dentesguardados #21 Apocalipses
#21 Apocalipses
A entrada de uma coleção de filmes de ficção científica pós-apocalíptica dos anos 80 no Criterion Channel me fez revisitar ou assistir pela primeira vez a alguns clássicos, e depois rever um filme menos conhecido do Michael Haneke. O que segue são algumas impressões mais ou menos articuladas, que não chegam a desenhar nenhuma tese, mas que talvez possam despertar a curiosidade ou alguma reflexão própria nos leitores desse semiperiódico.
The quiet earth [Terra tranquila], 1985, Geoff Murphy
Neste filme neozelandês, um cientista chamado Zac acorda certo dia e descobre que é o último ser humano vivo na Terra. Não demora para ele saber que isso é resultado de um tilt num projeto de geração de energia global em que vinha trabalhando com outros cientistas. O filme é divido em duas metades, e a primeira é a mais impressionante. Numa sequência de sets muito bem bolados, numa alternância de espetáculo sci-fi, comédia e suspense psicológico, Zac explora a cidade deserta passando por períodos de desespero, inclinação suicida, culpa, euforia e hedonismo. Ele passeia pelos destroços de um avião, encena fantasias megalomaníacas em que se declara o presidente da Terra, metralha Jesus Cristo na cruz de uma igreja e eventualmente se acomoda numa rotina resignada.
As coisas mudam quando encontra uma segunda sobrevivente, uma mulher branca chamada Joanne, e depois um terceiro, um homem maori chamado Api. Não demora para que o filme se transforme num drama pisco-sexual a três, com traços de simbologia edênica: atiçado por desejo, ciúmes e tensões raciais e históricas, o trio carrega a responsabilidade de garantir a continuidade da raça humana entre os resíduos da civilização. Mas a conclusão do filme é algo bem mais estranho do que se poderia esperar. Enquanto Joanne e Api presumivelmente concebem uma criança, Zac estabelece contato com uma entidade misteriosa que o transporta, no bonito e sinistro plano final, para um mundo alienígena ou outro plano de existência. Não dá para saber exatamente. Este não é um filme perturbador; deixa um gosto final de entretenimento de qualidade. A mensagem abrangente é dúbia. Devemos concluir que o progresso tecnocientífico da humanidade nos levará inexoravelmente a um estado em que a salvação resida em alguma espécie de "reset" -- talvez acidental, talvez maquinado por uma raça alienígena ou conspiração oculta -- do projeto da civilização? Ou conta mais o desenvolvimento inspirado e detalhado da fantasia narcisista do "último homem na terra"? De todo modo, é um prazer acompanhar os desenlaces da história, regidos por uma dose salutar de caos e estranheza que já não se pode esperar do "conteúdo de streaming" despejado pelas produções atuais.
Threads, 1984, Mick Jackson
Hoje pouco conhecida, mas com status cult, essa produção da BBC dos tempos da Guerra Fria fez sucesso na TV na época do lançamento e tem a fama de ser a mais exata e perturbadora concepção cinematográfica do que seria um "inverno nuclear" após uma guerra mundial total com despejo de bombas atômicas. O filme acompanha a vida de duas famílias na cidade industrial de Sheffield, no Norte da Inglaterra, à medida em que uma crise entre as superpotências avança em direção a um conflito nuclear. Os personagens são apresentados com sensibilidade, nós os conhecemos bem após um punhado de cenas, suas vidas se tornam reais e dignas de empatia com a mesma velocidade com que podem ser ceifadas.
