dentesguardados #2 Repuxo
Repuxo
Acordei em lençóis cobertos por uma areia grossa e um pouco colorida, que olhando de perto, se via, era feita de lasquinhas de conchas do mar. A luz que penetrava nas frestas tracejadas da persiana era fraca, ainda estava cedo. Ruídos de água da torneira e de louças se batendo vieram da cozinha. Procurei minha cueca no chão, não queria ter a vergonha de exibir meu pau murcho e grudento, sumido entre os pelos, para a garota que tinha me avisado horas antes, no meio da madrugada, antes de entrarmos no táxi, com os ombros encolhidos, com se tivesse medo de ofender, que era "de menor". Não achei a cueca. Vesti uma calça jeans puxada sem enxergar muito bem do armário. Na cozinha, ela passava um café com o coador direto na xícara, vestida com as roupas da festa, cheirando a cigarro, mas com os cabelos presos. Ela piscou e sorriu, queimou o lábio com o primeiro gole do café e me perguntou: Preciso ir pra aula em dez minutos, me leva? Ela estava reluzindo vida, sem ressaca nenhuma, mas percebeu na hora que eu não estava em condições de processar direito os dados sensoriais daquele começo de dia. Vamos, velho, ela disse, brincando mais uma vez com nossa diferença de idade, e me puxou pelo braço até o banheiro. Tirou a minha calça, ligou o chuveiro e me conduziu como um inválido para dentro do box. Eu a segurei pelo braço e pela nuca, sabe lá quando ia ter aquela sensação de novo na vida, e senti que ela ainda estava coberta pela areia grudenta e a maresia que trouxera de uma praia catarinense. Ou pelo menos foi o que ela me contou, que tomara o último banho de mar pela manhã e viajara de volta a Porto Alegre com a família sem tomar banho, e tinha ido parar direto na festa onde nos conhecemos, carregada de partículas litorâneas. Quis sentir aquele sal na boca outra vez, mas ela me afastou com um pouco mais de força, dizendo: Cinco minutos, sério, não posso me atrasar. A água fria não fez diferença alguma, mas momentos depois eu estava seco e vestido, pegando a chave do meu carro, me esforçando para levá-la a seu destino como se precisasse disso para me redimir dos meus anos recentes. Seu colégio era distante da minha casa na zona sul, e fizemos o trajeto sem falar quase nada, absorvidos em nossa melancolia. Ela digitava no celular sem me dar bola, como se eu fosse seu pai. Me pediu para encostar uma quadra antes e se despediu com um beijo. Esperei ela caminhar um pouco antes de acelerar, tive tempo de vê-la tirar uma camiseta azul e marrom do uniforme de dentro da mochila e se confundir com os demais adolescentes que chegavam sonolentos e subitamente se agitavam em volta do portão. Entre eles estava um garoto que, tive certeza, era o meu filho. Tinha o meu nariz largo, meus olhos transparentes, meus cabelos cheios de redemoinhos, meu peito de pombo, meu passo que lembra uma marcha esquisita de um soldado meio tonto. Não era a primeira vez que eu pensava ter encontrado meu filho em algum garoto que via por aí. Minha namorada estava grávida de cinco meses quando, dezesseis anos atrás, numa segunda-feira de sol que veio depois de duas semanas de chuva, avisou que ia descer para fazer um xerox de um texto e nunca mais voltou para casa. Naquela época não usávamos telefone celular, demorei mais de uma hora para achar que algo estava errado, não teria sido incomum ela estender a ida ao xerox para encontrar uma amiga em um café ou algo assim, ou podia ter decidido passear um pouco no parque, ficar fechada em casa com a barriga inchada a oprimia e tinham sido duas semanas inteirinhas de chuva, mas depois de uma ou duas horas fui ao xerox, onde não a tinham visto, e então liguei para seus pais e seus amigos, que também não sabiam de nada, e à noite falei com a polícia. Não a encontraram. Uns meses depois ela deixou uma carta na minha caixa de correio, onde dizia que o bebê tinha nascido saudável, era um menino, e que eles viveriam suas vidas sem mim, que eu não a procurasse, eles estavam longe e no fundo eu não queria ser pai, que confiasse nela, sabia disso melhor que eu mesmo, na verdade ela também estava preservando minha vida. Não quis envolver polícia de novo, cheguei a contratar uma detetive particular, mas logo a dispensei, que deixasse para lá, eu não queria mais ter a ver com aquilo. Mas a sensação