dentesguardados #16 Cachorro
E eis que, um belo dia, o cachorro me aparece mancando. Não era bem mancando, caminhava torto, com dificuldade. Resolvi esperar mais uns dias pra ver no que dava, e na manhã seguinte ele não apenas caminhava com dificuldade, mas também não comia e tinha a região da virilha inchada. Meus pais quiseram levá-lo logo ao veterinário. Ele apalpou o corpo do bicho, retirou material da parte inchada com uma seringa, fez mais umas observações. Era câncer. Um ataque fulminante. E eu tinha a opção de deixá-lo definhar até o fim, ministrando anestésicos, ou sacrificá-lo. Pedi um tempo pra pensar. Levei o cachorro pra rua, sentei ao lado dele na calçada e tentei entender o que acontecia. Então era isso, todo mundo ia começar a morrer dessa merda ao meu redor? O céu estava completamente azul e fazia sol. Pedestres caminhavam apressados pelas nossas costas, ignorando nossa presença. O cão sentou e começou a ganir muito baixo, quase não dava pra ouvir, principalmente com a barulheira infernal dos ônibus e lotações que encostavam numa parada a poucos metros de onde estávamos. Passei a mão devagar na sua cabeça, tentando fazer ele se acalmar. Aos pouquinhos, ele foi se deitando, o corpo cada vez mais mole. Aí eu percebi o que estava acontecendo. Continuei tentando acalmá-lo, aparentemente ia ser bem rápido. Ele defecou uma diarréia sanguinolenta e a respiração foi sumindo. Fiz como fazia com as ovelhas que o meu vô abatia no seu sítio. Fiquei olhando pros olhos do cachorro, tão de perto que conseguia ver minha própria imagem refletida na superfície do olho, até que, depois de dois ou três minutos, a imagem foi sumindo, enquanto os globos oculares ressecavam.
Esse é o penúltimo capítulo do meu primeiro romance, Até o dia em que o cão morreu, publicado em 2003 mas escrito durante três meses de 2002. Fui reler esse trecho escrito mais de vinte anos atrás porque no domingo passado o Butiá, nosso boidadeiro australiano de quase onze anos de idade, acordou abatido e com a barriga inchada e recusou o prato de comida. Cerca de 12hs depois ele tinha partido para sempre, após uma morte assistida na clínica veterinária. Câncer silencioso, tumor rompido, chances mínimas de cirurgia bem-sucedida e menores ainda de uma recuperação com qualidade de vida.
Lembrava que a história daquele livro terminava assim, com a morte do cão por um câncer fulminante e a subsequente recuperação milagrosa da personagem Marcela, sumida da narrativa desde a descoberta de um linfoma. Mas não lembrava dos detalhes. Não decidi abrir esse texto com essa autocitação por acreditar em qualquer espécie de premeditação literária, ainda que as coincidências existam e sem dúvida signifiquem algo. No livro, a morte do Churras parece encadear um milagre, a recuperação de Marcela, como se o animal entregasse sua vida em troca da vida humana. A morte do Butiá não opera milagre nenhum, nenhuma troca. Sentimos apenas que ele foi retirado de nós antes do tempo. Cruéis contingências metabólicas sabotaram sua força magnífica, desfizeram a tremenda vitalidade que ele expressava. Um milagre ao contrário.
Não lembro bem de onde tirei os detalhes da cena do livro. Eu nunca tinha assistido à morte de um cachorro, por câncer ou qualquer coisa. Um cão que tivemos na família tinha morrido de câncer poucos anos antes da escrita do livro, mas não o vi morrer e dei pouca atenção ao seu definhamento. Lembro mais do cadáver duro, que botei com minha mãe num saco de lixo preto, da tristeza retrospectiva, do nicho vazio que toda morte deixa. Devo ter pesquisado para desenvolver a cena, entrevistado um veterinário, imaginado um pouco. Realmente não lembro. E por que bolei uma cena assim, deixando essa sugestão de misteriosas engrenagens de auto-sacrifício inter-espécies, de uma duvidosa compensação nas correntes invisíveis da vida? Porque quando essas coisas acontecem não sabemos mesmo se há motivo, se há resultado, se há alguma espécie de vaso comunicante com a morte ou com outras vidas, se há consequências apuráveis pelo intelecto ou pelos sentidos. Nossa mente, e a ficção, especulam. Uma vida se esvai para outra ser poupada: é inverossímil e não tem sentido, mas tem verdade. A intuição assim sugere, e intuições compõem o universo tanto quanto fatos.
Em Barba ensopada de sangue, a brincadeira é outra. A cachorra, Beta, é o tótem vivo do pai falecido do narrador. Beta está na história porque o protagonista sem nome não cumpriu a promessa de atender o último desejo do pai antes de se matar: sacrificar a cachorra. O curto-circuito entre a desonra da promessa não cumprida e o afeto novo que vai surgindo entre o filho e a cachorra deve instalar no leitor uma certeza: esse homem fará qualquer coisa para garantir o bem-estar e a sobrevivência da companheira. E a história nos mostrará que assim é de fato. Beta é mortal, mas não morrerá por ninguém nem por nada. Ela resiste, e seu humano a resgatará dos labirintos do inferno se for necessário. O leitor precisa acreditar nisso, ou o livro não funciona.
Cresci com cachorros em casa, e depois de ir morar sozinho passei muitos anos sem tê-los por perto, porque não achava uma boa ideia confiná-los em apartamentos. Butiá surgiu porque meu pai o adotou de um canil que não poderia mantê-lo porque nasceu com um defeito, uma má-formação no olho direito que lhe dava parte de seu charme e um ar de experiência bruta desde filhote. Cego daquele olho, tampouco deveria ir viver numa fazenda, onde a visão parcial o colocaria em risco (nas vezes em que o soltamos no campo em meio aos bichos, ele levou uma cabeçada bombástica de um carneiro e tentou puxar o cavalo pelo rabo com os dentes, entre outras peripécias). Um boiadeiro australiano, a mesma raça de Beta, que eu amava desde que assisti a Mad Max 2 na infância. Na época que vivi em Garopaba, vi filhotes de boiadeiro numa pet em São Paulo e por muito pouco não comprei um pra levar comigo pra praia. Teria sido um erro. Porque eu muito provavelmente não teria capacidade de cuidar bem daquele cachorro sozinho.
Anos depois, em Porto Alegre, aceitei ficar com o Butiá porque a Taís me incentivou com tamanha convicção e euforia que não tive mais dúvidas. Estávamos namorando fazia pouco tempo, não morávamos juntos ainda. Não é que ela tenha me convencido de que eu podia ter um cachorro; ela me fez sentir que nós podíamos ter um cachorro. Eu a amava e queria que ficássemos muito tempo juntos e portanto era não comigo, mas conosco, que o Butiá teria uma vida das boas. Sim sim eu disse sim e ele veio pro nosso apartamento com quatro meses e meio e saiu cagando pelo chão e roendo as pernas de mesa e as paredes (em alguns pontos seus dentes removeram o reboco e expuseram o tijolo) e ganindo e se aninhando com o focinho em nossas pernas e ressonando com uma fofura que nos enternecia ainda mais por pertencer àquele corpo possante e grisalho, àquele ar selvagem de graxaim. Com um ano e meio ficou adulto: parou de roer e estragar coisas em casa, passou a fazer necessidades somente na rua, e uma parte considerável do meu tempo e energia nos últimos onze anos foi dedicada a proporcionar a ele a dose diária de exercício e distração que permitia que em nossa casa, longe de seu habitat nas fazendas de gado da Austrália, fosse um gentleman e um companheiro sensível e um bicho de pelúcia vivo quando relaxava o bastante ou sentia que um de nós estava aflito e se encostava como se quisesse nos acalmar ou absorver nossa aflição.
Quando Sara nasceu, Butiá a tratava com uma indiferença respeitosa, uma atenção cautelosa, e vinha nos avisar no quarto com ganidinhos no meio da madrugada quando ela acordava no berço e não chorava. Os dois levaram uns três ou quatro anos para se afeiçoarem de vez e em algumas fotos recentes nossa filha está dormindo no sofá com a cabeça apoiada nele como um travesseiro. De mim e da Taís ele aceitava qualquer ataque: apertões, puxões, fungadas, colos, musiquinhas (adorava melodias de pagodes famosos). À noite, na hora de dormir, um ritual se perpetuou. Não importava se vínhamos deitar juntos ou separados, mas ele esperava até que nós dois estivéssemos na cama, e naquele momento em que eu e ela estávamos simultaneamente prontos para de fato adormecer, Butiá, que esse tempo todo estaria deitado na sua caminha no meu lado do colchão, estremecia, inspirava fundo, acomodava o focinho e soltava um longo suspiro que produzia o som de um ronco fininho, a eliminação da última réstia de tensão que pudesse haver. Era incrível como ele percebia sempre, de alguma forma, o momento exato. Era o boa-noite dele. Sua missão naquele dia terminava, e somente então ele podia descansar.
Onze anos disso. E dos passeios matinais e vespertinos e noturnos que inscreveram nas calçadas e praças e lojas das redondezas a nossa psicogeografia. Milhares e milhares de rolês, muitos a contragosto, quando eu estava cansado ou de saco cheio, quando chovia forte e na volta era preciso secar ele com uma toalha fedida, ou no meio da tarde quanto eu estava cheio de trabalho ou afazeres e simplesmente não tinha aqueles quinze minutos mas precisava concedê-los. Não furávamos com ele. Viver com Butiá nos ensinou cuidados, paciência, tolerância. De mim, no começo, ele tomou uns tapas. Até o fim havia situações em que eu o enxotava porque não aguentava mais seu olhar fixo em mim, sua tendência a ficar no meu caminho, a me seguir como uma sombra. Menos de 24h após sua morte, pensar num único momento desses me dá vontade de chorar e não resisto. Sei que é injusto comigo mesmo, sou humano. E sei que ele não guardava rancor.
A célebre fidelidade dos cães, sua devoção ao(s) seu(s) humano(s), não raro é matéria de chacota, e não somente dos apreciadores de gatos. A entrega canina aos humanos é muitas vezes tratada como sinal de estupidez ou falta de respeito próprio. Acho que teria bastado uma tarde perto do Butiá para constatar que essa devoção toda é amor mesmo, mas também interesse próprio, preferências, imposições, as facetas opacas da subjetividade canina. O animal impõe suas condições. O amor inabalável que os cães nos entregam exige em contrapartida a reivindicação de certas vontades, a prática inegociável de manias e gostos. A devoção é o seu estilo, não o seu conteúdo. Sequer é preciso amá-los de volta, eles nos amam mesmo assim. Mas é preciso aceitar tudo que dão, o pacote completo. Quem não é capaz disso não os merece.
Nos últimos onze anos, passei boa parte do tempo com ele no meu encalço. Éramos parecidos, até no porte, e recentemente me aproximei ainda mais do look dele com meus cabelos e barba grisalhos. Para a Taís, que pouco esteve a meu lado sem que o Butiá estivesse conosco, me ver sem ele deve ser insólito. Eu também acho insólito vê-la sem ele no sofá, onde estabeleciam sua simbiose toda especial em meio a mantinhas cheias de cheirinho de cachorro e livros e chás e os grunhidos e melodias do idioma particular que compartilhavam. Na praia, no sítio, os dois formavam um par que me parecia primitivamente conectado.
Domingo passado, dei comida de manhã e ele não comeu. Era um glutão, comia qualquer coisa em segundos. Na noite do mesmo domingo estávamos agachados a seu lado no chão da clínica, cantando suas musiquinhas, fazendo os carinhos que gostava, aspirando seu cheiro, sussurrando que ele logo ia descansar. Ele mal aguentava o próprio peso, apoiou a mandíbula na minha mão, o olho bom bem aberto e fixo na Taís, o focinho soltando jatos de hálito frio, o rabo quieto depois de alguns segundos de esforço para balançar quando chegamos. Pelo menos demos a ele os cuidados e alívio possíveis, pelo menos nos despedimos. Pelo menos o sofrimento foi bem curto. Mas ele teve de partir. Não olhei nos olhos dele enquanto morria porque ele logo deitou de lado e os fechou, mas pressionei sua cabeça da maneira como ele gostava e dei meu cheiro, minha voz. Só desabei pra valer no dia seguinte, quando fui andar na Redenção e fui pego de surpresa pela constatação de que de agora em diante passarei sem ele por aqueles espaços que tanto dividimos. Não é só ele que vai, é toda uma versão minha que se despede pra sempre.
Relatos de pormenores do convívio afetivo com bichos podem alienar leitores. Sei porque já li o dos outros. O que se está narrando é particular demais para ganhar concretude. No máximo um leitor pode apreciar a validade abstrata do que se está oferecendo, ou talvez projetar minhas observações na perda de um animal de estimação próprio. Mas se narramos é porque isso existe, porque existe aquela intuição sobre a natureza das coisas que vale tanto quanto os fatos, e na nossa perda dessa criatura tão preciosa intuo ondas de impacto que importam. Não espero que sintam. Mas quero que saibam. Ele se foi de repente e não estávamos prontos.
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Eu e Butiá, março de 2015
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