A combinação de linguagem de documentário com filme de terror é diabolicamente eficiente. Quando o casal de jovens protagonistas descobre que terá um filho e decide casar e mudar para um novo apartamento, ao mesmo tempo em que os rádios e televisores divulgam notícias sobre retaliações crescentes entre Estados Unidos e União Soviética no Irã, sabemos que os próximos capítulos da história não serão bonitos. Mas nada prepara o espectador para a simulação implacável que o filme oferecerá. Uma bomba destrói instantaneamente quase todas as construções e aniquila quase toda a população; os centros de administração emergencial reunidos em bunkers são logo atingidos pelo caos inoperante e seus integrantes sufocam sem ar; vários personagens são imediatamente incinerados e soterrados; os remanescentes são fustigados pelas cinzas radiativas que sopram sobre o continente, gerando efeitos imediatos que são "indistinguíveis do estado de choque": confusão mental, vômitos, enjoos, perda progressiva das funções vitais. O corpo da protagonista grávida será nosso guia nessa via crucis sem redenção: ela se alimentará de ratos, percorrerá os corredores dantescos de um hospital incapaz de atender a multidão de vítimas, dara à luz sozinha sobre um monte de palha diante um cão que late ferozmente preso a uma corrente. A filha nasce saudável, e na porção final do filme acompanhamos seus próprios percalços numa terra bárbara, escura, gelada, pouco habitada e quase incultivável. A última cena é de gelar os ossos, nada direi. Quando pensamos que o filme é uma simulação meticulosamente construída sobre uma sólida base de conhecimento geopolítico e científico, realmente não dá pra garantir um sono tranquilo nos dias seguintes. Apesar das cenas de destruição humana explícita, o longa não parece apelativo: é como se nos dissesse que não adianta falar dos perigos de uma guerra nuclear se não pudermos imaginar e visualizar certas coisas em detalhes. Como o início é muito plausível, somos levados a sentir que tudo que se segue também é. Depois de assistir a Threads, uma das coisas que pensei é em como a abundância de imagens verdadeiramente documentais de guerras e catástrofes humanitárias como as que ocorrem na Ucrânia e em Gaza agora mesmo parecem não ter o efeito desejado sobre nossa capacidade coletiva de impedir conflitos que dizimam vidas (não só humanas, convém lembrar; Threads não esquece de voltar seu olhar a cães, gatos, ovelhas e outros animais que partilham a terra conosco). Outra coisa foi como o imaginário apocalíptico atual convergiu em parte para um tipo mais gradual de catástrofe. O dano que as crises ecológicas e climáticas ou as guerras podem infligir ao planeta e à civilização já não aparecem no imaginário como aquele surto de destruição fulminante após o qual tudo terá mudado para sempre em todo lugar. Aprendemos que as catástrofes são processos de longa duração, e que algumas que temíamos já estavam em curso -- para algumas pessoas mais do que outras -- e seguirão se prolongando, a depender, caso a caso, de nossa mobilização. O apocalipse bombástico virou meme: "Vem, meteoro". Mas talvez precisemos cultivar a capacidade de imaginá-lo em seus horrendos detalhes, como faz esse filme, ou como fazem as pessoas que meditam imaginando vividamente a própria morte ou inexistência, e depois o mundo sem elas, para então abrir os olhos e tentar terminar aquele dia sendo um pouco menos automaticamente pau no cu com os outros.
Escape from New York [Fuga de Nova York], 1981, John Carpenter
Esse eu revi pela primeira vez em uns 30 anos, depois de ter assistido incontáveis vezes na infância em uma VHS pirata. Não vou desenvolver muito, o filme era brilhante e segue sendo, mas uma coisa que me chamou a atenção é como Fuga de Nova York é mais uma distopia do que um sci-fi apocalíptico, e que o apocalipse nesse filme na verdade ocorrerá depois que rolam os créditos. O cenário da ilha de Manhattan transformada em prisão de segurança máxima é mais um comentário político na esteira de Watergate, um comentário ao cinismo com que os americanos viam seu presidente (Carpenter disse isso numa entrevista), do que uma visão pós-apocalíptica. O presidente dos Estados Unidos está levando uma fita cassete (sorriso gostoso) com dados sobre tecnologia de fusão nuclear e sua intenção é entregar a fita à aliança entre China e URSS para que a guerra entre as potências termine; ele está indo para uma reunião de paz antes de seu avião ser derrubado por ativistas e cair na prisão. Depois de salvar a pele do presidente americano, Snake vai conversar com ele, talvez querendo um aperto de mão e um agradecimento, talvez querendo avaliar o caráter do homem. O certo é que ele sai desse breve encontro com péssima impressão e por causa disso destrói a fita cassete nos instantes finais da história, não apenas expondo o presidente ao constrangimento público por ser um verme mas provavelmente também ensejando o apocalipse nuclear. Nada disso fazia sentido pra mim aos nove ou dez anos.
Cyborg [Cyborg, o Dragão do Futuro], 1989, Albert Pyun
Esse filme não estava no Criterion Channel. Eu o assisti de novo porque topei com ele em algum streaming que já esqueci, e ao ver o pôster lembrei que o assisti no cinema com meu pai no ano de lançamento, num cinema de São Paulo que não vou lembrar qual era, mas lembro bem da sessão caótica com os espectadores se xingando e arremessando comida uns nos outros do mezanino e fumando sem parar numa atmosfera insalubre de zombaria e agressividade que emoldurava perfeitamente as imagens que se sucediam na tela. E não vou submeter vocês a uma daquelas análises em que o sujeito pega um filme de quinta categoria estrelado pelo Van Damme e extrai dele uma análise cultural ambiciosa fundamentada em teoria crítica, história das religiões e nos mitos da antiguidade, embora eu pessoalmente goste muito de ler esse tipo de análise e ache que elas estão corretas com mais frequência do que o contrário. Não vou comentar a cena em que Van Damme é crucificado num mastro de barco na paisagem apocalíptica e, em vez de morrer pelos pecados da humanidade, quebra o mastro com golpes de calcanhar e vai buscar vingança assassinando com as mãos limpas todos os vilões que ainda restam. Não vou comentar também os figurinos e o elenco, que em sua tosquice e decadência ainda assim atingem um sublime estético kitsch tipicamente oitentista que muito teria a ensinar ao diretor da mais recente adaptação de Duna. Sequer vou entrar em detalhes sobre a trama, que é um pouco mais inteligente do que se poderia supor. Vou me limitar a dizer uma coisa sobre esse filme. Os primeiros 3 minutos dele fornecem um retrato do Mal que jamais serão superados por outra obra de entretenimento. Eu não lembrava de como o filme começava quando dei play uns dias atrás. Vemos uma imagem pintada de Nova York destruída, com uma baratinha passeando num vergalhão enferrujado, enquanto uma voz em off nos informa que (estou parafraseando de memória) "primeiro veio o colapso da civilização, anarquia, genocídio... e quando as coisas não poderiam piorar, veio a peste que tomou conta do planeta... o último grupo de cientistas desenvolveu a cura que poderia restaurar o mundo..." Até aqui é tudo bem familiar, o clichê conhecido. Então nosso narrador muda de tom. "Restaurar... para quê? Eu gosto da morte! Eu gosto do sofrimento! Eu gosto desse muuuuundo!". Aí o filme começa de fato, a gangue sanguinária de vilões niilistas está perseguindo um cientista. Chamam a atenção os cadáveres crucificados no meio da rua, não somente porque já antecipam a supracitada cena da crucificação do herói que não comentei nem comentarei, mas porque os cadáveres realmente parecem cadáveres: estão cerosos, inchados, brancos com umas rachaduras rosadas, enfim, é um troço horroroso e muito realista que contrasta com a produção rudimentar de todo o resto.
Segundos depois o cientista está ferido e dominado no chão e o chefe brutamontes da gangue se aproxima. O cientista roga que ele poupe a vida da ciborgue que guarda o segredo da cura, mas nosso vilão não quer saber. Ele repete agora as palavras do narrador em off: diz que gosta do sofrimento, e que se botar as mãos no segredo da cura, poderá "ser Deus". O cientista ainda tenta: "Podemos mudar o mundo!". O vilão responde: "Gosto dele como está!" Podem rir, é engraçado, mesmo. Mas alguma coisa na infantilidade e literalidade desses diálogos me pareceu mais perturbadora do que qualquer coisa em Oppenheimer. Quando falamos em banalidade do mal, em geral estamos falando de gente comum que causa o mal pensando estar praticando o bem. Cyborg, O Dragão do Futuro nos apresenta logo de cara uma outra banalidade do mal: a de quem gostará da barbárie pós-apocalíptica como uma criança gosta de pirulito, sem nenhuma outra justificativa ou complexidade. Todo esse filme seria inviável, moral e esteticamente, se fosse feito hoje em dia. Mas nessa ruindade ingênua encontro certo tipo de ousadia que lamento quase nunca encontrar nos filmes mais recentes, tão preocupados com sua consistência moral, histórica e psicológica, tão ajoelhados aos pés gosto comum, tão polidos com seus efeitos em CGI sem densidade alguma. Li uma crítica de Pobres criaturas, um filme divertido e cheio de provocações brincalhonas, que começava dizendo que era quase impossível o espectador não se incomodar com várias de suas cenas. Tá faltando Cyborg, o Dragão do Futuro na vida de algumas pessoas.
