dentesguardados #12 Reconciliação
Reconciliação
A paternidade deveria nos ensinar algo. Ela mudou minha vida em diversos sentidos, quase todos eles práticos -- rotinas, hábitos, a relação com o tempo. Existem também as emoções que não se conhecia, as que recuam de cena, a morte simbólica que não é tão meramente simbólica assim, o florescimento de novos modos de ser e olhar e sentir e amar, toda uma nova classe de medos e responsabilidades. Porém, nesses primeiros cinco anos como pai, nem sempre discerni bem o que ela teria me ensinado. De uns tempos pra cá, passei a enxergar algo que aprendi: a reconciliar.
Reconciliação não é pedir desculpas. Não podemos dizer: estou me reconciliando contigo. É algo que se constrói e executa, uma manobra. Desculpas são um aceno positivo construído em torno de um impasse; o reconhecimento de que algo não transcorreu bem e sentimos muito, a promessa de que evitaremos que aconteça de novo. Reconciliação é um gesto mais propositivo: trata-se menos de pedir desculpas, o que pode ocorrer ou não, e mais de fornecer informação, esclarecimento e, por fim, uma proposta concreta para que a mágoa ou prejuízo não se repita. A partir desse gesto, um novo hábito ou forma de agir pode se instalar e ficar.
Aprendi a importância de me reconciliar, e de me reconciliar melhor, a partir do momento em que minha filha cresceu o bastante para que nos comunicássemos verbalmente. Antes eu me reconciliava eventualmente: com minha companheira, com amigos, com a família, com um morador de rua que via frequentemente e com quem mantinha uma relação algo bipolar de simpatia e desprezo, com um atendente que me prestava um serviço. Mas para cada reconciliação há muitas -- uma vergonhosa proliferação, na verdade -- de ocasiões em que ofensas, mágoas ou mal-entendidos são deixados para trás e lentamente absorvidos. Em breve, uma nova experiência positiva substituiria, no convívio ou na memória, aquele conflito anterior. As coisas se ajeitam, se acomodam. Vamos em frente sentindo esses caroços, pisando nos cacos.
Com minha filha, percebi que é muito mais difícil me contentar com essa acomodação. Não é admissível deixar suspensa no passado uma mágoa que provoquei. E não basta pedir desculpas. Preciso explicar bem minhas razões para o ocorrido, minha interpretação do que se passou, e o que proponho para que isso não se repita e para que o episódio negativo seja substituído por afetos positivos diante de situações semelhantes que venham a ocorrer. A absoluta necessidade da reconciliação não se baseia apenas numa aflição de minha parte, emergente de um amor paternal ou algo assim, e nem tanto também da expectativa da minha filha, mas sobretudo da sua absoluta disposição e capacidade para que esse gesto mútuo aconteça. Sua flexibilidade para substituir o rancor pela confiança e pela alegria é ligeira, simples, francamente milagrosa. E participativa. Ela não espera que eu a compense. Ela propõe, sugere, segura a mão e mostra alguma coisa. Uma brisa instantânea pode clarear o mundo. Tudo isso acontece às vezes em segundos. Ela só espera de mim o respeito de saber começar.
Tem esses episódios pequenos que ficam na lembrança, sei lá por quê. Como uma vez que a geladeira estragou pela segunda vez em poucos meses e me vi obrigado a resolver isso num dia em que precisava correr atrás de um prazo de tradução e descontei a frustração no cachorro, na minha filha e também na minha esposa, que acordou animada pro seu dia de trabalho intenso mas deparou com esse homem totalmente destruído pelos empecilhos em série da vida doméstica. Briguei com a Sara porque ela não estava bebendo água na escola: brandi diante dela a garrafinha do dia anterior ainda cheia, a prova de seu terrível crime. Ela chorou e eu soube na mesma hora que tinha sido injusto e violento. No caminho a pé para a escola, eu sentia que não seria possível viver se não remediasse aquilo de alguma forma -- com os outros habitantes do planeta eu talvez tivesse simplesmente seguido em frente, aceitado o custo emocional como parte da vida, mas com ela não era admissível. Ela me dizia que tinha lembrado: ontem havia tomado um pouco de água na hora do lanche, sim. Era de cortar o coração. Depois de duas quadras, parei, a peguei no colo e expliquei tudo o melhor que pude: por que eu estava frustrado, a geladeira, o trabalho; e como ela não tinha nada a ver com isso, e como eu confiava nela pra beber a quantidade de água que achasse melhor. Os olhos dela brilharam, ela começou a saltitar no meu colo. Os meus deviam estar brilhando também. Eu sentia o peso aliviando, o nó se dissolvendo. E então ela propôs algo meio absurdo: acho que era inventar letras malucas em cima da melodia da canção da Chapeuzinho Vermelho. Era absurdo e também perfeito. De onde vem uma coisa assim? Era isso, passei a perceber, que eu precisava aprender. Reconciliar não é compensar ou pagar pelo crime: é construir algo novo, e absolutamente qualquer coisa serve. Fomos cantando essas coisas malucas pelo caminho. Era um novo dia.
A disposição para não contar com a acomodação automática dos sentimentos bons e ruins, parar de andar, erguer minha filha no colo e conversar claramente sobre um gesto ou emoção negativa provocados recentemente por mim, até que possamos os dois seguir em frente sem aquele peso, imediatamente abertos e vacantes para gestos e emoções novas, mais leves e luminosos: foi isso que aprendi com a paternidade. A Sara me convida a agir assim, e trata-se de um verdadeiro aprendizado pois levo essa disposição às minhas relações com as outras pessoas -- com os adultos. Sinto que tenho melhorado nisso. Nunca foi exatamente o meu forte. Talvez não tivesse sobrevivido emocionalmente ao isolamento social durante o pior da pandemia se não pudesse praticar a reconciliação com minha filha pequena e minha esposa. Ainda fracasso às vezes, mas me sinto apto.
A reconciliação, diferente da mera expectativa de um pedido de desculpas, parece dar espaço para que possamos também manifestar nossas instabilidades emocionais sem medo de que as emoções negativas resultantes se instalem pra ficar: confiar nela é saber que existe, sim, conserto para boa parte do sofrimento que nossas fraquezas inevitáveis podem infligir em quem está em volta. Mais que ser perdoados, queremos ir em frente construindo experiências novas, de novo e de novo. Quando, sem intenção, expresso o meu pior, posso dar o passo intencional que expressa o meu melhor, e inevitavelmente as coisas se encadeiam de forma a se tornar pelo menos toleráveis, quando não jubilosas.
*
Lendo Denis Johnson
Voltei a ler Denis Johnson ano passado, quando meu irmão me presenteou com um exemplar de sua coletânea de contos publicada postumamente, The largesse of the sea maiden. Eu tinha lido Jesus's Son e Train dreams e achado ambos espetaculares, mas o tempo passou e não pensei mais muito nele. Sea maiden me encheu de uma alegria que eu não esperava. Tinha ficado muito tempo sem ler uma prosa tão brilhante, do tipo que acelera os batimentos e arranca sorrisos. Enquanto lia, tentava identificar como Johnson alcançava esse efeito. Era difícil pensar em algo além de "porque é simplesmente bem escrito pra caralho, o cara era um gênio". O que não explica nada. Eu anotei isso aqui, pensando em desenvolver outra hora:
Os contos [de The largesse of the sea maiden] dão a impressão de que foram escritos no improviso, conectando episódios à medida que surgiam no processo de imaginação ou escrita, mas ao mesmo tempo o rigor estilístico — nos níveis da frase, do parágrafo, das cenas, do todo — é tremendo, o que contribuiu para a sensação geral de que a matéria narrada é feita de indícios de teias causais e verdades existenciais — o que certamente é o caso. O encadeamento de pequenas cenas no conto-título tem isso; o encadeamento de episódios e personagens da prisão em "Strangler bob" também — a maneira como as figuras surgem, somem, reaparecem e se acumulam como numa sedimentação natural de algum tipo, um mosaico de folhas caídas na calçada, um coro de insetos se formando no calor após a chuva, até que, como o leitor começa a perceber aos poucos nas páginas finais, o conto se encerra com a precisão e solidez de um edifício ou monumento compacto, orgânico e integrado aos processos contingentes em torno, sim, mas também o resultado inquestionável de uma engenharia narrativa cuidadosa e um polimento estilístico impecável — se Johnson escrevia assim mais ou menos em “modo automático” ou se avançava com rigor atento e vagaroso, revisando e reescrevendo tanto quanto necessário, isso é algo que não se pode dizer apenas lendo os contos.
Enfim. Nenhum progresso, mas fica o registro.
No entanto, talvez as coisas tenham ficado um pouco mais claras agora que a Todavia lançou no Brasil uma ótima tradução de Filho de Jesus (da Ana Guadalupe). Fiquei feliz de ver o livro sendo comentado e elogiado: não é tão óbvio, afinal é um volume de contos do começo dos anos 1990 centrado em jovens viciados que vivem de crimes grandes ou pequenos ou de empregos extremamente precários, girando em torno de acidentes de carro e hospitais e asilos e jornadas malucas e embriagadas noite adentro envolvendo tipos excêntricos e condenados a mortes precoces. Seu tema não é a heroína ou a criminalidade juvenil ou o avesso do sonho americano: é o maravilhamento que se pode ter ao observar a vida com a merecida dedicação. É isso que seu estilo e seu modo de narrar triunfam em reproduzir.
Vamos dar uma olhada no primeiro conto de Filho de Jesus, "Desastre de carro no meio da carona". Após algumas linhas meio alucinatórias, em que entendemos que um caroneiro molhado de chuva e delirando de entorpecentes pega uma carona com uma família comum na estrada, temos isso:
Eu conhecia cada pingo de chuva pelo nome. Eu percebia tudo que ia acontecer antes da hora. Eu sabia que um Oldsmobile específico ia parar pra me dar carona antes mesmo de ele diminuir a velocidade, e pelas vozes meigas da família que estava lá dentro eu sabia que íamos sofrer um acidente no meio do temporal.
Eu não liguei. Eles disseram que podiam me levar até o fim.
Tem muita coisa aí. É um narrador que percebe e sente com uma sensibilidade fora do comum: que observa profundamente. Estar drogado e meio desvalido pode ter a ver com isso, mas não existe aqui uma exaltação romântica da intensidade dos porras-loucas: isso seria banal. Este homem conhece cada pingo de chuva pelo nome. Nada é insignificante para ele na paisagem sensorial do mundo, e por meio dessa atenção franca e aberta ele enxerga cintilar as relações entre as coisas, as causas e efeitos, a ponto de intuir o futuro: o carro vai parar, e eles se envolverão num acidente. E mesmo assim ele entra, pois disseram que podiam levá-lo até o fim do caminho: o sonho de todo caroneiro, a promessa de recompensa que se sobrepõe a qualquer risco, o acolhimento que justifica saltar no colo da fatalidade e do fatalismo. Esse poder de observação e vulnerabilidade imensa aos fenômenos que caracteriza o narrador é expresso por Johnson, porém, com uma notável economia de palavras. Está aí o primeiro atributo dessa prosa. O famoso "detalhe relevante" é indistinguível, aqui, da "ação relevante": em todo gesto -- e não apenas nos detalhes -- se descortina um avesso multidimensional da realidade simples e imediata dos fatos narrados. Johnson não deixa essa bola cair nunca. Nunca. Jamais.
Na página seguinte, as nuvens do Centro-Oeste parecem "grandes cérebros cinzentos". Três páginas depois, ao ser questionado por um caminhoneiro sobre o estado das vítimas do acidente, o narrador responde "Não sei dizer quem morreu e quem não morreu", o que, é claro, diz tudo, criando todo um cenário sangrento e atroz que o leitor não pode deixar de imaginar a seu modo. Aqui estamos no território mais familiar das metáforas e sugestões potentes, que todo autor talentoso domina em algum grau, mas Johnson simplesmente é melhor que quase todo mundo nisso. E depois tem um trecho assim:
Na página seguinte, as nuvens do Centro-Oeste parecem "grandes cérebros cinzentos". Três páginas depois, ao ser questionado por um caminhoneiro sobre o estado das vítimas do acidente, o narrador responde "Não sei dizer quem morreu e quem não morreu", o que, é claro, diz tudo, criando todo um cenário sangrento e atroz que o leitor não pode deixar de imaginar a seu modo. Aqui estamos no território mais familiar das metáforas e sugestões potentes, que todo autor talentoso domina em algum grau, mas Johnson simplesmente é melhor que quase todo mundo nisso. E depois tem um trecho assim:
Ele estava grunhindo muito alto, de um jeito escabroso. O sangue saía borbulhando pela boca cada vez que ele respirava. Ele não ia respirar por muito mais tempo. Eu sabia disso, mas ele não, e por isso olhei e examinei a grande lástima que era a vida de uma pessoa neste mundo. Não me refiro ao fato de que todos acabamos morrendo, não é essa a lástima. Eu me refiro ao fato de que ele não podia me contar o que estava sonhando, e eu não podia dizer a ele o que era a realidade.
Se não teve um calafrio lendo, limpe a mente e releia mais devagar. Esse é o segundo atributo da prosa de Johnson. Os fatos concretos se sucedem por algum tempo até que de repente, como se fosse inevitável, ocorre a extração, a partir de um dado pitoresco ou agrura qualquer da vida, de uma observação metafísica irretocável, profunda e apropriada ao contexto. Eu adoro esse "e por isso olhei e examinei": Johnson sugere que é óbvio, simplesmente inevitável, que do conhecimento da morte iminente dessa vítima, ela mesma alheia ao que se avizinha, decorre a necessidade imperativa da atenção, de olhar e examinar nada menos que "a grande lástima que era a vida de uma pessoa neste mundo". E por que é uma lástima? Por que estamos condenados a sofrer, porque a sociedade é injusta, porque as drogas matam? Não, pelo amor de deus. Temos o que milênios de parábolas hinduístas e budistas vêm procurando estabelecer: a tragédia da nossa falta de referência para estabelecer sonho e realidade, e da incomunicabilidade de nossa experiência individual dessas distinções. Ressalto a brevidade: na frase seguinte já estaremos de volta à narrativa concreta da situação. Mas essa modulação é constante nos contos de Johnson. Nunca falha.
Eu ia comentar o conto "Emergência", talvez o mais famoso de Johnson. Mas corro o risco desse texto ficar enorme e eu queria muito falar um pouco do conto anterior na coletânea, o bem menos conhecido "Trabalho". Esse conto, como muitos do autor, começa com uma cena que não tem relação direta com a ação principal que está por vir. É uma cena de agressão física a uma mulher, que termina com a informação de que a mulher voltou. Seus livros são cheios de coisas assim. A vida desses personagens é indigesta. Que seu poder de observação e de insight existencial brote com frequência da atrocidade é parte da potência literária.
De todo modo, logo a seguir a situação principal se estabelece: o narrador encontra um amigo no bar e aceita participar de um trabalho: roubar os cabos de cobre de um loteamento de casas abandonadas em frente ao rio. As casas, ao que parece, eram moradias de classe média-baixa que foram invadidas por uma enchente e por isso abandonadas. Lá pelas tantas o narrador pergunta ao amigo se ele sabe algo sobre o dono da casa que em que estão. O amigo para o que estava fazendo e diz: "É minha casa."
Johnson adora isso: não é que ele sonegue informação ao leitor: são o narrador e os personagens que a sonegam, não porque isso seria uma estratégia narrativa capaz de provocar surpresas e envolver, mas porque o momento em que revelam as informações faz todo o sentido para eles e para a história. Aqui, aprendemos algo sobre o amigo, e sobre as pessoas em geral, quando descobrimos que ele estava o tempo todo sonegando a informação de que uma das casas lhe pertencera: faz sentido a reticência, a vergonha, e também a origem desta ideia de trabalho em primeiro lugar. E o que resulta, é claro, é a surpresa (significativa) e o envolvimento.
Nesse mesmo conto, o mesmo expediente se repetirá algumas vezes. Um pouco depois, os amigos ficam atônitos diante de uma mulher ruiva que passa no rio flutuando com uma asa-delta (ou algo assim), puxada por um barco veloz, completamente nua. Eles terminam o trabalho e o amigo diz que precisa passar na casa de uma pessoa. Lá encontram uma mulher ruiva. Somente depois que vão embora, o amigo revela: "Esta é a minha esposa". Estamos todos pensando a mesma coisa. O narrador enfim toma coragem: "Era ela, não era?" O amigo não responde. O narrador pensa: "Até onde eu saiba, eu tinha entrado sem querer em algum tipo de sonho que Wayne estava tendo com a sua mulher e sua casa." Este é o terceiro atributo de Denis Johnson: as revelações são frequentes, mas não resultam de um quebra-cabeças narrativo deliberado para gerar suspense e espanto: elas parecem apenas reproduzir a natureza de vaivém entrecortado e de lapsos e omissões e esquecimentos da nossa percepção usual da realidade. O autor não está te manipulando: ele quer que você sorria, tenha engulhos diante da maneira como as coisas se revelam, desdobram e interconectam nas narrativas que incessantemente tecemos.
Após concluir o trabalho, rumo ao término do conto, os amigos vão tomar uma bebida no Vine, bar que aparece em vários dos contos. E aí vem essa frase que eu amo demais, uma abertura de parágrafo: "E quem estava cuidando do bar, senão uma moça cujo nome não lembro?" Ah, as pessoas familiares, inesquecíveis, cujos nomes não lembramos ou sequer chegamos a aprender. Essa moça serve doses duplas de graça e faz a felicidade do narrador. "Queria lembrar do nome dela, mas só me lembro da sua elegância e generosidade." Ele a chama carinhosamente de "enfermeira". O conto vai terminar. Você está vendo que faltam poucas linhas. E termina assim (lembram daquela abertura com a cena de violência do narrador contra uma mulher? convém lembrar agora, nada é por acaso nesses contos impecáveis):
Eu a vi [a garçonete do Vine] muito tempo depois, não muitos anos atrás, e quando sorri ela pareceu pensar que eu estava dando em cima dela. Mas eu só tinha lembrado. Eu nunca vou esquecer você. Seu marido vai te bater com o cabo de uma extensão e o ônibus vai sair e te deixar chorando na estrada, mas pra mim você foi uma mãe.
*
Johnson e uma reconciliação
Queria também falar em detalhes sobre os contos de The largesse of the sea maiden, mas de novo temo de me estender demais (tradução: não tenho tempo). São cinco contos, todos impecáveis, todos mostrando que desde Filho de Jesus Johnson não alterou muito o estilo mas o recheou com descrições mais férteis e tramas mais complexas e expositivas, sem nenhum prejuízo às surpresas, modulações entre concreto/metafísico e detalhes/ações reveladores. O conto-título é na verdade uma colagem de vinhetas narradas por um mesmo narrador semi-autobiográfico, um escritor e publicitário que se ajustou somente até se tornar um desajustado mais maduro e um menos inconsequente. "Hoje de manhã fui assolado por tamanha tristeza diante da velocidade da vida -- a distância que percorri desde a minha juventude, a persistência dos velhos arrependimentos, os novos arrependimentos, a capacidade que o fracasso tem de se reinventar de novas formas -- que quase bati o carro", começa uma das vinhetas, que para o leitor de Filho de Jesus soará como se a vida evoluísse dando voltas em si mesma, que é o que de fato acontece. Outro conto se passa num presídio e tem uma participação especial de um personagem de Filho de Jesus, Dundum. Outro gira em torno de um velho amigo que está doente e isolado numa casa no campo. Outro, o mais cômico, é composto de mensagens e cartas enviados por um paciente de uma instituição de recuperação para drogados. E o último tem como centro um personagem que passa a vida investigando uma suposta teoria da conspiração sobre o assassinato de Elvis Presley e sua substituição por um gêmeo secreto. Sorrio só de lembrar deles.
Mas quero tomar o tempo de traduzir pra vocês um trecho de uma das vinhetas de "The largesse of the sea maiden", o conto, intitulada "Farewell" [Despedida]. Porque tem a ver com reconciliação, e porque é mais um exemplo da maravilhosa prosa do Johnson. O narrador atende em casa um telefonema: é a sua primeira esposa, Virginia, que ele chamava de Ginny e com quem passou três anos de sua juventude casado. Ginny ligou para dizer que está morrendo.
Antes de encerrar sua existência terrena, como ela chamava, Ginny queria se livrar de qualquer espécie de amargura que ainda guardasse de certas pessoas, certos homens, especialmente eu. Ela disse o quanto ficara magoada, e o quanto desejou me perdoar, mas não sabia se era ou não capaz -- ela esperava que sim -- e eu lhe garanti, do abismo de um coração partido, que eu também esperava que sim, que eu odiava minhas infidelidades e minhas mentiras sobre dinheiro, e a maneira como eu havia mantido meu tédio em segredo, e os meus segredos em geral, e Ginny e eu conversamos, depois de quarenta anos de silêncio, sobre as tantas outras maneiras com que eu havia lhe privado de seu direito à verdade.
No meio disso tudo, comecei a me perguntar, sentindo um tremendo desconforto, na verdade tonto e transpirando de ansiedade, se eu não havia cometido um erro -- se esta na verdade não era minha primeira esposa Ginny, não, mas sim a minha segunda esposa, Jennifer, que muitos chamavam de Jenny. Por causa da fraqueza em sua voz e do choque que ainda reverberava em mim após receber a notícia, e também da situação que a rodeava enquanto tentava conversar comigo naquela ocasião tão importante -- gente entrando e saindo, e o ruído do que me pareceu ser um respirador -- agora, quando a ligação já contava quinze minutos, eu não conseguia lembrar se ela havia chegado a dizer o nome quando atendi e de repente eu não sabia de qual conjunto de crimes eu estava me arrependendo, não sabia se essa despedida ao leito de morte que estava me colocando de joelhos em sincera compunção ao lado da mesa da cozinha era de Virginia ou de Jennifer.
O narrador pede que a interlocutora aguarde um minuto e chama a esposa, que não aparece, e quando ele pega novamente o telefone, a mulher já desligou.
Tivemos nossa conversa, e Ginny ou Jenny, não importa quem, havia se reconhecido em minhas desculpas sinceras, e tinha ficado satisfeita -- afinal, os dois conjuntos de crimes eram o mesmo.
Uma reconciliação por Denis Johnson. Nunca desperdicem uma chance.
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Obrigado pela leitura. Não há ficção nova em produção por aqui, mas peguei uma tradução longa e difícil que me ajudará a enfrentar isso ao longo deste ano (não ter nenhum minuto para escrever costumava funcionar para fazer brotar uma vontade irreversível de escrever uma história).
Aproveito pra dizer que tenho me dedicado mais a realizar leituras críticas de manuscritos. Embora eu não descarte o que chamam de "mentoria", ou acompanhamento dos vários estágios de desenvolvimento de um livro, minha preferência é trabalhar com livros já prontos ou quase prontos. Faço um parecer crítico e uma espécie de preparação editorial do original, com marcas de Word em profusão e duas reuniões por vídeo. Não é um serviço barato: dedico bastante tempo a cada uma dessas leituras e elaboro o máximo de sugestões. Quem se interessar em saber mais detalhes pode me mandar um email respondendo essa mensagem mesmo ou no endereço contato @ danielgalera.info .
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Seção de links
- https://youtu.be/Y4XRzhRscfg
- https://todavialivros.com.br/livros/maneiras-de-ser
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- https://twitter.com/AmericanGwyn/status/1613154023707738119
- https://www.theparisreview.org/blog/2023/02/14/love-songs-im-your-man
- https://oeco.org.br/especial/mataatlantica/
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