célula:
Chama não só se modifica como também altera a sociedade em que vive. O novo Organismo não se restringe mais ao Topo e não está limitado nem ao passado nem ao presente — sua nova constituição permite entendê-lo enquanto forma complexa que, por englobar diversos seres viventes e suas particularidades, é capaz de se espalhar; entendemos, então, essa nova forma enquanto simpoética, pois o Organismo passa a agir como os “sistemas de produção coletiva que não possuem limites espaciais e temporais autodefinidos. Informação e controle são distribuídos ao longo dos componentes. Os sistemas são evolutivos e têm potencial para mudanças surpreendentes”
A comunidade descrita em “Bugônia” havia encontrado resiliência e alguma estabilidade com base numa relação aberta e simbiótica com as demais criaturas de seu ambiente. Mesmo assim, ela termina presa em suas convenções e hábitos, cristalizada em um novo medo de mudar. A polarização entre as diferentes visões da história e das utopias se agrava (expressa pela oposição entre a Velha e Alfredo, as duas figuras mais próximas de líderes), culminando em uma crise que só pode ser resolvida por uma jovem que consegue aproveitar o melhor das diferentes perspectivas vigentes, orientada por um profundo senso de empatia, curiosidade, abertura à novidade.
O desenlace da história, a conversão final de Chama em figura revolucionária baseada em sua aliança com as abelhas, contém um elemento fantástico. Mas o que é o fantástico se não uma espécie de conflagração do real, um lembrete da estreiteza acachapante não só daquilo que julgamos, mas também daquilo que podemos efetivamente conhecer?
*
Aquela manhã de abril retorna porque foi um momento em que o presente — não o futuro — parecia plenamente possível. Sou de uma geração pra qual o futuro podia ser algo tão sólido, tão aparentemente garantido, que era necessário nos avisar o tempo todo que o momento presente precisava ser vivido. Carpe diem et cetera. A virada do milênio detonou o futuro. E em algum momento mais recente — os culpados podem variar muito dependendo da perspectiva de cada pessoa ou grupo — perdemos também a capacidade de vivenciar o presente. Estamos distraídos demais pelas telas, ansiosos demais com a perda das pequenas seguranças que havia. A solidariedade nos contamina na enchente porque restitui o presente ao fluxo destrambelhado da vida. A empatia nos enraiza no que importa agora. A revolta política e cognitiva que precisa acompanhar essa solidariedade para que o resto de nossas vidas e o mundo de nossos descendentes não se torne uma única e constante catástrofe requer a crença no futuro, e essa, infelizmente, é mais complicada, mas não impossível.
E já que me deixei levar pelo terreno dos aforismos, vamos até o fim: o lance é que o presente não existe. Transição entre uma experiência e sua sucessora imediata, o presente pertence ao domínio do fantástico. E nada nunca nunca nos impediu de acreditar nele. Se podemos inventar o presente, podemos inventar qualquer coisa.
A newsletter 'dentesguardados' é aberta a todos e aceita doações espontâneas dos leitores que desejarem bancar a mensalidade do Buttondown (29 dólares/mês) ou apoiar a minha escrita de modo geral. Considere clicar aqui ou usar a chave PIX "contato@danielgalera.info" para enviar um pagamento de qualquer valor. Agradeço de coração :)
Mais informações sobre mim: http://danielgalera.info
ⓒ Daniel Galera