dentesguardados #15 Linhas
Linhas
O homem que escreve essas linhas interrompeu uma tarde de trabalho numa atividade intelectualmente estimulante porém pouco rentável para escrever essas linhas pois convenceu a si mesmo mais de duas décadas atrás de que escrever linhas como essa e agir para que sejam lidas por outras pessoas é uma atividade vital e necessária para que sua vida tenha significado e ele consiga manter ativa a rede de atividades que de um jeito ou outro garante também a sua estabilidade material. Quando se encontra duvidando da viabilidade ou necessidade de escrever linhas como essas, o homem que agora as escreve costuma ser convencido por outras pessoas, das mais íntimas a completas desconhecidas, de que essa necessidade precisa ser continuamente reconhecida e essa viabilidade constantemente cultivada por meio de uma dedicação e uma disciplina que, com mais frequência do que o contrário, ele não se sente apto a cultivar.
O homem que escreve essas linhas não tem certeza se já teve aptidão para cultivar essa dedicação e essa disciplina e a perdeu em algum momento ou se jamais a teve e a capacidade de escrever linhas como essas escasseou porque tantas outras coisas em sua vida mudaram enquanto a capacidade permanecia a mesma. Por sua vida, o homem que escreve essas linhas não entende somente os elementos que compõem a sua vida pessoal, a saber, as relações familiares, as relações com os amigos, o casamento, a paternidade, o cuidado a animais domésticos, as vicissitudes da experiência interna, as transformações do corpo, sua localização no tempo e no espaço e outras variações mentais e físicas associadas de uma maneira ou outra ao seu ego, mas também o conjunto de outros seres, relações sociais, forças materiais, inter-relações sistêmicas e dinâmicas ecológicas a que se atrelam o que ele entende por sua experiência interna.
O homem que escreve essas linhas observou nos últimos anos mas especialmente nos últimos meses que uma quantidade significativa das pessoas que considera especiais em sua vida se inclinou na direção de ou realizou um salto de encontro a conhecimentos e práticas que costumam ser qualificadas por termos como fé e religiosidade. Momentos e períodos cada vez mais frequentes de medo, exasperação ou desânimo levaram o homem que escreve essas linhas, à luz dos movimentos realizados por pessoas que considera especiais e de uma simpatia pela ideia de que devoção a qualquer coisa além de si pode ser essencial para ter serenidade, compaixão e clareza dia após dia até que a morte chegue, a perguntar a si mesmo qual seria(m) o(s) objeto(s), ideia(s) ou entidade(s) a que poderia dedicar a sua fé, caso exista(m).
O homem que escreve essas linhas não consegue ter fé em nada que tenha sua relação mediada por alguma organização ou tradição, embora tenha fé em numerosos conceitos e preceitos dessas mesmas organizações ou tradições quando considerados em si mesmos, tais como a clareza de pensamento, a imperturbabilidade diante dos fenômenos, o exercício da atenção, a supressão dos excessos do ego, a solidariedade e o amor.
O homem que escreve essas linhas não acredita que o amor é uma ilusão psicológica talhada pelo processo evolutivo, e sim uma qualidade subjacente às conexões, prolongamentos, entrechoques e atrações que constituem, por trás de véus mais opacos ou mais translúcidos ao nosso aparato sensorial e mental, a base do mundo material ou do universo.
O homem que escreve essas linhas não acredita que os mistérios invioláveis da matéria constituem alguma outra substância ou pertencem a alguma ou algumas entidades e se sente não apenas à vontade como também inebriado por esses mistérios invioláveis, sobre os quais no fundo nada se pode dizer ou observar e face aos quais a sua individualidade nada ou quase nada significa, e no entanto suspeita que a supracitada incapacidade de ter fé em qualquer coisa mediada por alguma organização ou tradição constitui uma falha sua, como um defeito de fabricação, e que esse defeito constitui por sua vez um obstáculo preocupante para a sua dedicação satisfatória aos conceitos e preceitos em que acredita e que seriam cruciais para mitigar os já citados medo, exasperação e desânimo.
O homem que escreve essas linhas nunca teve por hábito dedicar suas linhas a fatos, preferindo explorar por meio delas as metamorfoses simbólicas a que chamamos ficção, mas há momentos em que ele anseia por fatos, ou talvez somente um fato ao qual se agarrar, algo que pudesse servir de eixo para o alinhamento da sua lucidez, uma afirmação basilar, ainda que genérica, da qual ele pudesse desfiar suposições minimamente confiantes a respeito do que fazer, do que é verdadeiro, do que enseja o bem e do que enseja o mal, do que dizer, de quando calar, de como enxergar no calor da hora os seus próprios vícios e vieses, de como não temer tanto a dor, de como não deixar que as dores como um todo afetem sua capacidade de amar e ser amado, de como se expressar, ser justo, abraçar, defender quem necessita em detrimento do próprio conforto, de quando se entregar ao prazer e ao egoísmo em alguma medida sem se sentir culpado, de como acordar de bom humor, de como não se apoiar na organização doméstica para adiar o enfrentamento de medos e inseguranças, de como divisar futuros dignos de esperança nem que seja para saber moldar a melhor versão de si no presente. Se busca fatos, contudo, o homem que escreve essas linhas costuma encontrar fragmentos e hologramas.
O homem que escreve essas linhas está vendo através da janela um casal de pombos no topo de um poste e um grupo de papagaios nos galhos de um pinheiro. O céu está azul e límpido sobre as copas das árvores e os telhados dos prédios, com nimbos diáfanos que parecem tinta branca muito diluída, mas essa normalidade já não encanta como antes o homem que escreve essas linhas. O homem que escreve essas linhas sente que veio a desconfiar desse céu mundano, esse interstício entre calamidades instauradas pelo ronco desses carros na rua e previstas a anunciadas em tempo real enquanto ele escreve essas linhas.
O homem que escreve essas linhas está pensando muito em duas pessoas já mortas que se conheceram na França da década de 1930. Ele está fascinado pelo que os atraiu brevemente apesar da enorme discordância de suas visões de mundo, pela orientação quase antípoda de suas respectivas concepções daquilo que mais almejavam, a saber, deixar de existir. O homem que escreve essas linhas suspeita saber o que os atraiu momentaneamente e que tem a ver com a constatação de que sair de si é um destino igual para todos que se empenham em sua busca, ainda que as motivações e estratégias para isso possam variar tanto quanto a própria vida.
O homem que escreve essas linhas pensa nessas duas pessoas e então pensa em escrever outras linhas que não essas, e ao pensar nisso seu coração palpita, seus dedos se apressam e ele erra as teclas, precisa apertar uma tecla para apagar e digitar as coisas de novo, e ele já antecipa a manhã seguinte quando acordará cedo para ler mais algumas linhas escritas por essas duas pessoas ou escritas por outras pessoas a respeito dessas duas para em seguida somente pensar um pouco, antes do sol sair de trás dos prédios, sobre essas duas pessoas, sobre o que sua própria voz eventualmente terá a dizer a respeito do interesse mútuo que existiu entre elas, pois ele quer soprar esse fogo para avivá-lo, fazer o que espera de si e esperam dele, este homem que não compreende quase nada mas entrevê alguma verdade no pouco que compreende. O eterno retorno, a substância imperfeita. O homem que se tudo der certo escreverá no futuro outras linhas que não essas não sabe de quase nada mas está disposto a descobrir, portanto ainda terá surpresas. Isso talvez seja um fato.
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ⓒ Daniel Galera
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