dentesguardados #18 Pacifismo
Estudei os primeiros cinco anos do ensino fundamental num colégio particular judaico em São Paulo. Além do currículo básico tínhamos aulas de hebraico. Líamos a Torah. Celebrávamos o shabat e todas as datas importantes do calendário religioso. Isso na escola. Em casa mesmo não havia a presença consistente de nenhuma religião. O lar da minha família sempre foi um ambiente laico no qual as religiões entravam na medida em que eram parte constituinte das esferas sociais em que estávamos inseridos: no Natal nos meus avós paternos eu via presépios e era lembrado de que Jesus era filho de Deus e nasceu pra nos salvar e trazer uma mensagem de amor ao próximo, mas em casa nem sempre tínhamos pinheirinho. No convívio com meus colegas eu acendia velas na menorá e comia matzah e era ensinado que aquele havia sido o alimento do povo judeu no exílio no deserto do Egito. Na minha infância, judaísmo e cristianismo eram crenças e práticas organizadas de cuja existência eu estava consciente mas que no fundo nunca me diziam nada.
Se o cristianismo chegava a mim porque era o monoteísmo predominante no país em que eu vivia, o judaísmo fazia parte da minha vida porque minha família materna é judia. Nunca fui constrangido a seguir a religião, mas ficava fascinado com os objetos de prata que havia na minha casa e nos lares da minha avó e tia-avó: castiçais, cinzeiros em forma de Israel com os nomes das doze tribos em caracteres hebraicos. A escola judaica era perto da nossa casa em São Paulo e era um bom colégio, mas suponho que pelo menos parte da escolha tinha a ver com me propiciar uma aproximação do judaísmo para ver se eu me envolveria — eu também era levado a centros culturais no Bom Retiro e frequentava o clube Hebraica pra nadar ou brincar de jogar tênis com um dos meus colegas. Depois desses anos da infância, nunca mais estive próximo da comunidade judaica. Com exceção das machanés.
Uma das minhas tias é casada há décadas com um rabino americano. Ela leciona hebraico em escolas e ele dirigiu por muito tempo uma machané, um acampamento de férias de verão para a comunidade judaica no estado de Indiana. Fui enviado por meus pais duas vezes a esse acampamento, de bom grado. Tinha respectivamente treze e quinze anos quando isso aconteceu. Em cada ocasião passei um mês inteiro lá convivendo com a comunidade judaica local, cantando hinos, montando peças de teatro, discutindo questões religiosas, mas sobretudo me divertindo, aprendendo inglês, me forçando a me tornar mais independente. Nas cerimônias, os cantos coletivos em salões e anfiteatros ao ar livre muitas vezes me levavam a um estado de percepção do sublime, talvez o mais perto que já cheguei de um sentimento religioso.
Essas experiências me marcaram, mas não tanto devido ao mergulho na cultura judaica: guardo mais a descoberta da minha paixão por tocar violão com os músicos que estavam no acampamento, o esforço de conseguir me comunicar em inglês, a angústia de estar sozinho longe de casa no meio de uma legião de desconhecidos, noites de choro secreto no meu beliche seguidas da alegria delirante de ser um adolescente bem acolhido por um grupo ao qual não pertencia — o brasileiro, o latino, o cara que não era bem judeu ou pelo menos alegava não ser. Algumas das primeiras paixões não correspondidas. Pelo menos uma paixão não retribuída. Muita timidez, muito receio de tudo, muita satisfação em superar um dia após o outro e entender que eu conseguia, que era estimado. Muitos amigos e amigas de verdade, dos quais lembrei vividamente por anos.
E o convívio afetuoso com meus tios e primos, os cheiros da casa deles, os esquilos no pátio, minha tia me levando a meu pedido em shoppings e fast foods que não existiam no Brasil dos anos 1990, meu tio me levando a uma lanchonete preferida dele na vizinhança negra de Indianapolis para comprar o frango frito e apimentado que ele adorava e que depois comíamos assistindo a filmes americanos violentos na TV a cabo com dúzias de canais: Sam Peckimpah, Duro de Matar. E a arte de estar sozinho, de me conciliar cada vez mais com minha dependência dos momentos de isolamento, de transformar cada um deles em um instante de investigação íntima e de observação do mundo.
*
Para os judeus, eu sou judeu, pois sou filho de uma judia. Mas nunca me identifiquei como judeu e ainda não me identifico. Isso não tem a ver com uma rejeição da história ou da cultura judaicas, que admiro. Tem a ver, creio, com o fato de que nunca me senti atraído por qualquer religião organizada, ou por organizações de qualquer espécie. Não consigo evitar de encarar ritos com uma certa desconfiança. É uma aversão que me parece pré-programada, e da qual não me orgulho nem me ressinto. Me ressinto de nunca ter investigado a fundo minhas ancestralidades. Isso sim eu experimento como um defeito. Mas sei que meus bisavós maternos vieram ao Brasil antes da Segunda Guerra, fugindo dos pogroms na Rússia, de uma longa história de perseguições e violências.
