dentesguardados #20 Espirradeiras
#20 Espirradeiras
O negócio de pilotar uma motocicleta dessas a cento e vinte numa estrada lisa e reta e segura de três pistas com o tanque de combustível bojudo vibrando suave e em frequência altíssima entre as pernas, encaixadinho nas coxas e na virilha e no períneo, e com os braços dela cingindo meu diafragma somente com a firmeza necessária, quase relaxados, e o peito e a barriga dela grudados nas minhas costas e arfando o bastante para que eu sinta a expansão e o retraimento de outro corpo contra o meu enquanto avançamos os dois corpos imóveis em cima da motocicleta em velocidade elevada sobre a estrada com as trepidações e o ronco agudo e contínuo e hipnótico da combustão lá fora do capacete soando macio e deixando para trás uma fileira borrada de arbustos e árvores baixas e para além deles deslizando em paralaxe com rapidez decrescente rumo ao horizonte a extensão de plantações verdes e uniformes até a cadeia de montanhas pretas e rombudas parecendo quase nada à distância e acima delas o céu plúmbeo e azulado e gordo perfurado por raios de sol que queimam bordas brancas e douradas nas nuvens como pontas de cigarro acesas por trás de uma colcha é que podemos esquecer que o restante do mundo segue tão relativamente estático e inerte quanto antes e tão sujeito aos seus desastres e rupturas que nada guardam dessa fluidez milagrosa e dessa tremulação quente que me unem a ela como se nosso amor pudesse de fato ensejar uma fusão de carnes, eu e ela na motocicleta criando algo continuamente contra a resistência do ar como um único organismo dardejando sobre o asfalto ao encontro de nós mesmos, aerodinâmico como um besouro, perfeito como um ouroboros em rotação sincronizada com as rodas metálicas e os pneus grossos e foscos que absorvem toda a luz em volta deles, e sermos lembrados disso quando ela atende a uma ligação do celular nos fones sem fio encaixados nas orelhas e começa a conversar naquela voz que para mim através das camadas de estireno e isopor e fibra de carbono que compõem nossos capacetes chega como um murmúrio indistinguível até que sinto seus dedos se contraindo e beliscando minha barriga e seus braços me pressionando com força demasiada e seus ombros se reacomodando e seu peito inflando fora de ritmo e com amplitude cada vez maior e então seu corpo inteiro sendo tomado por espasmos e se desequilibrando e lutando para permanecer agarrado ao meu e grito seu nome querendo saber se está tudo bem mas ela apenas soluça e uiva, lamentos que soam ainda mais angustiados na cela acústica do capacete e são carregados por um vento que parece querer nos proteger inutilmente da contingência do mundo e então diminuo a velocidade com cautela e aciono a seta para a direita verificando pelo retrovisor a aproximação de uma caminhonete preta rebocando um jet ski e vou me aproximando do acostamento enquanto os automóveis agora mais velozes que a nossa motocicleta nos ultrapassam pela esquerda com ares de superioridade ou condescendência, eles que até segundos antes eram apenas manifestações degradadas da nossa perfeição, subitamente quebrada a harmonia onde no fundo jamais houve, e reduzo as marchas e aciono a embreagem e o freio até estacionar sem pressa, parte de mim querendo adiar o que se aproxima e ainda não conheço, num dos refúgios à beira da estrada onde há espaço seguro e uma torre com um telefone da concessionária da rodovia e sacos de lixo de supermercado e pacotes de bolacha rasgados e faixas de papel higiênico sujo enrolados nas balizas de segurança que nos separam da paisagem agora estática na qual se movem apenas moscas e as folhas mais altas da vegetação banhada em luz dourada e eu baixo o pezinho que sempre me parece insuficiente para manter em pé a motocicleta possante mas sempre dá conta do recado com sobra e tiro meu capacete primeiro e me viro e ela está retirando os pés dos apoios traseiros e buscando apoio no chão que parece algo instável ao primeiro toque após mais de uma hora ininterrupta deslizando quase imaterial sob as rodas e soluçando dentro do capacete e mostrando dificuldade para soltar a fivela jugular que o prende à cabeça e eu digo calma meu amor o que foi e ajudo embora parte de mim não queira ver nem saber porque não sei se estou preparado para lidar com essa dor ou com as providências que terei de tomar ao saber das causas desse sofrimento e porque lá no fundo tenho medo de que meu amor por ela esteja atrelado a uma versão dela sem esse sofrimento e o capacete sai e vejo seu rosto molhado de lágrimas e um pouco deformado pelas emoções como se ela tivesse sido picada por insetos, a boca transida de um jeito que afina e contorce seus lábios e os deixa parecidos com lagartas feridas e não quero pensar em nada disso mas são os pensamentos que aparecem, digo seu nome e faço menção de abraçá-la mas ela não corresponde ao abraço, em vez disso se dobra e se apoia num dos joelhos e começa abre o zíper da jaqueta de couro bege e diz meu nome e o repete algumas vezes e eu me ajoelho também e estendo a mão e afasto os cabelos que grudam em seu rosto molhado empurrados pelo vento que sopra das montanhas rente à planície e removo os fones de ouvido sem fio de suas orelhas e os largo de qualquer jeito no macadame morno sob o sol entrecortado da tarde e pergunto o que houve e ela precisa de somente cinco ou seis palavras para me contar o que representa o fim do seu mundo mas não do meu, não é o fim do meu mundo, me pego pensando enquanto vejo se aproximarem com faróis acesos na claridade vespertina os automóveis ocupados por motoristas profissionais solitários e casais e amigos e crianças e famílias que relanceiam através dos vidros e nos enxergam aqui agachados ao lado da motocicleta no refúgio do acostamento como um clarão estatuário repleto de um páthos que lhes escapa, uma mulher soluçando e balançando a cabeça para os lados e um homem com uma das mãos no ombro dela, a outra mão meio perdida perto do peito e o rosto espremido numa expressão que ele mesmo não saberia dizer de quê pois precisaria haver palavra para essa vertigem entre a fusão total com ela e a separação peremptória, entre estar presente junto daquele hálito e daquele rosto e daquele peito arfante e daquela dor mais do que nunca e estar em outro lugar, a moto deslizando novamente pelo asfalto impecável, ultrapassando os outros veículos, o tanque vibrando eroticamente entre as pernas, a gasolina nele contida queimando gota a gota aninhada em sua virilha, prenhe de uma energia descomunal e explosiva, enquanto o motorista de um caminhão de carga com logotipo da batata frita Lays que passa deslocando uma massa concussiva de ar empesteado de dióxido de carbono os contempla por dois ou três segundos com um misto de curiosidade e julgamento, enquanto um motociclista numa moto barulhenta de baixa cilindrada passa dando a impressão de girar a cabeça brevemente na direção deles com o olhar oculto por trás do visor preto que reflete o sol dourado, enquanto no banco traseiro da perua prateada que passa mais devagar que o restante do tráfego uma criança pequena de olhos enormes e chapéu amarelo de Pikachu os contempla com o mesmo fascínio que teria dedicado a um balde de plástico pendurado num galho ou um cachorro atropelado ou uma placa de limite de velocidade e são tantos carros e motocicletas e caminhões e ônibus e vans passando cada um com seus olhares em movimento enquanto eles permanecem ali ajoelhados tentando cada um à sua maneira entender o que aconteceu e concluindo que não faz sentido e que essa falta de sentido em nada afeta a necessidade imperiosa de sentir e pensar e agir paulatinamente à medida que os instantes percebidos se sucedem, e ela por fim dá como que um salto à frente, uma espécie de bote, e o abraça com força, ele a abraça de volta e assim seguem enquanto por cima do ombro dela e através dos vultos fugazes dos veículos que percorrem a estrada da esquerda pra direita ele observa as espirradeiras floridas que ocupam o canteiro central da rodovia formando uma barreira natural, árvores baixas e comuns nas calçadas e jardins das cidades e de aspecto banal com flores róseas e cheia de folhas pontiagudas que se ingeridas, basta uma, levam rapidamente à morte.
O conto acima foi escrito agora mesmo, de uma só tacada, e passou apenas por revisão mínima quando copiei do Bear e colei na ferramenta de publicação da newsletter. E eu o escrevi porque queria enviar uma edição extra em agradecimento aos leitores e leitoras que fizeram contribuições desde a edição passada. Vocês foram muitos e já financiaram os primeiros meses do Buttondown pra mim e isso me deixou feliz pra caramba e quis retribuir. Chamei de experimento esse modelo de contribuições voluntárias, e como tal considero o início extremamente bem-sucedido. Fazia tempo que não me dava uma gana de sentar e deixar sair um texto de ficção para compartilhar em seguida sem pensar muito. Foi graças a vocês. Obrigado.
Várias pessoas me pediram pra enviar pagamentos via PIX em vez do link para cartão de crédito. Subestimei o quanto o cartão podia ser um entrave ou desestímulo para alguns, e quanto para outros o PIX é a forma natural de pagar qualquer coisa. Portanto, a partir de agora fica essa opção de contribuição também: meu PIX é o e-mail contato@danielgalera.info
A newsletter segue mensal e gratuita a cada primeiro domingo, não importa como seguir o ritmo das contribuições. Se elas seguirem chegando, vocês estarão apoiando edições extra como essa e acelerando o livro novo :)
Ah, e uma errata: na edição passada chamei a abordagem criada pelo dançarino Steve Paxton de "slow dance". O correto é "small dance". Desculpem o descuido.
Ela voltou. Sim, ela. A...
Seção de links
- https://peelsofpoetry.tumblr.com/post/113421006794/slow-dance-by-matthew-dickman-more-than-putting
- https://portalabrace.org/impressos/5_tempos_de_memoria.pdf
- https://music.apple.com/br/album/present-tense/1111577743?i=1111578065
- https://p.dw.com/p/4cBnI
- https://periodicos.unb.br/index.php/cerrados/article/view/47325/38357
- https://www.miserytourism.com/symbiogenesis/
- http://alaketuode2.blogspot.com/2015/11/dangbe-cobra-real.html?m=1
- https://publicdomainreview.org/essay/anna-atkins-cyanotypes/
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