dentesguardados #19 Queda
#19 Queda
Cair bem, cair mal
Não sei cair direito. Tive esse entendimento pela primeira vez andando de bicicleta na adolescência. A turma com quem eu pedalava nos bairros da zona sul de Porto Alegre no começo dos anos 90 era obcecada por "mountain bike", modalidade esportiva que tinha ainda sabor de novidade. Comprávamos revistas sobre o assunto, conversávamos sobre os melhores modelos e acessórios que podiam ser encontrados no Brasil e adquiridos com o poder aquisitivo de nossas famílias, alimentávamos toda uma mitologia de grupinho social a respeito do que era mais audacioso, desejável ou temível quando subíamos em nossas bikes mal-reguladas e explorávamos as estradas da Restinga, as trilhas do Morro do Osso ou a orla do Guaíba.
Dentro dessa mitologia estavam as Quedas. Um tombo de bicicleta não tinha valor em si, nenhum conteúdo isolado das circunstâncias do acidente: a queda era heroica se resultava de uma audácia testemunhada pelos outros, vergonhosa se resultava de uma hesitação no percurso ou de uma trapalhada, trágica se resultava de uma falha mecânica ou choque com um agente externo, como um carro saindo de uma garagem. Em todo caso, todo jovem ciclista da Esplanada almejava estar entre aqueles que sabiam "cair bem". Esse talento podia ser natural (há quem nasça com a desenvoltura corporal e o instinto necessários) ou adquirido (há quem aprenda técnicas ou evolua com o acúmulo de ocorrências), e tinha um aspecto prático (não se machucar muito) e outro estético. O aspecto estético sempre me fascinou. Um tombo glorioso possuía uma beleza plástica, algo de dança ou acrobacia, o corpo rolava minimizando o choque com uma fluidez cinética que podia fazer um observador suspirar e com um equilíbrio entre resistência e entrega que guardava um saber cobiçado. Todos nós caíamos. Alguns caíam bem. Eu caía mal.
Um dos resultados de cair mal era que os tombos eram "feios". Eu me machucava mais do que o necessário e a dança das minhas quedas era desconjuntada e antinatural, como a queda de um manequim na reconstituição de um crime. Cair mal gera medo. Aos doze anos, caí um tombo grave na casa dos meus avós, em Ibirubá. Fui parar no hospital. Bati a cabeça e perdi a memória por algumas horas, me escalavrei inteiro, parti ao meio a unha do dedão do pé, sofri um corte profundo entre o lábio superior e o nariz do qual ainda tenho a cicatriz. Essa queda era um troféu: contava a história aos meus amigos com gosto. Mas também foi um marco do meu medo de cair, o que me tornou excessivamente cauteloso. Numa trilha de areia, eu podia cair de tanto acionar o freio: a roda traseira travava e derrapava numa ladeira que só podia ser transposta seguramente a uma velocidade constante, e lá ia eu pro chão, derrubado pela precaução.
Esse assunto vai soar familiar pra quem leu meu romance Mãos de Cavalo, de 2006. A cena de abertura é sobre um menino de dez anos caindo um tombo de bicicleta, e na adolescência ele se forçará a sofrer quedas espetaculares para impressionar os amigos e se infligir uma violência performática e algo masoquista; uma violência estetizada e como a dos filmes e HQs que cresceu lendo, nos quais a dor física era trabalhada numa chave de purificação, martírio e santidade. Eu mesmo não fazia isso, juro. Eu desejava jamais cair e nunca teria coragem de me automutilar fora dos domínios da fantasia. Mas a noção de "cair mal" evidentemente fermentou na minha imaginação, a ponto de aos vinte e poucos anos eu a trazer como um ingrediente central de um romance fictício.
Antes de me tornar adulto eu tinha largado a bicicleta. A turma se afastou e eu levei toda a minha atividade física para a natação, um esporte sem lugar para quedas (fiquei pensando agora se o afundamento poderia ser considerado uma queda, e concluí que não) e no qual eu manifestava, aí sim, uma desenvoltura corporal inata. O prazer de me sustentar e impulsionar na água deve ser análogo ao prazer que sentem os que sabem jogar bola, saltar, arremessar et cetera quando se dedicam a seus esportes. Pratiquei também escalada indoor por cerca de um ano: nesse caso a queda adquiria outro significado, quedas falsas, interrompidas por cordas e grampos, curtíssimos eventos pendulares que injetavam microdoses de adrenalina em condições seguras, sem choques com o chão (às vezes com a parede). Mas sempre tive um pouco de vertigem de alturas, e nunca fui escalar na pedra.
Levantar machuca
No fim do ano passado, tomei conhecimento de um workshop que seria ministrado pela dançarina Janaína Ferrari. A Taís tinha ido assistir a um espetáculo dela, Rinha, e ficou muito impressionada; o relato dela me deixou pra lá de instigado. Uma das aulas do workshop era focada justamente nas quedas. A ideia de levar essa minha vivência pregressa das quedas para uma outra dimensão física e mental, talvez ressignificar essa relação com o cair, e com "não saber cair", me encantou. Acabei não conseguindo participar daquele curso, mas então a Jana anunciou para janeiro deste ano um "Intensivo de queda e flutuação". Parecia um chamado. Me inscrevi.
Eu caio mal, mas danço ainda pior. Tudo que não seja pular e se sacudir violentamente ao som de música pesada implica em doses cavalares de autoconsciência e um pouco de vergonha, e raramente aceitei dançar na presença de outros sem estar devidamente embriagado. A razão me diz que no fundo ninguém se importa e que dançar é seguir aquilo que nosso próprio corpo pode fazer, e eu escuto; mas a razão não manda nessas horas. Além da questão da queda, me senti atraído por uma oportunidade de quebrar um pouco essa autoconsciência de me expressar com o corpo e praticar o improviso, outra ideia diante da qual a primeira reação é me encolher. E sei lá, estou com quarenta e quatro anos. Se há antídoto para a decadência do organismo ele só pode ser tatear novas possibilidades de ação e interação, que são também novas possibilidades para a mente e a imaginação.
Os exercícios que pratiquei com o grupo naqueles três dias foram tão acessíveis quanto intensos. Uma boa parte da pesquisa trazida pela Janaína consiste em conduzir o corpo a certos estados de relaxamento e autopercepção e então explorar sua interação com a gravidade, com o ar e com o limiar fascinante entre entrega e decisão no momento da queda. Na surpresa do choque com o chão há um resíduo de agência; na escolha de um rumo para os movimentos há um componente de surpresa, por menor que seja. Fomos incentivados a perceber tudo isso, a buscar diferentes medidas de controle. Estivéssemos em pé ou caindo, ela nos lembrava de que toda pressão para baixo inclui uma elevação concomitante.
Em um exercício em duplas que consistia em aplicar pressão no corpo do outro ou resistir à pressão aplicada até que ela fosse repentinamente retirada, me peguei sentindo alguma frustração quando a queda resultante se dava de acordo com o que eu antecipava, e uma satisfação inversamente proporcional quando essa queda configurava ou contorcia meu corpo de maneira surpreendente, mesmo que resultasse num choque mais desconfortável. Em outro momento, estávamos executando quedas repetidas para a frente e para trás, e lá pelas tantas percebi que me levantar após cada uma dessas quedas ia se tornando mais desconfortável do que cair: havia o cansaço, mas também dores nos joelhos, desequilíbrios. Investir contra a gravidade pode ser mais árduo que sucumbir a ela. Cair pode ser prazeroso e criativo. Levantar também machuca.
Outro aspecto que me afetou bastante foi o papel da linguagem nessa dança. Boa parte dos exercícios eram executados de olhos fechados. Janaína nos propunha caminhos e percepções falando constantemente, e era fantástico ouvi-la. A linguagem para falar dos corpos não é óbvia. Para além de um domínio inspirado da base vocabular anatômica -- pensar em ossos empilhados, em ísqueos e patelas, em vísceras pesando ou se dissolvendo --, é preciso recorrer a metáforas adequadas. Os pés "não podem lutar contra o chão", um movimento é como "um elástico desses de roupa, mas um elástico gasto, já meio frouxo", estar parado em pé envolve uma "pequeníssima dança", o ar se transforma em gelatina e nos apóia, entra pelos buracos. Ler ou ouvir palavras sobre o corpo é uma coisa, dançar enquanto ouvimos é outra: o trânsito de duas vias entre verbo e carne vai nos alimentando com informações sobre o corpo que podemos reter, e toda uma região conjuntiva do nosso conhecimento do corpo vai se reconfigurando e expandindo. Em alguns momentos senti estar em contato empírico com a ideia de que toda linguagem deriva do corpo, do mundo sensível, da concretude do ambiente. Se você tem a intenção de descrever o mundo em palavras, essa é uma constatação que pode ser transformadora.
Interlúdio: Duas associações
Primeira associação
Essa camada da linguagem se sobrepôs a uma noção de onde cada coisa está no próprio corpo -- a propriocepção -- que eu já vinha aprimorando há alguns anos com os exercícios de treinamento funcional. Essas práticas envolviam um pouco de linguagem, menos metafórica e mais direta, mas se calcavam sobretudo na ação: um desequilíbrio, ineficiência ou desconforto num exercício podiam ser contornados mudando o ponto de apoio na planta do pé ou mobilizando uma musculatura até então desconhecida pela consciência. Antes dos treinos funcionais, eu nunca tinha me dado conta de que usamos os glúteos e abdominais para carregar uma caixa: pensava somente em pernas e braços, no máximo em ombros. Com o tempo, fui ampliando esse autodomínio para uma miríade de músculos e ossos nos quais jamais pensava. Dores sumiram. Potenciais físicos se descortinaram. Me sinto mais forte e capaz aos quarenta do que aos vinte ou trinta.
Segunda associação
Em 2011, eu e a dançarina e amiga Tatiana Rosa participamos do projeto "Duetos", que integrava a 8a Bienal do Mercosul. Instigados a trabalhar juntos, bailarina e escritor, bolamos uma apresentação intitulada Não pára, que descrevo assim no meu site: "Narrativa verborrágica que versa sobre a impossibilidade de que qualquer coisa no mundo seja imóvel é lida em torno da bailarina que executa uma coreografia de slow dance." Slow dance, Tatiana me ensinou, é uma ideia apresentada em 1967 pelo bailarino Steve Paxton, consistindo em dançar em pé, suspendendo movimentos voluntários. O dançarino está "parado", mas também não está. O corpo nunca está parado. A pilha de ossos, músculos e vísceras executa inevitavelmente a sua pequena dança. Enquanto a Tati dançava sem sair da posição ou mesmo executar gestos aparentes à distância, eu circulava em torno dela lendo um texto que aglomerava ideias da filosofia e da ciência a respeito do movimento, recuando, gesticulando, jogando aos ares as folhas lidas e com frequência olhando para ela e repetindo energicamente as palavras "Não pára". Ao terminar de ler, eu saí do espaço da apresentação na Casa M pela porta da frente sem dizer palavra, caminhei até achar um táxi, entrei nele, fui até em casa e sentei numa poltrona, encerrando minha participação.
Queda e flutuação
A queda talvez seja uma metáfora óbvia demais para crises pessoais ou sociais, mas é também extremamente elástica e está sempre disponível, e algumas vezes é o que temos. Em 2023, quase caí um tombo feio, e se não cheguei a me estatelar, talvez tenha executado aquelas sequências de tropeços em que braços e pernas e cabeça se lançam para todos os lados até que enfim, como se a gravidade ou a força que deseja nos derrubar tivesse perdido o interesse, restamos em pé e nos aprumamos, esbaforidos, olhando em torno como se uma banca julgadora oculta desse notas à apresentação.
Estou falando de ansiedade, falta de esperança, medo do futuro. Sei que muitos leitores saberão a que me refiro, pois quanto mais converso com as pessoas sobre isso, mais percebo que essa arca instável está carregando quase todo mundo pelo mar revolto da precariedade do trabalho, das desigualdades, da mudança climática. Ninguém entende mais o tempo, que se tornou esponjoso, atrelado a ciclos artificiais e infinitesimais que são alienígenas a nossos corpos, sonhos e afetos. Salários e bolsas e cachês, quando existem, já não pagam quase nada. Quem trabalha com cultura ou cria arte precisa ouvir que seu empenho é socialmente inútil da boca das mesmas pessoas que exploram (gratuitamente ou quase) esse empenho para fazer fortuna com seus institutos, plataformas, IAs, gadgets. Quem trabalha com a maioria das outras coisas também se sente encurralado.
2023 foi difícil. Perdi uma confiança que jamais tinha perdido, e isso me desorientou. Mas acho que consegui me reequilibrar. Teve papel fundamental nisso o surgimento de uma ideia para um romance. Ainda não consegui me organizar para começar a escrever o romance, mas ter a ideia, poder pensar nela, ler sobre ela, anotar sobre ela, me deu um eixo que vinha faltando. Se o ano que começa me parece mais promissor é porque tomei decisões para organizá-lo em torno da vontade da escrita. Os riscos são grandes, mas do tipo que posso encarar com ânimo. Contei ainda com a compreensão, a paciência, os estímulos e os puxões de orelha de quem amo e me ama. Participar de um workshop de dança também fez parte desse desejo de retomada.
A versão da metáfora da queda que me parece fazer mais sentido não é a de cair e se segurar, ou cair e levantar, e tampouco é a distinção entre cair mal e cair bem que carreguei por anos comigo a partir das peripécias ciclísticas da juventude. Eu prefiro a versão da Jana, de que toda pressão pra baixo inclui uma elevação. Ou como escreveu a Tati Rosa num trecho da sua dissertação: "Elevar-se do chão é empurrar o chão, nunca é se afastar dele". A metáfora mais poderosa, concluo, é a própria dança.
Queda e flutuação. O ar espesso que sufoca pode dar sustentação. A gravidade nos puxa e o choque inesperado deixa aquele resíduo de agência, e ele merece nossa atenção, pois pode ser vital.
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Leitores consistentes dessa newsletter devem ter reparado que não enviei as edições de dezembro e janeiro. Foi mal. Não deu. Às vezes não dá. Mas aqui estamos, de casa nova, ainda mirando na periodicidade mensal.
Vamos às novidades: o TinyLetter, que eu usava pra enviar de graça a newsletter, vai ser interrompido esse mês pelo MailChimp. Mais uma coisa bela da internet que foi eliminada por uma grande plataforma.
Decidi migrar a "dentesguardados" para o Buttondown, já que o Substack dá sinais de sofrer da mesma verminose de tolerância a nazistas e outros discursos de ódio que vemos tomar conta do X. O Buttondown é limpo e simples, não tenta brincar de rede social, mas não é gratuito: a mensalidade pra poder enviar a newsletter para até 5000 assinantes é de 29 dólares/mês. Essa é a primeira edição na nova plataforma, e espero que funcione bem e que a experiência de leitura não seja prejudicada. Qualquer coisa estranha, por favor me avisem.
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Optei por não restringir esses textos a assinantes pagos nem criar uma versão paga com conteúdo extra. Por um lado, eu não ficaria feliz fazendo isso. Criei a newsletter pra ter um espaço de contato mais genuíno e próximo com meus leitores, e buscar monetizar dessa forma não me pareceu o caminho, pelo menos por ora. Por outro lado, sobrevive em mim aquele espírito meio experimental, meio utópico da internet pré-plataformas, e me anima testar um modelo em que cada um paga quanto quiser, com a frequência que quiser. Se quiser.
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Vamos ver o que acontece? Se não rolar nem a mensalidade do Buttondown, em alguns meses encerro. Mas quem sabe role. E se rolar mais que isso vocês poderão viabilizar uma newsletter com uma frequência maior. E se rolar mais ainda, poderão acelerar meu trabalho no próximo livro :)
Tenho planos legais pra esse ano. Além de escrever o livro novo, estou planejando uma oficina permanente e presencial (em Porto Alegre) de acompanhamento de escrita e outros cursos que poderão ser online. Sigo também fazendo leitura crítica de manuscritos.
Obrigado por tudo até agora e pelo que virá. Caiam bem, flutuem melhor ainda.
--DG
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