*
Tenho uma rejeição medular por deuses e pela própria noção de perfeição. Passei anos na escola judaica lendo e aprendendo e discutindo a respeito de Deus, mas demorou para que eu me detivesse nesse assunto pela primeira vez. Por anos, a questão me pareceu simplesmente irrelevante. Quando por fim intuí sua relevância, fiz algumas perguntas a adultos e tive uma convicção cristalina, da qual ainda me recordo e que jamais me senti tentado a revisar, de que não há Deus ou deuses. Hoje em dia refinei essa convicção estendendo-a à noção de perfeição, que para mim não passa de uma abstração, um sob-produto de uma certa lógica aplicada a uma necessidade psicológica.
Em suma, muitas das premissas que aproximam os espíritos da fé ou da dedução intelectual de que um deus possa existir sempre me pareceram falaciosas. Uma das coisas que sempre gostei no judaísmo em relação a outras religiões é que ele parece absorver com muita mais naturalidade a descrença ou ao menos a secularidade. Não é preciso ter fé para ser judeu. A filiação é de outra espécie. Sempre gostei disso, mas não a ponto de me filiar. Não estou esperando pelo messias e muito menos por seu retorno. Justificativas bíblicas para o que quer que seja me soam pura perversão.
Ser judeu e ao mesmo tempo não ser. Abrir mão dessa herança sem de modo algum desaprová-la. Ocupar essa posição ambígua nunca me incomodou, e isso nunca nunca me foi cobrado. (Exceto quando me chamaram pra uma excursão de escritores brasileiros bancada pelo estado israelense para visitar o país e na área de embarque do aeroporto comentei com os organizadores que minha mãe era judia e todos ficaram espantados e me disseram que se soubessem eu não teria sido convidado, pois o passeio era pra não judeus, que é o que de fato me considero.)
*
No último mês, pela primeira vez em muito tempo, me vi refletindo de novo sobre minha relação tangencial com o judaísmo diante da guerra que irrompeu. Não vim aqui tocar nesse tema pra fornecer conclusões ou sugerir que tenho algo importante a acrescentar. Não tenho. Mas o massacre praticado pelo Hamas em seu ataque terrorista afetou amigos e familiares, mexeu nesse arcabouço de relações, proximidades e distanciamentos que tive ao longo da vida com o judaísmo e a comunidade judaica. Entender como me sinto enquanto esse conflito se desenrola tem sido um processo tortuoso, destinado a não se resolver.
Às vezes, duas ou mais coisas aparentemente auto-excludentes ou contraditórias podem ser verdade ao mesmo tempo. Ser judeu e não ser judeu. Abominar o ataque terrorista do Hamas e abominar as ocupações e crimes do estado israelense contra os palestinos. Defender o direito de Israel a seu estado e entender que a criação desse estado se deu mediante o trauma do Holocausto mas também de influências de fundamentalismos religiosos e interesses coloniais de longa data que desataram um processo interminável de mútuas agressões e duelos de mitos e narrativas. Defender o direito dos palestinos a seu estado e entender que um massacre terrorista em grande escala contra civis não é uma forma justificável de resistência. Defender que uma nação tenha direito de autodefesa e julgar inaceitável o exercício desse direito por meio de práticas genocidas. E o combate necessário aos abusos do estado israelense sob o atual governo não exclui o fato de que há um miasma de antissemitismo se espalhando na Europa, no Brasil, nas redes sociais, onde “o judeu” é conclamado a justificar abusos de indivíduos ou parcelas da sociedade que não são meramente judeus, e sim atores insuflados, como sempre, por uma variedade de agendas e ideologias. (E isso não torna menos graves os preconceitos e generalizações contra "o árabe", "o palestino".)
Enumerar esse tipo de contraposição não nos leva muito longe. Não existe nada que eu possa acrescentar a essa discussão, por limitações minhas e pela natureza complexa e escorregadia de tudo que compõe o problema. As vozes que realmente importam e devem ser ouvidas numa hora dessas são as de especialistas renomados e as de quem perdeu, de ambos os lados, o incalculável nesse conflito: seus filhos e familiares, sua integridade física, sua dignidade, sua esperança de sobreviver. Podemos buscar saber mais sobre o que aconteceu no ano de 1948 nesse podcast [em inglês], por exemplo, para compreender como as narrativas de israelenses e palestinos estabelecem um impasse entre vítimas, para o qual só se poderia pensar numa saída a partir do momento em que cada lado se permite reconhecer de que maneiras o outro foi e está sendo vitimado, tanto um pelo outro quanto pelos interesses históricos de outros povos e nações.
*
É nessas ocasiões que a importância da reflexão ética se apresenta com urgência. A ética, ao contrário dos códigos morais, não fornece regras ou prescrições para determinar o que é certo ou errado. Pensar eticamente é um procedimento ao qual nos habituamos a partir de um esforço consciente, é estabelecer um conjunto de valores a partir dos quais se pode reagir da forma menos danosa possível ao que se apresenta em cada momento. Parte-se daquilo que é inadmissível para tentar atingir o desejável.