Le temps du loup [O tempo do lobo], 2003, Michael Haneke
A sequência de filmes sobre o fim da civilização me despertou a vontade de rever este filme do Haneke que assisti pela primeira vez na Mostra de Cinema de São Paulo em 2003. Lembrava que o filme era tremendamente escuro, filmado aparentemente com escassa luz natural, com muitas cenas noturnas em que se vê somente o fogo ou silhuetas indistintas à luz de velas. O tempo do lobo é o que temos quando Haneke resolve filmar uma distopia pós-apocalíptica situada na França: Isabelle Huppert é uma mãe aflita cuidando dos dois filhos depois que seu marido é assassinado à queima-roupa. A cena inicial é brilhante, imitando as tradicionais cenas em que uma família feliz chega em casa para passar as férias no campo, mas logo percebemos que se trata de outra coisa. Não se sabe bem o que aconteceu: a água potável é escassa, os animais de criação precisam ser sacrificados, as pessoas estão famintas e reunidas em galpões à espera de trens que talvez parem ou não para levá-las à cidade ou a algum lugar em que a vida tem melhores condições. Embora tenha quase 2hs e o andamento seja lento, o filme passa rápido. Se Threads busca representar um colapso nuclear com mistura de documentário e horror expressionista, O tempo do lobo cria um registro ficcional, mas clínico e sóbrio, de como os sobreviventes de uma catástrofe discreta e lenta se toleram, competem ou eventualmente se ajudam em um fim do mundo silencioso e sem um marco inicial ou final. O egoísmo, a solidariedade, a perseguição a imigrantes e as relações de liderança e subjugação aparecem no enredo sem alarde, numa sucessão de eventos anti-espetaculares, críveis e naturais. O curioso é que Haneke tempera esse cenário desolador e sufocante com elementos místicos e um final mais luminoso do que se poderia esperar de seus filmes. As cenas de violência contra humanos ocorrem fora do quadro, enquanto as violências contra animais são mostradas explicitamente, incluindo uma cena chocante em que um cavalo é abatido a tiros e sangrado com uma faca (parece ser real). Um personagem alude à crença talmúdica dos 36 justos, segundo a qual sempre existe esse número de humanos vivos preservando a ordem do mundo com sua correção moral e humildade. Outro conta para os demais sobreviventes que em certa cidade por onde passou "heróis" estavam se jogando à fogueira para purificar o mundo com seu sacrifício. É dessas histórias que parece vir a iniciativa de Ben, o filho da personagem de Huppert, na linda e arrepiante última cena: ele se posta diante do fogo nos trilhos, nu, pronto para se sacrificar pela humanidade. O fato de que o menino é salvo do sacrifício e confortado justamente por um dos personagens mais odiosos, o homem que hostiliza os imigrantes poloneses, talvez carregue a mensagem cifrada que Haneke pretende transmitir. "Acredita em mim, você estava pronto pra fazer isso", diz o homem ao menino em prantos, acariciando seus cabelos. "Isso basta, amanhã mesmo tudo vai melhorar." Em algum plano do universo, talvez, a disposição plena ao sacrifício pelo bem alheio bastaria para melhorar um pouco o mundo. Talvez sim, talvez não. Vendo a paisagem verdejante que atravessa a tela no plano final, é possível acreditar um pouco nisso.
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