de vertigem que tive ao ler a carta nunca me abandonou de verdade, passei quinze anos indo dormir e acordando com aquela viscosidade da injustiça e da perda me encobrindo, mas também havia alívio e culpa, eu só me perguntava que configuração improvável de forças cósmicas arma uma situação dessas para alguém. E agora ali estava o menino, eu tinha certeza, era ele. Um rapaz atlético vestindo minha pele, imitando meu jeito, me dizendo que meu corpo não era de todo meu, enfim a experiência concreta da paternidade. Estacionei nas proximidades e matei tempo numa lanchonete e numa banca de revistas. Para minha surpresa, meu filho saiu da aula antes dos outros, deviam ser nove e meia. Eu o segui por duas quadras até o ponto de ônibus, subi no mesmo coletivo e desci umas dez paradas adiante, numa praça pros lados do quarto distrito. Um homem mais velho, da minha idade, estava à sua espera. Tinha a barba um pouco grisalha, usava óculos escuros com lentes tingidas de vermelho, era um pouco gordo. Eles caminharam um pouco e se beijaram encostados no tronco de uma árvore. O homem entregou alguma coisa a meu filho, de longe me pareceu ser um livro. Se despediram com um último beijo rápido e partiram em direções diferentes. Continuei seguindo o rapaz, que pegou outra condução e desceu perto de um clube esportivo. Ficou no clube por cerca de cinquenta minutos, saiu de cabelos molhados e depois caminhou até um prédio numa rua do centro histórico. Talvez ele fosse nadador, como fui durante a adolescência. Eu o vi abrir a porta do prédio com a chave e então fiquei pensando no que fazer em seguida. Não sabia o número do apartamento. Resolvi ir embora, mas meia hora depois retornei, decidido a tocar em cada número até descobrir em qual apartamento meu filho morava. Dessa vez a porta de entrada do prédio estava aberta. Entrei. Uma moradora assinava uma nota para um entregador no pequeno saguão sem porteiro. Fui subindo pelas escadas e batendo de porta em porta, avisando que ia faltar água naquela tarde das 16h às 18h, as pessoas me agradeciam sem fazer perguntas, como se eu fosse o funcionário encarregado da limpeza das caixas d'água. Na primeira porta do terceiro andar, minha ex-namorada abriu a porta. Estava com o rosto mais magro, a pele mais manchada, os cabelos compridos e bonitos, parecia ter bebido. Seu espanto durou alguns segundos, e o meu também passou antes do que eu poderia prever. Ela disse: Entre, preciso de ajuda. Pelo canto do olho, vi meu filho de sunga no sofá da sala, vendo televisão. Agora não, ela me disse, Depois falamos com ele, venha. A porta do banheiro estava derrubada, havia cacos de vidro e lascas de madeira no chão, um pouco de sangue também. O que houve aqui?, perguntei, Você está bem? Sim, estou bem, e você?, ela quis saber. Ergui a porta e a encostei no corredor, comecei a recolher os detritos e ela pegou uma esponja com saponáceo para esfregar o sangue do piso de cerâmica. Eu ia pensando no que responder, ainda sentindo alguns pedacinhos de conchas na língua, e logo me veio uma saudade de tomar banho de mar, e a fome, que finalmente começava a bater.
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O conto acima dialoga com o conto "Nado livre", um dos meus favoritos de João Gilberto Noll, incluído no livro A máquina de ser, de 2006. Quem tiver curiosidade pode ler os dois juntos e buscar as ligações de tema, enredo e personagens. Busquei refletir alguns aspectos da escrita dele, de maneira comedida -- qualquer outra coisa resultaria ridícula. Escrevi hoje meio de improviso, depois de ter relido o conto ontem, e vem parar aqui quase sem revisão. A ideia é não pensar muito.
É uma humilde homenagem minha ao Noll, falecido em 2017 e agora celebrado na primeira edição do festival Rastros de Verão, nova iniciativa do Fernando Ramos em Porto Alegre, que tem entre suas intenções fortalecer as pequenas livrarias de Porto Alegre, que voltam a se destacar na vida literária da cidade após perdas como a da Palavraria e agora a crise das grandes livrarias.
Participarei de uma conversa sobre a obra do Noll com Paulo Scott e Julio Conte, dia 18/2 (segunda), às 19h30, na livraria Bamboletras.
DG
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ⓒ Daniel Galera
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