A vida é o valor supremo de uma ética digna do nome. Um massacre terrorista de civis com requintes de barbarismo não é defensável nem mesmo sob a ótica de uma resistência continuada a uma opressão territorial e étnica. O bombardeio inclemente e desproporcional de uma população cercada e com acesso bloqueado a socorros e necessidades básicas é uma tragédia humanitária criminosa, e não um justo ato de autodefesa. Como podemos ser capazes de sequer discutir se a morte de centenas ou milhares de crianças aqui ou lá é um mal necessário em qualquer circunstância? Uma consciência treinada em valores éticos só pode reagir de uma maneira: exigindo um cessar-fogo e corredores humanitários, exigindo condenação e coordenação internacional para que se detenha o Hamas e se apoie, entre israelenses e palestinos, as vozes e organizações que se opõem ao extremismo.
Se não pudermos estar de acordo numa condenação aos abusos mais básicos contra a vida, não poderemos discutir racionalmente caminhos para coexistências cada vez mais pacíficas. A ética com que se deve começar não equivale a ter planos realistas ou posicionamentos públicos bem delimitados: esses virão depois, uma vez que se possa pressupor a humanidade dos outros e ter a própria humanidade pressuposta por eles. A autodefesa só pode ser o segundo passo de uma reação. O primeiro passo é estabelecer o que é, e o que poderá ser no futuro, aquilo que se está defendendo. Quem é/sou esse indivíduo que defendo, quem é esse estado ou esse povo que defendo e ao qual pertenço? Pois quando a poeira baixar, veremos onde estava o nosso coração. E precisaremos viver com isso.
Ética começa naquilo que somos, no que estamos dispostos a ser. Pensando assim, é possível ter a percepção de que para garantir minha integridade plena eu precise garantir também a de todos os outros que possam estar em situação semelhante à minha; de que ninguém ou nenhuma população ou espécie alguma há de ser considerada “matável” sob pena de estarmos destruindo justo aquilo que estamos empenhados em defender: o valor da vida. E aí se pode começar a pensar em chegar a algum lugar.
Começar. Pois não se deveria parar aí. Condenar moralmente atrocidades é o primeiro passo, mas a ele deve se seguir a procura por conhecimento embasado, sem o qual a empatia se dispersa numa acomodação pessimista. Como diz Judith Butler nesse artigo: “(…) não podemos nos dar ao luxo de desviar o olhar da história da injustiça em nome de uma certeza moral, porque assim nos arriscaremos a cometer outras injustiças, e nossa certeza acabaria por se basear em fundamentos cada vez menos sólidos. Por que não podemos condenar moralmente atos abomináveis sem perder nossa capacidade de pensar, conhecer e julgar? Certamente podemos e devemos fazer as duas coisas.” Da minha humilde perspectiva, concordo com Butler também quando diz que o resultado desse esforço precisa ser a defesa de um pacifismo não ingênuo, que insista na interrupção das escaladas de violência em nome da proteção da vida humana, rejeitando qualquer narrativa que aponte para a aniquilação ou desumanização de adversários.
*
O início desse texto, sua parte mais pessoal, não está ali pra fundamentar as posições da segunda metade. Mas pensar nesse tema me levou a pensar também em de onde estou falando, e escrevi por uma necessidade de compartilhar um pouco as lembranças e os sentimentos, incertos ou categóricos, que fervilharam em mim em torno desse assunto no último mês. Obrigado pela leitura. Meus sentimentos a todos que têm família ou ligações de qualquer espécie com as regiões afetadas. Que a paz chegue logo.
*
Essa edição devia ter sido enviada domingo passado, mas não deu. Estava evitando esse tema da guerra pois não sentia que tinha nada a dizer que acrescentasse, mas por fim resolvi ir em frente, acrescentando ou não. O outro assunto à disposição eram as pesquisas pro meu próximo romance, coisas bacanas que tenho lido e anotado (a adoção de uma lapiseira no lugar de canetas parece ter destravado minha mão, isso não acontecia há anos), mas temo que compartilhar essas coisas será um erro nesse ponto do processo, quando a imagem mental que tenho do romance ainda é uma névoa que pode se dissipar com um gesto precipitado. Talvez eu precise escrever algumas edições mais leves, comentar uns jogos de videogame ou algo assim. Seja como for, até o primeiro domingo de dezembro (espero). -- D
A newsletter 'dentesguardados' é aberta a todos e aceita doações espontâneas dos leitores que desejarem bancar a mensalidade do Buttondown (29 dólares/mês) ou apoiar a minha escrita de modo geral. Considere clicar aqui ou usar a chave PIX "contato@danielgalera.info" para enviar um pagamento de qualquer valor. Agradeço de coração :)
Mais informações sobre mim: http://danielgalera.info
ⓒ Daniel Galera
Don't miss what's next. Subscribe to dentesguardados: