dentesguardados #17 Sujeitos
Uma proliferação de sujeitos
O sol que vejo pela janela arrancando o verde vibrante das folhas das árvores parece uma força secreta da natureza escondida desde tempos imemoriais, como se a matéria escura do universo tivesse resolvido se mostrar. Essa frase é horrível mas é boa também e eu faço o que eu quero e vou deixar. Porque a sensação de ver o sol de novo (escrevo na tarde de quinta-feira) depois de três semanas de chuva quase incessante no Rio Grande do Sul dá licença pra esse tipo de grandiosidade canhestra. Ou talvez eu apenas esteja imerso demais em Cormac McCarthy, que constrói mundos com esse tipo de frase soando elemental, e não canhestro. Já traduzi quase setenta por cento de "Suttree". Vou estourar meu prazo em meses, mas estou feliz com o trabalho e meu editor é compreensivo.
Mas foco. Estava pensando no sol e na chuva. O termo da vez pro que aconteceu no meu estado é evento climático, que pra mim soa pertinentemente ambíguo: um evento, dependendo do texto que habita, pode ser um acontecimento excepcional e catstrófico ou apenas algo que acontece, como um orgasmo ou um elétron trocando de órbita num átomo ou a angústia de uma ursa polar contemplando uma placa de gelo solitária no oceano calmo. A chuvarada que matou dezenas de pessoas e desabrigou milhares e destruiu pontes e vidas foi excepcional mas também, na vivência do presente dessa tragédia anunciada, apenas algo que acontece: os cientistas — como Francisco Aquino nessa entrevista de 2021 — estão avisando há tempos, com evidências e previsões sólidas. E explicações igualmente sólidas. Nossa espécie está fazendo isso.
Moramos num local seguro e fomos poupados de consequências piores, pelo menos dessa vez. Internet lenta, banheiro e calçados mofados, doenças respiratórias, opressão psicológica moderada, transtornos sem gravidade. Mas cenas de destruição e dramas humanos ocupam nossas várias telas e são descritos por repórteres pasmos no rádio do carro. Ontem o Guaíba avançou sobre a orla, foi contido pelo famigerado muro da Mauá, encobriu toda a nova área de lazer às margens da av. Beira Rio, bateu em ondas fortes contra o calçadão de Ipanema, um dos cenários da minha juventude. Já tinha visto Ipanema alagada, com ondas avançando sobre a rua e batendo nos muros das casas. Quando foi? Final dos anos 1990? Não lembro exatamente. Mas o que era evento excepcional tende a ser algo que simplesmente acontece, pois a mudança climática intensificou as estiagens e ciclones no sul do Brasil e isso é só o começo. A consciência microscópica dos fatos locais da tragédia é aflitiva por si só, mas vem acompanhada e muitas vezes se torna indistinguível da consciência macroscópica de um regime climático emergencial em que os índices salutares aos quais nossa espécie se adaptou atingem níveis incontroláveis e potencialmente nocivos à vida.
O evento climático só ocorre porque existe em relação a outros eventos persistentes, que não irão embora só porque de repente nos tornamos forçosamente sensíveis à gravidade do problema. E a partir daí você pode escolher pensar na economia, na produção de alimentos, na saúde mental, nas migrações, nas comunidades alagadas da sua região, nos livros que pode doar para reconstruir bibliotecas arruinadas em escolas de cidades pequenas, nos seus filhos e netos, no grau de solidariedade expresso nas suas postagens do Instagram, nas abelhas, na extração de petróleo na foz do Amazonas, nas guerras. O que você não vai conseguir, nem que queira, é pensar em tudo. Mas persiste a sensação de que tudo está pensando em você.
Você pode pensar, entre tantas coisas, na búfala e nos lobos marinhos. Na quarta-feira, dia 20 de setembro de 2023, uma búfala resgatada por um pescador na Ilha da Pintada, próximo a Porto Alegre, foi identificada como propriedade de um produtor rural de Venâncio Aires, a cem quilômetros dali. A resistência da búfala arrastada pela enxurrada é comovente, assim como a consideração demonstrada pelos humanos em relação aos animais. [Fonte] Sobre o esforço do jovem pescador pra resgatar a búfala, o criador afirmou: “A paixão pelo campo, a paixão pelos animais faz a pessoa se pôr em risco, de laçar um animal, uma espécie que talvez ele não está habituado a manejar, se arriscar, durante a noite, pegar em barco, puxar. Essas pessoas são acima da média.” E o pescador: “Pensei que não poderia deixar o bicho morrer. Peguei o barco e saí com a lanterna clareando para ver se achava ela. Eu achei ela perto do cemitério, já cruzando, tentando subir de novo nadando, nisso eu amarrei no barco e reboquei ela.” A presidente da Associação Sulina de Criadores de Búfalos: “A gente pede a todos que encontrarem animais para não carnear, mas devolver. São produtores rurais que perderam tudo, e os animais, muitas vezes, são a fonte de renda destas propriedades.”
O que me desperta interesse nessa ocorrência é que tudo se entrelaça, humanos e outras espécies, evento climático, economia, solidariedade, mas é a empatia pelo não humano que se torna um índice do que é extraordinário. A búfala aguerrida é cativa do produtor que tanto lhe demonstra carinho, e sabe lá o que o destino lhe reserva. Provavelmente, ser carneada ou explorada até o fim da vida. Mas precisamos lembrar nessas horas de Donna Haraway e seus saberes situados, no vir-a-ser-juntos que recusa maniqueísmos e fórmulas. Veio a enchente e nesse caso, ao que parece, todos fizeram o seu melhor.
E em Rio Grande, o aumento de nível da Lagoa dos Patos levou dois leões marinhos ao encontro de dois cães, encontro registrado em vídeo. Os mamíferos aquáticos estão só de cabeça pra fora, trocam um rosnado entre si e depois empinam os focinhos numa pose que associamos a esnobismo mas que pode ser de curiosidade, receio, talvez deferência, enquanto a dupla de cães fareja, explora, late e abana os rabos a menos de um metro dos leões marinhos. A cena não é meramente inusitada. Parece conter uma mensagem cifrada. Talvez a ver com essas outras espécies que normalmente nunca se encontram discutindo a seu modo esse descontrole da intempérie, compartilhando sua perplexidade numa linguagem que, apesar das distâncias, nos alcança. Não consegui deixar de pensar nos ancestrais comuns dessas espécies, e também naquilo que as diferencia acima de tudo: uma delas foi caçada implacavelmente, teve a população reduzida e segue sofrendo com o abalo a seu ecossistema; a outra se misturou aos humanos a ponto de alcançar conosco uma espécie de simbiose, e com raras exceções o seu abate ou consumo como alimento é visto como tabu. As pet shops que se alastram na paisagem urbana os tragam involuntariamente (ou talvez nem tanto) para dentro do mesmo vórtice de consumo supérfluo e produção desenfreada que impele a industrialização apocalíptica que nos trouxe até aqui.
*
Penso muito sobre essa sensação mencionada acima, de que tudo está pensando em você. Na verdade, pensar não é o verbo correto aqui. Não se trata de pensamento racional, ou mesmo de cognição como a entendemos normalmente. Um verbo melhor talvez seja considerar, ou levar em conta. É a sensação de que nos é direcionada alguma espécie de importância vinda de todas as coisas. Todas mesmo. Mas não se trata de uma importância hierárquica, em que cada um de nós, como alvo dessa atenção, seria em algum sentido especial ou superior. É o inverso. As coisas das quais dependem nossa subjetividade importam para nós no mesmo sentido em que importamos para elas. De onde se deduz que possuem algum modo de subjetividade. Tudo que compartilha um mesmo mundo se percebe, embora se perceba de modos distintos. Mas é mútuo.
Penso nisso quando observo eventos climáticos, búfalas que nadam longas distâncias ao sabor das forças da natureza e da civilização, leões marinhos e cães terrestres se farejando com curiosidade graças a uma enchente. Devemos evitar o antropomorfismo na nossa apreciação dos fenômenos, mas não só isso. Devemos adotar a premissa de que nossa própria experiência -- pessoal, humana -- está longe de nos dizer tudo a respeito do que signfica ser um sujeito. O tabuleiro do universo pode ter mil dimensões ocultas, mas o jogo é horizontal. As peças não têm como saber de que modo preciso se contaminam, mas fazem bem em saber que se contaminam.
Alfred North Whitehead (1861-1947) foi um matemático e filósofo que dedicou a fase tardia de sua carreira a criar um sistema filosófico e um vocabulário para uma natureza em que tudo está incluído, tudo importa, tudo se percebe e nessa mútua percepção se cria. Soube da existência de Whitehead muitos anos atrás, navegando no Tumblr. Alguma citação me instigou e comprei um livro dele meio às cegas, Modes of thought. Li, sublinhei 1/3 do texto, compreendi 1/10 do que lia, mas era o tipo de leitura que alargava a mente e a sensibilidade, como correntezas cavando túneis subterrâneos. O que esse cara queria dizer com “importância”, “preensão”, “expressão”, “organismo”? Nunca estava totalmente claro, mas quase sempre fazia sentido. Naquela “filosofia do processo”, a noção de organismo era central, e nada podia existir sem alguma coordenação com o ambiente, e as experiências, sem distinção ou hierarquia, faziam parte do mundo como os átomos e números.
Recentemente, fiz o curso que o Fernando Silva e Silva deu sobre Whitehead pela Associação de Pesquisas e Práticas em Humanidades, a APPH (não confundir com a Associação de Pesquisas e Práticas em Pós-Humanidades, a APPPH, que existe somente na ficção distópica da minha novela “Tóquio”, incluída em O deus das avencas.) Guiado por ele, me aprofundei em algumas dessas ideias e conceitos. A intenção de Whitehead era desmanchar aquilo que chamava de “bifurcação da natureza”, a cisão epistemológica, operada na modernidade por meio da ciência e outros saberes, entre aquilo que são meros fatos e o que são valores, conceitos psíquicos et cetera que incidiriam sobre esses meros fatos. Ondas eletromagnéticas são fatos concretos da natureza, já a cor vermelha é uma interpretação mental, e como tal essencialmente ilusória, dessas ondas. Neurônios são células construídas pela evolução das espécies, a felicidade é uma ilusão experimentada pelo sujeito cujo crânio está ocupado por esses neurônios. Whitehead não estava disposto a engolir essa baboseira. Para ele, todas as nossas percepções sensíveis estão no mesmo barco. A partir das descobertas científicas do início do século vinte, argumentava, essa divisão das experiências entre legítimas e ilegítimas, entre reais e ilusórias, era uma falácia a ser dissolvida.
Para romper de vez com a bifurcação, falar em “percepção” não basta. Whitehead despeja conceitos novos em ritmo alucinante. É tudo muito abstrato, mas ao mesmo tempo rigorosamente disposto dentro do sistema que ele vai esboçando. A “falácia da concreção deslocada”, por exemplo, nega que seja possível abstrair um ponto no espaço ou um instante no tempo. Tais ideias seriam invenções -- úteis para nós, sem dúvida -- da física matemática moderna que não correspondem à natureza ou ordem concreta das coisas.
O que ele propõe então? Não é um idealismo, nem um pampsiquismo. Sua resposta ao mecanicismo da física e matemática não é a noção de que tudo é mentalidade ou cognição. Whitehead traz uma espécie de “realismo provisório” centrado na ideia de organismo. Introduz o conceito de preensão, que não vou fingir que entendi 100%, mas é uma espécie de apreensão que pode ou não ser cognitiva, um constante processo de percepção unificando as coisas. Tudo que existe preende e é preendido. Variam apenas os modos de preensão.
A partir de sua obra principal, Process and reality, o entendimento muito idiossincrático de Whitehead a respeito da percepção vai sendo cada vez menos pautado pelo humano. Seu conceito de organismo engloba toda e qualquer “ocasião atual”; tudo que ocorre é um organismo. As coisas são “unidades individuais de experiência”. Organismos microscópicos ocorrem dentro dos limites e possibilidades de organismos macroscópicos, mas essas categorias não correspondem a “pequeno” e “grande”, pois tudo é relacional. Deus pode ser microscópico.
Existem muitas afinidades com Spinoza, para quem do mesmo modo não há nada “por trás” do que existe. O que existe é o que existe, o resultado do que ocorreu. Mas para Spinoza, o que pensamos e percebemos são modos de uma substância perfeita, que é Deus ou a natureza. Whitehead substitui esses modos pelos processos. Ele rejeita essa substância perfeita que seja uma realidade final ou absoluta da qual todo o resto deriva. Na filosofia do organismo, a realidade última é chamada de criatividade e Deus é seu acidente primordial. Mas a manifestação de Deus está no mesmo patamar de qualquer outra. Ele escreve: “Spinoza baseia sua filosofia na substância monística, da qual as ocasiões atuais são modos inferiores. A filosofia do organismo inverte esse ponto de vista.” Se existe um Deus, ele é também um acidente das preensões, ainda que um acidente bastante peculiar.
Uma das consequências disso tudo é que o mundo é composto por uma “proliferação de sujeitos”, expressão que eu adoro e que foi título de uma das aulas do Fernando. Tudo tem subjetividade. Não existe nada fora da experiência dos sujeitos. Ter subjetividade não significa ter consciência similar a essa que experimentamos. E o que é sujeito para uma coisa pode ser objeto para outra. Não está definido antecipadamente quem ou quê são sujeitos.
Espero que não tenham entendido nada e que mesmo assim tenham ficado intrigados, pois é justamente essa a minha experiência de pensar nos termos de Whitehead. E espero que nenhum whiteheadiano tenha chegado aqui pra encontrar algum crime de interpretação. Mas toda essa coisa da filosofia do organismo, por mais abstrata ou hermética que possa soar, me afetou menos pela via de uma compreensão rigorosa, que sigo buscando, e mais no sentido de reformatar minha sensibilidade para absorver fenômenos do dia a dia.
Meu ego segue sendo uma força perversa e destruidora, mas com mais frequência essa proliferação de subjetividades e essa visão processual de tudo que ocorre me ajudam a olhar com mais atenção e clareza para esse mundo em crise, de inter-conexões escancaradas e ao mesmo tempo inapreensíveis por sua complexidade e extensão. É um aparato de conceitos sintonizado com uma postura ecológica. A enchente, o rio, a búfala, o pescador, o dono da búfala, o repórter, eu na sala de casa lendo a matéria no site: ocasiões atuais, preensões, sujeitos por toda parte. Tão impreciso quanto deve ser para penetrar um pouquinho mais na ordem das coisas.
*
Há numerosas iniciativas para prestar ajuda às vítimas das chuvas aqui no Rio Grande do Sul. Deixo duas sugestões.
- Misturaí: ONG de cultura e assistência social de Porto Alegre que nesse momento está direcionando recursos para auxiliar comunidades pobres vitimadas pelas enchentes. PIX: misturaipoa@gmail.com / apoia.se/misturai para doações recorrentes
- A Secretaria de Estado da Cultura (SEDAC) e o Instituto Estadual do Livro (IEL) estão recebendo doações de livros de literatura em bom estado para reconstituir bibliotecas devastadas pelas enchentes. Os endereços de coleta divulgados são:
Biblioteca Pública do Estado do RS
Rua Riachuelo, 1190 - Centro Histórico, Porto Alegre.
Biblioteca Erico Verissimo e Biblioteca Lucília Minssen, da Casa de Cultura Mario Quintana
Rua dos Andradas, 736 - Centro Histórico, Porto Alegre.
Biblioteca Estadual Leopoldo Boeck
Rua República do Peru, 398 - Jardim Itu, Porto Alegre.
Biblioteca Estadual Romano Reif
Largo da Bandeira, 64 - Passo d’Areia, Porto Alegre.
Instituto Estadual do Livro
Rua André Puente, 318 - Independência, Porto Alegre.
Em Caxias do Sul, as doações podem ser feitas na sede do Instituto Quindim, parceiro da iniciativa.
Rua Sinimbu, 1670, 6º andar - Centro, Caxias do Sul.
*
Alguns assinantes devem ser meus seguidores no X-Twitter. Bom, acabei de vez com meu perfil lá. Menciono isso pois sei que pra muitos leitores e conhecidos aquela plataforma era a principal fonte de novidades sobre mim e o meu trabalho, bem como de opiniões esforçadas. Como falei lá na minha última postagem, se comunicar na internet nunca foi problema e não é agora que vai ser. Meu site sempre tem os contatos e informações básicas: http://danielgalera.info. Essa newsletter admite respostas diretas no e-mail; meu Instagram está lá pra quem gosta desse tipo de coisa; e abri contas no Mastodon (@danielgalera@zirk.us), que acesso menos, e no Bluesky (@alargedenial.bsky.social), que estou experimentando usar como usava o Twitter nos primórdios, apenas com um pouco mais de maturidade.
Obrigado mais uma vez por estarem aí, lendo e acompanhando e comprando livros. E pelas mensagens de conforto e de partilha enviadas após a edição anterior :)
A newsletter 'dentesguardados' é aberta a todos e aceita doações espontâneas dos leitores que desejarem bancar a mensalidade do Buttondown (29 dólares/mês) ou apoiar a minha escrita de modo geral. Considere clicar aqui ou usar a chave PIX "contato@danielgalera.info" para enviar um pagamento de qualquer valor. Agradeço de coração :)
Mais informações sobre mim: http://danielgalera.info
ⓒ Daniel Galera
Don't miss what's next. Subscribe to dentesguardados: