dentesguardados #14 Influência
Influência
Em 2011, quando li pela primeira vez O rei pálido [The pale king], o romance póstumo e inacabado de David Foster Wallace, fiquei intrigado com o que me pareceu, na época, apenas uma curiosidade que não chamava a atenção da maioria dos leitores: no capítulo #8 do livro (p. 65 da edição da Companhia das Letras, tradução de Caetano W. Galindo e fonte das citações em português que aparecerão abaixo), Wallace começa a escrever, de repente, com um estilo muito parecido com o de Cormac McCarthy.
Até então, eu nunca tinha encontrado nenhuma comparação crítica elaborada entre o estilo dos dois escritores. Pelo contrário, a prosa de Wallace sempre foi associada aos pós-modernistas como John Barth, Donald Barthelme, Thomas Pynchon e Don DeLillo, dos quais teria herdado, entre outras coisas, as ênfases na ironia, na metalinguagem e na tematização da mídia e da cultura pop, e foi incluída por James Wood no plantel de praticantes do "realismo histérico", estilo que combina tramas e personagens absurdos, exuberantes e idiossincráticos com uma sobrecarga enciclopédica de informação.
Mas Cormac McCarthy? Ele e Wallace pertenciam a mundos quase opostos, no tema e na forma. McCarthy, venerado como um dos grandes autores de seu tempo, era célebre por sua linguagem portentosa, que bebia em um léxico antiquado e em cadências bíblicas. Talvez ele fosse experimental à sua maneira, mas a visão geral -- questionável, mas vigente até hoje -- é de que McCarthy pratica uma espécie de experimentalismo para trás, um estilo que pertenceria a uma categoria muito diversa do desenvolvido pelo próprio Wallace e seus ídolos pós-modernistas, escritores experimentais para a frente.
Quem acompanhava de perto a carreira de Wallace sabia que ele era um admirador de McCarthy. Ele mesmo o disse muitas vezes em entrevistas. Em 1999, ele fez uma lista de livros norte-americanos subestimados para a revista eletrônica Salon, acompanhados de pequenos parágrafos explanativos. Entre eles estava Meridiano de sangue, sobre o qual Wallace se limitou a telegrafar: Dont even ask [Melhor nem perguntar]. Isso denotava, com bom humor, a sua enorme admiração pelo romance, como se fosse impossível tratar dele sem precisar recorrer à sua [de Wallace] usual e brilhante prolixidade. Além disso, a frase trazia um aceno à linguagem de McCarthy, que tem a mania de suprimir o apóstrofo em "Dont". Numa entrevista de 2000, Wallace incluiu McCarthy ao lado de Don DeLillo e Cynthia Ozick no seu top 3 escritores contemporâneos. Admirar McCarthy, todavia, é uma coisa bem diferente de tê-lo como uma influência significativa. Isso nunca tinha me passado pela cabeça, embora eu tivesse lido com devoção todos (ou quase, no caso de DFW) os livros dos dois autores.
No entanto, ali estava aquele inesperado capitulo #8 de O rei pálido, no qual Wallace imitava não somente o estilo de McCarthy, mas também em alguma medida os seus temas. No capítulo, que nesse início do romance parece desligado de todo o resto da trama (mais adiante o leitor descobre que não é bem assim), acompanhamos as sofridas desventuras de Toni Ware, uma adolescente que vive precariamente com a mãe num parque de trailers e é abusada sexualmente em diversas ocasiões. É um relato duríssimo, ambientado num contexto miserável e periférico que evoca a matéria de certas fabulações mais urbanas de McCarthy. Enquanto lia, eu me perguntava: "por que Wallace está escrevendo sobre isso, e desse jeito, assim de repente?" Eu estava convencido de que Wallace tinha decidido homenagear McCarthy, embora a razão para isso não estivesse muito clara. Vejamos um trecho:
The park's boys wore wide rumpled hats and cravats of thong and some displayed turquoise about their person, and of these one helped her empty the trailer's sanitary tank and then pressed her to fellate him in recompense, whereupon she promised that anything emerging from his trousers would not return there. No boy near her size had successfully pressed her since Houston and the two who put something in her pop that made them turn sideways in the air and she could not then fight and lay watching the sky while they did their distant business.
At sunset then the north and west were the same color. On clear nights she could read by the night sky's emberlight seated on the plastic box that served as stoop. The screen door had no screen but was still a screen door, which fact she thought upon. She could fingerpaint in the soot on the kitchenette's rangetop. In incendiary orange to the deepening twilight in the smell of creosote burning in the sharp hills upwind.
Her inner life rich and multivalent. In fantasies of romance it was she who fought and overcame thereon to rescue some object or figure that never in the reverie resolved or took to itself any shape or name.
ou
Os meninos do parque usavam grandes chapéus amassados e gravatas fininhas e alguns exibiam turquesa no corpo, e um desses ajudou a esvaziar o tanque sanitário do trailer e aí a pressionou a um compensatório ato de felação, quando ela então lhe garantiu que qualquer coisa que saísse da calça dele não voltaria mais. Nenhum menino do tamanho dela tinha sucesso nessas pressões desde Houston e dos dois que colocaram alguma coisa no refrigerante dela que fez com que eles girassem de lado no ar e ela aí não pôde lutar e ficou deitada olhando o céu enquanto eles atingiam seus distantes objetivos.
No pôr do sol então oeste e norte eram da mesma cor. Em noites limpas ela podia ler à luz ambarina do céu noturno sentada na caixa de plástico que servia de degrau de entrada. A porta de tela não tinha tela mas era ainda assim uma porta de tela, fato em que ela pensava. Sabia pintar com os dedos na fuligem em cima do fogão da cozinha do trailer. Em laranja incendiário até o crepúsculo cada vez mais denso no cheiro de creosoto queimando nos ríspidos morros vento abaixo.
Sua vida interior, rica e multivalente. Em fantasias romantizadas era ela que lutava e por conseguinte resgatava algum objeto ou figura que nunca na imaginação se resolvia ou adotava forma ou nome quaisquer.
Pra quem já leu os livros de McCarthy (eu poderia ter incluído aqui algum trecho dele pra comparar, seria bom, eu sei, mas deu preguiça e se eu levantar da cadeira agora não termino esse texto a tempo, então quem se interessar a esse ponto pelo assunto pode abrir um livro do McCarthy em qualquer página e ler um pouco e logo linhas algo semelhantes às acima citadas vão aparecer, eu garanto), é nítida a homenagem. A alternância da sordidez com recortes pastoris e poéticos da natureza, o vocabulário preciosista, os polissíndetos e sintagmas ligados por conjunções sem vírgulas, o uso de advérbios e preposições meio antiquados e deslocados que deixam a oração "pesada" (upon, thereon), as piscadelas metafísicas na descrição de algo banal (a ausência de tela na porta de tela), a sugestão de uma vida interior "rica e multivalente" nessa menina marginalizada e pouco instruída, uma vida interior que tem contrapartida nos lampejos fulgurantes do mundo exterior que vai sendo descrito et cetera et cetera. Agora que estou traduzindo McCarthy, me chamam a atenção também a ocorrência de certos termos que aparecem mais de uma vez em seus textos: "rumpled", "creosote". E os neologismos com palavras grudadas ("emberlight"). Enfim. É muito parecido.
Os anos correram. No dia 13 de junho de 2023, cerca de três semanas antes da data de envio desse texto aos assinantes, Cormac McCarthy faleceu aos 89 anos. Fui convidado para escrever sobre McCarthy pro jornal O Globo (com paywall) e pro blog da Companhia das Letras. E pretendia escrever também uma edição dessa newsletter detalhando alguns aspectos do processo de tradução de Suttree (devo terminar no fim do ano). Mas quando comecei a pesquisar coisas sobre Cormac McCarthy para escrever esses textos, um outro nome apareceu em um par de resultados: David Foster Wallace. E lembrei daquela sensação que tive quando li o oitavo capítulo de O rei pálido. Dessa vez, depois de ter relido ao longo dos anos livros e trechos dos dois autores, a intuição foi mais forte.
A admiração de Wallace por McCarthy não era apenas anedótica ou distanciada. Havia uma influência mais profunda e distribuída, uma relação intertextual que Wallace resolveu expor com alarde no oitavo capítulo de O rei pálido, mas que também operava de modo mais sutil e pontual em parte considerável de sua obra anterior. E esse assunto me pareceu muito mais legal do que minúcias imprecisas sobre como tenho avançado na tradução de Suttree. (E na verdade eu não quero falar disso.)
Voltando agora a The pale king, reparei pela primeira vez que a abertura do romance também possui referências ao estilo de McCarthy. Wallace usa a preposição "past" pra encadear o deslocamento de um narrador-câmera onisciente por detalhes de um cenário, como Tio Cormac adora fazer:
Os anos correram. No dia 13 de junho de 2023, cerca de três semanas antes da data de envio desse texto aos assinantes, Cormac McCarthy faleceu aos 89 anos. Fui convidado para escrever sobre McCarthy pro jornal O Globo (com paywall) e pro blog da Companhia das Letras. E pretendia escrever também uma edição dessa newsletter detalhando alguns aspectos do processo de tradução de Suttree (devo terminar no fim do ano). Mas quando comecei a pesquisar coisas sobre Cormac McCarthy para escrever esses textos, um outro nome apareceu em um par de resultados: David Foster Wallace. E lembrei daquela sensação que tive quando li o oitavo capítulo de O rei pálido. Dessa vez, depois de ter relido ao longo dos anos livros e trechos dos dois autores, a intuição foi mais forte.
A admiração de Wallace por McCarthy não era apenas anedótica ou distanciada. Havia uma influência mais profunda e distribuída, uma relação intertextual que Wallace resolveu expor com alarde no oitavo capítulo de O rei pálido, mas que também operava de modo mais sutil e pontual em parte considerável de sua obra anterior. E esse assunto me pareceu muito mais legal do que minúcias imprecisas sobre como tenho avançado na tradução de Suttree. (E na verdade eu não quero falar disso.)
Voltando agora a The pale king, reparei pela primeira vez que a abertura do romance também possui referências ao estilo de McCarthy. Wallace usa a preposição "past" pra encadear o deslocamento de um narrador-câmera onisciente por detalhes de um cenário, como Tio Cormac adora fazer:
Past the flannel plains and blacktop graphs and skylines of canted rust, and past the tobbaco-brown river overhung with weeping trees and coins of sunlight through them in the water downriver, (...)
Além das planícies de flanela e dos gráficos asfálticos e horizontes de ferrugem enviesada, e além do rio marrom-branco toldado de plantas chorosas e pontos de raios de sol que passavam por entre elas para a água rio abaixo, (...)
Como se não bastasse, esse capítulo de abertura the The pale king remete escancaradamente à abertura de Suttree, que também possui esse narrador bizarro que se dirige numa segunda pessoa bizarra ao leitor ("Dear friend", em Suttree; "Look around you" em The pale king) e usa a fórmula "past xxx, past xxx...", realizando um passeio poético/profético por um cenário ora muito concreto, ora onírico, sem relação direta com a ação que se desenvolverá logo em seguida. E a abertura de Wallace termina com a frase "Read these.", que ecoa a frase de conclusão de Suttree, "Fly them." É quase como se Wallace tivesse instigado o seu ChatGPT mental com um pedido: "Criar uma versão condensada de Suttree de Cormac McCarthy em apenas uma página e sem repetir as palavras do original."
Uma versão condensada ou uma... paródia? Porque me mordeu de novo uma pulga que já estava atrás da orelha lá atrás, em 2011. A imitação é tão acentuada que fica dificil dizer se estamos diante de homenagem, decalque, paródia ou algo entre esses vértices. A única coisa certa é que não é por acaso.
Encontrei respostas satisfatórias a essas perguntas, e uma profusão de detalhes e referências em torno da influência da obra de McCarthy sobre David Foster Wallace, em um artigo que encontrei na internet, intitulado “Books Are Made out of Books”: David Foster Wallace and Cormac McCarthy, de Lucas Thompson
(The Cormac McCarthy Journal, Volume 13, 2015, p. 3-26 -- ver a seção de links no rodapé dessa edição). Thompson vasculha não somente a obra de Wallace, mas também suas entrevistas, cartas e anotações marginais nos exemplares de sua biblioteca pessoal, para revelar uma fascinante trajetória de influência estilística.
Thompson mostra como lampejos do que chama de "lirismo pastoral" na obra de McCarthy (o modo como suas solenes e elevadas descrições de natureza favorecem o mundo bucólico/natural em contraste com a representação sórdida e decaída do mundo urbano e civilizado) eram ocasionalmente empregados por Wallace desde textos iniciais, como o artigo "Derivative Sport in Tornado Alley", de 1990, e também em romances como Infinite Jest (Graça Infinita), de 1996. Wallace imitou o tipo de neologismo gruda-palavras de McCarthy e também sua propensão a omitir pontos de interrogação no final das perguntas -- como se vê, por exemplo, na famosa cena de Infinite Jest em que Ken Erdedy está esperando a entrega de maconha: sua ansiedade se manifesta na repetida pergunta (sem ponto interrogação) em sua consciência, "Where was the woman who said she'd come."
Não vou me alongar demais aqui nos exemplos fornecidos por Thompson, mas o mapeamento de influências estilísticas feito por ele me pareceu convincente e sintonizado com a sensação que tive ao ler The pale king, sensação que, percebo hoje, ocupava alguma camada difusa e inconsciente da minha experiência de leitura da obra desses dois gênios. Eu inclusive acrescentaria às observações de Thompson que o tipo de diálogo polifônico que encontramos muito em Infinite Jest e em outros textos de Wallace -- as conversas envolvendo mais de dois interlocutores, com poucas indicações de quem está dizendo o quê -- provavelmente deve um tanto aos diálogos sem aspas nem travessão que encontramos em McCarthy. Wallace usa aspas quase sempre, mas o tipo de contextualização hábil que é necessária para que essas polifonias não deixem o leitor completamente perdido é semelhante ao que vemos em certos diálogos de McCarthy, como os bêbados conversando nos bares em Suttree.
Em seu artigo, Thompson sugere que a admiração de Wallace por McCarthy foi evoluindo aos poucos para uma relação complicada. O que o primeiro admirava no segundo era sobretudo a linguagem, o estilo, a capacidade de criar uma voz literária totalmente nova e atual com base em referências antiquadas, bíblicas, míticas. Wallace soube encaixar essas influências dentro de seu próprio estilo, por si só potente e único, e em inúmeros aspectos distinto do de McCarthy. Mas em The pale king testemunhamos o ápice de uma outra tendência: Wallace está lutando um pouco contra essa influência, explorando seus limites enquanto procura novos caminhos para sua própria literatura. É como se ele testasse até onde consegue decalcar McCarthy para ver onde isso vai dar, o que isso pode trazer de novo para sua escrita -- ou para descobrir que não é capaz de fazer nada além de uma imitação ou uma paródia. Thompson inclusive encontra uma anotação de Wallace num manuscrito inicial do livro que diz: "Me esforçar mais, evitar escrever uma imitação ruim de McCarthy".
Sabemos que Wallace enfrentou muitas dificuldades na escrita de The pale king, e que o romance era um projeto sempre em andamento desde a publicação de Infinte Jest. Emular Cormac McCarthy deve ter sido uma de suas estratégias para tentar fazer avançar a escrita, mas a partir de certo ponto não devia estar claro se o melhor era se deixar inspirar por aquele estilo ou levá-lo às raias da paródia como maneira de se desvencilhar dele. Daí que vem essa sensação imprecisa, de não saber se estamos diante de uma homenagem ou uma paródia. Suspeito que Wallace também não sabia.
O título do artigo, "Books are made of books" [Livros são feitos de livros], vem de uma declaração do próprio Cormac McCarthy, que disse certa vez: "O fato desagradável é que livros são feitos de livros. O romance, para ter vida, depende dos romances que já foram escritos." Numa entrevista de 1992 ao The New York Times, Wallace citou McCarthy e elaborou a questão à sua maneira:
Uma versão condensada ou uma... paródia? Porque me mordeu de novo uma pulga que já estava atrás da orelha lá atrás, em 2011. A imitação é tão acentuada que fica dificil dizer se estamos diante de homenagem, decalque, paródia ou algo entre esses vértices. A única coisa certa é que não é por acaso.
Encontrei respostas satisfatórias a essas perguntas, e uma profusão de detalhes e referências em torno da influência da obra de McCarthy sobre David Foster Wallace, em um artigo que encontrei na internet, intitulado “Books Are Made out of Books”: David Foster Wallace and Cormac McCarthy, de Lucas Thompson
(The Cormac McCarthy Journal, Volume 13, 2015, p. 3-26 -- ver a seção de links no rodapé dessa edição). Thompson vasculha não somente a obra de Wallace, mas também suas entrevistas, cartas e anotações marginais nos exemplares de sua biblioteca pessoal, para revelar uma fascinante trajetória de influência estilística.
Thompson mostra como lampejos do que chama de "lirismo pastoral" na obra de McCarthy (o modo como suas solenes e elevadas descrições de natureza favorecem o mundo bucólico/natural em contraste com a representação sórdida e decaída do mundo urbano e civilizado) eram ocasionalmente empregados por Wallace desde textos iniciais, como o artigo "Derivative Sport in Tornado Alley", de 1990, e também em romances como Infinite Jest (Graça Infinita), de 1996. Wallace imitou o tipo de neologismo gruda-palavras de McCarthy e também sua propensão a omitir pontos de interrogação no final das perguntas -- como se vê, por exemplo, na famosa cena de Infinite Jest em que Ken Erdedy está esperando a entrega de maconha: sua ansiedade se manifesta na repetida pergunta (sem ponto interrogação) em sua consciência, "Where was the woman who said she'd come."
Não vou me alongar demais aqui nos exemplos fornecidos por Thompson, mas o mapeamento de influências estilísticas feito por ele me pareceu convincente e sintonizado com a sensação que tive ao ler The pale king, sensação que, percebo hoje, ocupava alguma camada difusa e inconsciente da minha experiência de leitura da obra desses dois gênios. Eu inclusive acrescentaria às observações de Thompson que o tipo de diálogo polifônico que encontramos muito em Infinite Jest e em outros textos de Wallace -- as conversas envolvendo mais de dois interlocutores, com poucas indicações de quem está dizendo o quê -- provavelmente deve um tanto aos diálogos sem aspas nem travessão que encontramos em McCarthy. Wallace usa aspas quase sempre, mas o tipo de contextualização hábil que é necessária para que essas polifonias não deixem o leitor completamente perdido é semelhante ao que vemos em certos diálogos de McCarthy, como os bêbados conversando nos bares em Suttree.
Em seu artigo, Thompson sugere que a admiração de Wallace por McCarthy foi evoluindo aos poucos para uma relação complicada. O que o primeiro admirava no segundo era sobretudo a linguagem, o estilo, a capacidade de criar uma voz literária totalmente nova e atual com base em referências antiquadas, bíblicas, míticas. Wallace soube encaixar essas influências dentro de seu próprio estilo, por si só potente e único, e em inúmeros aspectos distinto do de McCarthy. Mas em The pale king testemunhamos o ápice de uma outra tendência: Wallace está lutando um pouco contra essa influência, explorando seus limites enquanto procura novos caminhos para sua própria literatura. É como se ele testasse até onde consegue decalcar McCarthy para ver onde isso vai dar, o que isso pode trazer de novo para sua escrita -- ou para descobrir que não é capaz de fazer nada além de uma imitação ou uma paródia. Thompson inclusive encontra uma anotação de Wallace num manuscrito inicial do livro que diz: "Me esforçar mais, evitar escrever uma imitação ruim de McCarthy".
Sabemos que Wallace enfrentou muitas dificuldades na escrita de The pale king, e que o romance era um projeto sempre em andamento desde a publicação de Infinte Jest. Emular Cormac McCarthy deve ter sido uma de suas estratégias para tentar fazer avançar a escrita, mas a partir de certo ponto não devia estar claro se o melhor era se deixar inspirar por aquele estilo ou levá-lo às raias da paródia como maneira de se desvencilhar dele. Daí que vem essa sensação imprecisa, de não saber se estamos diante de uma homenagem ou uma paródia. Suspeito que Wallace também não sabia.
O título do artigo, "Books are made of books" [Livros são feitos de livros], vem de uma declaração do próprio Cormac McCarthy, que disse certa vez: "O fato desagradável é que livros são feitos de livros. O romance, para ter vida, depende dos romances que já foram escritos." Numa entrevista de 1992 ao The New York Times, Wallace citou McCarthy e elaborou a questão à sua maneira:
Tem uma coisa que Cormac McCarthy diz: "os livros são feitos de outros livros" (...) Não creio que exista algum escritor vivo que não crie os seus livros de alguma forma a partir de outros livros, em especial os livros que adora. O truque está em fazer isso na medida certa, e meio que ter a medida certa das suas próprias coisas rolando, de modo que ao usar as coisas você as transfigura e as transforma em algo próprio."
Por muitos anos, não percebi a influência importante que um de meus autores favoritos exerceu sobre toda a carreira de outro de meus autores favoritos. Não fui o primeiro a perceber isso, é claro, mas também acho que essa é uma relação pouco conhecida e dimensionada na obra de Wallace. Além de ser simplesmente excitante ver o trabalho deles conectado de qualquer forma, me impacta o fato de que eu mesmo me senti influenciado por ambos em pontos importantes minha própria trajetória: as descrições e listas abundantes e os diálogos polifônicos em certas cenas de Mãos de Cavalo foram inspirados em Wallace, e os diálogos sem aspas e o "lirismo pastoral" e tantos outros aspectos formais de Barba ensopada de sangue foram inspirados na obra de McCarthy -- e também na de Wallace, hoje percebo, pois um deles estava incorporando coisas do outro, e eu os estava lendo e os incorporando ao que eu escrevia.
Foi legal também pensar nisso tudo após ter lido A mais recôndita memória dos homens (ed. Fósforo, trad. Diogo Cardoso), do senegalês Mohamed Mbougar Sarr. O romance, vencedor do Gongourt, centrado num jovem autor senegalês que fica obcecado pela obra de um outro escritor africano misterioso, é declaradamente inspirado nos romances de Roberto Bolaño. Minhas impressões durante a leitura variavam: havia trechos bilhantes e outros canhestros ou derivativos, e a relação com a literatura de Bolaño parecia oscilar entre o mero decalque e a inspiração combustiva, daquele tipo que DFW comentava ao falar de Cormac McCarthy. Fui ao Twitter e anotei publicamente isso: "A mais recôndita memória dos homens", Mohamed Mbougar Sarr: tem algo de Bolaño encarnado em imigrante africano na Europa, mas também algo de colaborador de e-zine dos anos 1990 que tivesse lido e absorvido todo o cânone da lit mundial. Ainda pensando sobre isso.
Mas agora, com a distância de algumas semanas, concordo com Bernardo Carvalho, que exaltou o exercício estético do livro em coluna na Folha de SP: A energia juvenil desse projeto de descoberta do mundo faz com que algumas passagens soem grandiloquentes. A irregularidade é parte do estilo romanesco derramado, mas também vital, alternância entre trechos pontificantes meio ridículos e outros deslumbrantes. A verdade está entre os dois, entre afirmação e negação, no confronto de personagens, ideias e experiências. Não importa tanto se o empréstimo é ocasionalmente escancarado ou derivativo demais. O que importa é essa energia estética que sentimos durante a leitura, a vibração sempre empolgante entre a inspiração e aquilo que o próprio autor acrescenta ao estilo homenageado -- nesse caso, a perspectiva africana para o processo colonial no passado e no presente, expressa inclusive na dimensão metaliterária. Os relatos dos personagens africanos sobre seus passados e os comentários raivosos e zombeteiros do protagonista sobre a cena literária francesa oferecem alguns dos melhores momentos do livro. No fim das contas, é secundário decidir se o tom descalibrado de certas passagens é uma tentativa franca de homenagem que saiu pela culatra ou um deboche retórico intencional. O romance está se alimentando de outros e o faz sem medo de errar e brincar, e o entrechoque de seus diversos aspectos expressa algo vital e saudavelmente inconclusivo.
Sempre defendi que um autor precisa saber deixar-se influenciar, que o verbo imitar tem uma conotação positiva (e outra negativa), que livros são feitos de outros livros. Tentei imitar esses dois, Wallace e McCarthy (e tantos outros e outras), e espero que tenha sido capaz de fazer isso agregando aquela medida certa das minhas próprias coisas. Wallace é um exemplo de que tornar as influências algo próprio é uma batalha que permanece arriscada e sem garantias até para os maiores dos maiores, até o fim. Mas é na admiração atenta da obra alheia que encontramos o maior incentivo. Read them.
Foi legal também pensar nisso tudo após ter lido A mais recôndita memória dos homens (ed. Fósforo, trad. Diogo Cardoso), do senegalês Mohamed Mbougar Sarr. O romance, vencedor do Gongourt, centrado num jovem autor senegalês que fica obcecado pela obra de um outro escritor africano misterioso, é declaradamente inspirado nos romances de Roberto Bolaño. Minhas impressões durante a leitura variavam: havia trechos bilhantes e outros canhestros ou derivativos, e a relação com a literatura de Bolaño parecia oscilar entre o mero decalque e a inspiração combustiva, daquele tipo que DFW comentava ao falar de Cormac McCarthy. Fui ao Twitter e anotei publicamente isso: "A mais recôndita memória dos homens", Mohamed Mbougar Sarr: tem algo de Bolaño encarnado em imigrante africano na Europa, mas também algo de colaborador de e-zine dos anos 1990 que tivesse lido e absorvido todo o cânone da lit mundial. Ainda pensando sobre isso.
Mas agora, com a distância de algumas semanas, concordo com Bernardo Carvalho, que exaltou o exercício estético do livro em coluna na Folha de SP: A energia juvenil desse projeto de descoberta do mundo faz com que algumas passagens soem grandiloquentes. A irregularidade é parte do estilo romanesco derramado, mas também vital, alternância entre trechos pontificantes meio ridículos e outros deslumbrantes. A verdade está entre os dois, entre afirmação e negação, no confronto de personagens, ideias e experiências. Não importa tanto se o empréstimo é ocasionalmente escancarado ou derivativo demais. O que importa é essa energia estética que sentimos durante a leitura, a vibração sempre empolgante entre a inspiração e aquilo que o próprio autor acrescenta ao estilo homenageado -- nesse caso, a perspectiva africana para o processo colonial no passado e no presente, expressa inclusive na dimensão metaliterária. Os relatos dos personagens africanos sobre seus passados e os comentários raivosos e zombeteiros do protagonista sobre a cena literária francesa oferecem alguns dos melhores momentos do livro. No fim das contas, é secundário decidir se o tom descalibrado de certas passagens é uma tentativa franca de homenagem que saiu pela culatra ou um deboche retórico intencional. O romance está se alimentando de outros e o faz sem medo de errar e brincar, e o entrechoque de seus diversos aspectos expressa algo vital e saudavelmente inconclusivo.
Sempre defendi que um autor precisa saber deixar-se influenciar, que o verbo imitar tem uma conotação positiva (e outra negativa), que livros são feitos de outros livros. Tentei imitar esses dois, Wallace e McCarthy (e tantos outros e outras), e espero que tenha sido capaz de fazer isso agregando aquela medida certa das minhas próprias coisas. Wallace é um exemplo de que tornar as influências algo próprio é uma batalha que permanece arriscada e sem garantias até para os maiores dos maiores, até o fim. Mas é na admiração atenta da obra alheia que encontramos o maior incentivo. Read them.
*
Seção de links
- https://muse.jhu.edu/article/593109/pdf
- http://web.utk.edu/~wmorgan/Suttree/suttree.htm
- https://www.youtube.com/watch?v=Zpn-OdpG050
- https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bernardo-carvalho/2023/06/literatura-nao-e-cartilha-nem-palavra-de-ordem.shtml
- https://sler.com.br/em-que-ponto-esta-a-literatura-gaucha-hoje/
- https://music.apple.com/br/album/basement-tapes/1637069192
- https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_unexplained_sounds
- https://www.nature.com/immersive/d41586-023-01828-x/index.html
- https://twitter.com/shinobu_books/status/1661676049477046273?s=20
- https://www.scielo.br/j/elbc/a/q6S9hkfrgdQQBJLqw34Cmhx/?lang=es
A newsletter 'dentesguardados' é aberta a todos e aceita doações espontâneas dos leitores que desejarem bancar a mensalidade do Buttondown (29 dólares/mês) ou apoiar a minha escrita de modo geral. Considere clicar aqui ou usar a chave PIX "contato@danielgalera.info" para enviar um pagamento de qualquer valor. Agradeço de coração :)
Mais informações sobre mim: http://danielgalera.info
ⓒ Daniel Galera
Don't miss what's next. Subscribe to dentesguardados: